Estou apreensivo quanto ao destino dado às velharias que adormeciam em casa dos meus avós. Com o entra e sai de gente a fim de olhar os dois caixões tão juntinhos como números das dezenas, naquela confusão de lágrimas, de flores e de cheiros fortes, receio que muitas realidades tivessem morrido no coração dos viajantes. E digo isto porque no final das cerimónias fúnebres entrei em casa, com portas escancaradas, e senti um vazio terrível nesse espaço tão familiar, outrora emoldurado de pratos - cavalinho, rocas, fusos e quadros tão gastos como sugestivos. Pareceu-me tudo tão despido e sem significado que nunca mais voltei.
Não se deve confiar nas carpideiras, essas criaturas necrófagas que não perdem por nada deste mundo a cara inexpressiva de um morto. Em vez da natural decência, quase pudor, perante os féretros, a morte atrai-as mais do que a vida e caras lívidas tornam-se familiares só pela pertença continuada em funerais. O tom melancólico dos sinos, ao dar o sinal de morte, faz correr a morada do morto pelas ruas da freguesia e em passo apressado chegam à residência em fila, como em carreiro de formigas, embrulhadas em luto e arrancando tantas lágrimas delas próprias como se a sua dor ultrapassasse a infelicidade dos íntimos. Mas como a quantidade de pranto sempre foi sentida como proporcional à dor da ausência de quem parte, são bem acolhidas para desempenharem a sua função, enquanto os familiares resolvem problemas menores e práticos, tais como enterrá-los de acordo com normas legais vigentes e dar comida aos resistentes.
No meu caso, quando tudo aconteceu, era tão pequeno como um pirilampo e só davam por mim por atrapalhar os movimentos dos mais velhos, tão firmes nos objectivos e nas convicções. Mas nesse dia cresci tanto que me tornei adulto de um momento para o outro. As pessoas entravam na sala, benziam-se, circundavam a urna e apertavam-me a mão, afirmando com ar pungido “os meus sentimentos” e, num misto de tristeza e de surpresa, endireitava-me para esconder a minha pequenez, pois há sempre quem pense que os índices de sofrimento perante a morte variam consoante a idade do perdedor. Mas havia alguns romeiros, desconhecidos, que após a apresentação de condolências, se sentavam e choravam tanto ou mais que eu. Não vou dizer que não senti alguma culpa pelo facto, mas ao passar em memória aquilo que o avô me ensinou, concluí que não deveria chorar, mas identificar aqueles momentos como pequenos pormenores do muito que restou da convivência mútua.
Ainda por cima, após divulgada a notícia que a mulher do meu avô morrera nesse mesmo dia, como exigindo ser sepultada ao mesmo tempo, a história correu depressa e muitos outros vieram. Em geral, os assuntos da morte são mais apelativos que quaisquer mistérios da vida e a alma popular acredita que se possa morrer por um querer muito forte. Mas, quando acontece, merece da parte de todos a reverência, porque retrata a presença de alguém que manteve na mão, até ao fim, o seu próprio destino. Por esse facto, a família solicitou permissão às autoridades para que o funeral dele esperasse o dela, e o avô ficou exposto mais do que seria normal e o cheiro a flores fora de prazo confundia-se com um odor de homens e mulheres amontoados em estadia prolongada.
Como testemunha privilegiada poderei contar como tudo se passou. Após a verificação da morte mais que esperada do meu avô, ela não se emocionou nem deu qualquer mostra de desânimo. Andava de um lado para o outro em movimentos decididos como era habitual nela, lavou o marido, vestiu-o, arrumou a cozinha e no fim de tudo exclamou “agora chegou a minha vez” e fitou-me com olhar inexpressivo. Não entendia aquela falta de emoção, como se pretendesse esquecer o facto, até que se sentou a um canto da sala, onde o caixão aberto pendia sobre uma mesa. Com um xaile preto por cima da cabeça, tão pequenina e enroscada sobre si mesma como um ouriço-cacheiro, imóvel, até que, horas passadas, ao ser incentivada a comer qualquer coisa, sacudiram-na e caiu no chão desamparada. O Delegado de Saúde assegurou que teriam sido problemas cardíacos, mas sempre afiancei que morreu por vontade própria. Além do cansaço, normal para uma idade avançada, o peso da ausência dele tornou insuportável a continuidade da vida sem objectivos nem sinais benfazejos para uma velhice descansada.
E o sino tocou mais uma vez com o ritmo pausado e as pessoas não paravam de chegar, “uma tragédia assim, veja lá o menino” e apertavam-me a mão e sussurravam “os meus sentimentos” e eu crescia para que não me julgassem pequeno demais para aceitar condolências, mas lá bem no fundo com a certeza de que por pequeno que se seja a morte de alguém tão próximo custa tanto como uma ferida aberta que não pára de sangrar.
