quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Fogo-Fátuo


Quando era imberbe como um grão-de-bico antes de se pôr de molho, a vida era pautada pelo tempo atmosférico. Se o sol surgia risonho e no horizonte despontavam nuvens claras como algodão doce, então as brincadeiras na rua prolongavam-se até ao anoitecer. O muro do senhor Carmindo era a paragem obrigatória dos membros da corporação que iam surgindo ao sabor do acaso. O primeiro a chegar esperava. O César Carriço, cabelo à escovinha e remoinho na testa, Zeca o bombo da festa e pedaço de tareia de todos, o Tó Rocha que gostava de brincar mas só á sua maneira e eu que não podia passar sem eles.

Mas quando o céu se desmoronava e se desfazia em água, os amigos não se juntavam por falta de poiso e cada um tratava dos seus próprios devaneios. Então, por baixo da choupana, braços sobre os joelhos e mãos nos queixos, passava horas a espiar as pingas caindo apressadas dos beirais, com medo de as provar por ser água do céu. Nesses dias escuros o tempo era mais pachorrento, a humidade emperrava os carris da história, mas a chuva bastava para que o horizonte promovesse a auto-descoberta e o rumo fácil das fantasias.

Aos Domingos, com chuva ou sem ela, a tarde era por conta das irmãs salesianas, seres frágeis, de cabeça oculta e um babete alvo no hábito preto. Todas tinham aquele ar de santas de altar, carinhosas e calmas e vivia na expectativa de, repentinamente, alguma ganhar asas e operar milagres, semelhantes aos dos santos que, invariavelmente, constavam dos sermões do Padre Agostinho. Só que o tempo foi passando e já eu andava em bolandas com uma adolescência difícil quando soube que a maioria delas tinha fugido da santidade como se o tivessem combinado em conjunto, de forma a viver a vida como toda a gente. Se hoje respeito a decisão, na altura encontrei nessas notícias sinais do advento do belzebu que não brinca com coisas sérias, pois enquanto a infância decorria nunca olhara aquelas senhoras senão com olhos de respeito que se deve a seres de outro mundo, todas tão bonitas e perfeitas como bonecas de porcelana. Como não mostravam os cabelos e traziam sempre uma farda limpa e engomada em nada se assemelhavam às outras pessoas, habitualmente sujas, arrancando batatas e plantando couves.

Além da rua nos dias solarengos, a choupana nos temporais, o Colégio Salesiano aos Domingos e feriados, víamos televisão no dia 13 de Maio se o Papa visitasse a Cova da Iria. Juntávamo-nos em casa do senhor Gouveia, proprietário de um aparelho maior que uma arca congeladora, adquirido com pecúlios ganhos no Congo. Permanecíamos em silêncio e com as costas direitas em sinal de respeito, horas infindas de transmissões numa era histórica em que o País andava mais devagar que o carro de Sua Santidade no meio da multidão. Fora isso esperava-se em temulência o futuro. Espera desconsolada porque em criança o tempo é um adversário tenebroso pela demora infindável nas voltas que dá.

Mas tenho saudades dos fins de tardes que desapareceram à custa das telenovelas das sete, telejornais das oito e programas de variedades pela noite dentro. Devido às modernices de olhar o mundo por um funil em vez de nos olharmos uns aos outros, perdemos o pôr-do-sol, etapa do dia onde as pessoas falam melhor de si mesmos e o início da noite quando a imaginação nos transporta para fora de nós. O grupo, ao invés, num banco de pedra, contíguo à casa da Senhora Alice, saltava os assuntos como um atleta de barreiras, sem preocupações sistemáticas ou de rigor. Apenas havia temas que exigiam maior esforço, silêncio e gravidade nos gestos, como o destino do mundo e almas penadas em excursões por cemitérios. Quanto ao destino do universo buscávamo-lo entre as estrelas que começavam a despontar na noite, encontrando nelas olhos divinos que nos vigiavam e uma malta celeste apontando em caderninhos narrações completas das vidas de todos, tal como o senhor Rocha fazia das mercadorias a fiado. Das almas penadas piava-se mais fino.

A Ti Carriça, mãe do César, sabia mais de mortos do que dos vivos. Ficou viúva antes do tempo quando o marido ao auxiliar uma manobra de um camião em marcha-atrás, não reparou que auxiliava a sua própria morte e foi esmigalhado contra uma árvore que já lá estava há muito tempo. Após o acidente, a sua vida esgotou-se na chegada a casa e no tempo de dar três voltas à mesa da sala. A ausência de sentido dos círculos antes do último suspiro perseguiu a viúva durante a vida e a mim pela infância fora, exigindo algum significado esotérico que não se vislumbrava, nem mesmo agora, trinta anos depois.

E se a Carriça olhava a morte com a naturalidade de uma ementa diária feita de caldo verde e broa de milho, nós, os miúdos, escutávamos com temor aquele ser vestido de negro mas iluminado por fogachos de entusiasmo. Discutia a morte com as certezas reservadas aos videntes, descrevendo o amontoado das almas como uma mistura de sopros de fumos de várias cores, tipo arco-íris de defuntos, claramente visível à noite nos cemitérios, como se quisessem demonstrar aos vivos que após a tempestade virá a bonança. No meio das descrições tétricas, com olhos esbugalhados de tanto medo, ouvia a voz da minha mãe a chamar-me para o jantar e subia a correr as escadas de pedra, com limites marcados por vasos cheios de sardinheiras vermelhas. Empurrava a porta da cozinha, do interior saltavam cheiros a sopa e chouriço caseiro, vindos de panelas de ferro escuras, arrumadas à lareira. Comia com tanta pressa que mastigava só metade e pedia o tempo ganho para ouvir o fim da história das almas coloridas e das estrelas que não são mais do que olhos de um céu cheio de luz por dentro.

E depois das sessões iniciáticas, deitado na varanda, contava estrelas, apesar da ameaça de cravos nascidos entre os dedos e pressentia que quando a idade fosse menos preguiçosa teria mais respostas do que certezas e encontraria o meu caminho sem ter que comer sopa à pressa e ouvindo as histórias até ao fim.

Afinal, a criança que era fugiu tão rapidamente que nem sequer tive oportunidade de me despedir. Ao olhar para trás, tenho saudades das estrelas que brilhavam mais do que hoje, da sopa e do chouriço caseiro da minha mãe, da Carriça viúva e tão gaga que uma história tinha o valor de duas pelo tempo que demorava. Não sei se é viva ou se a sua alma lança fumo no cemitério, mas se exala será bem colorido, pois o estado que sucede a uma tempestade com cinco filhos menores, após o marido forjar ocasião da sua própria morte, terá de ser ilustrado com um enorme arco-íris.

3 comentários:

Bruma das Ilhas disse...

Após a leitura desta crónica muitas recordações de infância me vieram à cabeça. Enquanto criança tive a sorte de saborear a pureza da natureza, da altura e que as aldeias beirãs possuíam, de recolher conhecimentos daqueles a que nós chamávamos velhos mas cuja vida os faziam sábios e de, à noite, olhar e contar as estrelas mesmo com o risco de poderem nascer cravos nas mão. Hoje, devido às exigências do dia a dia, em que os Pais têm de deixar os seus filhos, desde muito cedo, entregues a instituições de ensino faz com que as crianças não possam crescer por si só sem que por perto não exista a força do, dito, desenvolvimento tecnológico. Até parece que para se crescer se tem de estar ligado a um computador e que sem ele ninguém se fará Homem…

Unknown disse...

A ideia do Paraíso Perdido reforça-se com a inexorabilidade da passagem do tempo...
Lá vens tu de novo provocar as saudades de nós mesmos! mas é tão positivo o teu texto que a saudade não é coisa ruim... invade-nos como uma nuvem de ópio(!) e deixa-nos a levitar num "mar de Além".
Parabéns!

::::: disse...

A casa da saudade chama-se memória:
é uma cabana pequenina a um canto do coração.


(Henrique Maximiliano Coelho Neto)
::::::::::::::
Ai, ai... Que saudades das noites de Verão da minha infância, de subir às árvores, de ir para o rio. Na minha rua era uma "avó de todos" que contava histórias, junto ao fogão a lenha...