O resto da família esvoaçava para cuidar dos vivos e eu fiquei perto das carpideiras para me libertar das lágrimas que não saíam.
Não se deve confiar nas carpideiras, essas criaturas necrófagas que não perdem por nada deste mundo a cara inexpressiva de um morto. Em vez da natural decência, quase pudor, perante os féretros, a morte atrai-as mais do que a vida e caras lívidas tornam-se familiares só pela pertença continuada em funerais. O tom melancólico dos sinos, ao dar o sinal de morte, faz correr a morada do morto pelas ruas da freguesia e em passo apressado chegam à residência em fila, como em carreiro de formigas, embrulhadas em luto e arrancando tantas lágrimas delas próprias como se a sua dor ultrapassasse a infelicidade dos íntimos. Mas como a quantidade de pranto sempre foi sentida como proporcional à dor da ausência de quem parte, são bem acolhidas para desempenharem a sua função, enquanto os familiares resolvem problemas menores e práticos, tais como enterrá-los de acordo com normas legais vigentes e dar comida aos resistentes.
No meu caso, quando tudo aconteceu, era tão pequeno como um pirilampo e só davam por mim por atrapalhar os movimentos dos mais velhos, tão firmes nos objectivos e nas convicções. Mas nesse dia cresci tanto que me tornei adulto de um momento para o outro. As pessoas entravam na sala, benziam-se, circundavam a urna e apertavam-me a mão, afirmando com ar pungido “os meus sentimentos” e, num misto de tristeza e de surpresa, endireitava-me para esconder a minha pequenez, pois há sempre quem pense que os índices de sofrimento perante a morte variam consoante a idade do perdedor. Mas havia alguns romeiros, desconhecidos, que após a apresentação de condolências, se sentavam e choravam tanto ou mais que eu. Não vou dizer que não senti alguma culpa pelo facto, mas ao passar em memória aquilo que o avô me ensinou, concluí que não deveria chorar, mas identificar aqueles momentos como pequenos pormenores do muito que restou da convivência mútua.
Ainda por cima, após divulgada a notícia que a mulher do meu avô morrera nesse mesmo dia, como exigindo ser sepultada ao mesmo tempo, a história correu depressa e muitos outros vieram. Em geral, os assuntos da morte são mais apelativos que quaisquer mistérios da vida e a alma popular acredita que se possa morrer por um querer muito forte. Mas, quando acontece, merece da parte de todos a reverência, porque retrata a presença de alguém que manteve na mão, até ao fim, o seu próprio destino. Por esse facto, a família solicitou permissão às autoridades para que o funeral dele esperasse o dela, e o avô ficou exposto mais do que seria normal e o cheiro a flores fora de prazo confundia-se com um odor de homens e mulheres amontoados em estadia prolongada.
Como testemunha privilegiada poderei contar como tudo se passou. Após a verificação da morte mais que esperada do meu avô, ela não se emocionou nem deu qualquer mostra de desânimo. Andava de um lado para o outro em movimentos decididos como era habitual nela, lavou o marido, vestiu-o, arrumou a cozinha e no fim de tudo exclamou “agora chegou a minha vez” e fitou-me com olhar inexpressivo. Não entendia aquela falta de emoção, como se pretendesse esquecer o facto, até que se sentou a um canto da sala, onde o caixão aberto pendia sobre uma mesa. Com um xaile preto por cima da cabeça, tão pequenina e enroscada sobre si mesma como um ouriço-cacheiro, imóvel, até que, horas passadas, ao ser incentivada a comer qualquer coisa, sacudiram-na e caiu no chão desamparada. O Delegado de Saúde assegurou que teriam sido problemas cardíacos, mas sempre afiancei que morreu por vontade própria. Além do cansaço, normal para uma idade avançada, o peso da ausência dele tornou insuportável a continuidade da vida sem objectivos nem sinais benfazejos para uma velhice descansada.
E o sino tocou mais uma vez com o ritmo pausado e as pessoas não paravam de chegar, “uma tragédia assim, veja lá o menino” e apertavam-me a mão e sussurravam “os meus sentimentos” e eu crescia para que não me julgassem pequeno demais para aceitar condolências, mas lá bem no fundo com a certeza de que por pequeno que se seja a morte de alguém tão próximo custa tanto como uma ferida aberta que não pára de sangrar.
O resto da família esvoaçava para cuidar dos vivos e eu fiquei perto das carpideiras para me libertar das lágrimas que não saíam.
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