sexta-feira, 17 de outubro de 2008

II - Zé Casteleiro (conclusão)


Estalou o escândalo com o estrondo de uma castanha quando se constou que Ana Lopes, uma senhora de bela figura e de maneiras delicadas, casada com o homem mais poderoso da terra e mãe de dois filhos, andaria a encontrar-se secretamente com o Zé Casteleiro havia vários meses. Ninguém sabia o que teria despoletado a descoberta, mas pelas inimizades criadas ao longo dos anos, devido à análise corrosiva da sociedade feita de fel e vinagre, muitos julgaram que, finalmente, iria fazer-se justiça. Enquanto Ana e os filhos, estrategicamente, saíam da aldeia a caminho de casa de uma tia residente na Guarda, onde permaneceriam até se atenuar a vergonha, o marido, entre ameaças e sinais de força, jurava que a situação insustentável teria consequências. Naturalmente, eu temia pela vida do meu amigo.

Durante alguns dias, manteve-se escondido num pequeno e obscuro palheiro, propriedade do meu avô. Quando a noite caía levava-lhe comida, água e cigarros, mas sem qualquer tipo de contacto, com receio que a demora levantasse suspeitas. Uma noite, já de madrugada, quando a história começava a acalmar e se constava que teria sido visto em vários locais, alguns bem distantes, deixou o refúgio e surgiu em minha casa, vencido e com um olhar seco e cansado.
- O perigo espreita e tenho de partir. Um poeta e cientista da vida não pode viver acorrentado num meio tão mesquinho. O meu destino é o mundo, sem fronteiras nem ameias. Talvez nos encontremos lá um dia.
- Mas para onde vais? – Perguntei com inquietação. - E a Ana? – Mencionei o nome, mesmo sabendo que entrava em terrenos que nunca desbraváramos em conjunto.
- Nestes últimos dias convenci-me de que nada me prende aqui nem em sítio algum. A partir de agora a estrada será a minha casa e as nuvens o meu tecto. Mas não fiques preocupado, pois a vida não se perde no sopro do vento, arruína-se na espera estóica da morte, nesta vida comezinha e rotineira de gente de alma negra. Rezam demasiado, em vez de esgotarem os minutos que lhes restam em algo que valha a pena! Quanto à Ana, - e deves guardar este segredo contigo -, se não me acompanha é porque teve medo do vazio que estaria à nossa espera. Não quis arriscar e, como a maioria, preferiu o certo, o óbvio, o definido. Lembras-te?

Assenti com um gesto. Um silêncio prolongado. Parecia emocionado. Fui eu que cortei o recolhimento com uma faca afiada.
- Vou ter imensas saudades das nossas conversas. Ao longo destes anos, senti-me um privilegiado porque me questionavas mesmo sabendo que nada te podia dar em troca, apesar da minha ingenuidade, de ser, no fundo, igual a todos os que criticavas. Muitas vezes, senti-me um discípulo que te atraiçoava, mal viravas as costas. Sempre amedrontado, inseguro, incapaz de cortar amarras...
Olhou fixamente para mim, como se estivesse indeciso.
- Hesitei muito se te devia dizer isto. Durante uns tempos tive algumas dúvidas até que aos poucos ganhei certezas. Desculpa, mas não tens estofo de poeta. Olhas a vida como um todo organizado, com etapas a cumprir e onde é essencial manter-se o norte. Preferes guardar a lucidez para alcançares todos aqueles objectivos burgueses que dão segurança e sequência aos elos. Nem sabes a sorte que tens e nem imaginas tudo o que perdes! Mas quando puderes sai daqui e só deves parar quando o cansaço te consumir os olhos…

Apertámos as mãos, atravessou o patamar e já com o portão de ferro entreaberto regressou e deu-me um abraço acanhado. Saiu com a mochila a tiracolo e com um casaco largo que abria as abas por força do vento norte. Até desaparecer na curva mantive-me na sua peugada como se uma parte de mim fosse com ele, depois sentei-me debaixo do alpendre com as mãos no queixo e os cotovelos nos joelhos, sonhando com todas as viagens que haveria de fazer no futuro.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Zé Casteleiro


Conheci-o ainda era um garoto de sardas e enfezado de corpo, quando partilhámos a camioneta que seguia em direcção ao fim do mundo, no início de umas férias de Natal. Caímos os dois no último banco, eu encostado à janela vendo correr as coisas e ele perdido num olhar desinteressado e vagabundo. A certa altura voltou-se na minha direcção, esforcei-me para manter o olhar em frente, mas não consegui resistir ao peso de um estranho pregado em mim. A cara dele tão redonda que parecia a lua em noites de cheia, cabelo à escovinha e uns olhos enormes, tão grandes que me surpreendeu haver espaço para mais algum pormenor.

- Tens pais? Perguntou sem qualquer intróito.
- Tenho, respondi timidamente.
- Então, tens sorte.
- E namorada, tens?
- Não - engasguei-me.
- Então, não podes ser feliz.
Enrolei-me na cadeira e comprimi-me contra a janela, com ar embaraçado. Ele continuou.
- Vou contar-te um segredo, mas não podes contar a ninguém, a ninguém, ouvistes?
- Não digo a ninguém, prometo – como para me desembaraçar do teste.
- A vida é como uma melancia, adocicada e refrescante, mas com imensas pevides que nos obrigam a cuspir muitas vezes para o chão. Surgem muitas encruzilhadas, futuros envoltos em névoa cerrada e há duas soluções: ou voltamos para trás ou damos um passo para o desconhecido. E é no desconhecido, no misterioso que poderemos encontrar o sentido que nos falta. Teremos de arriscar e a maioria das pessoas prefere o óbvio, o definido, o certo.
Percebeu a minha estupefacção.
- No entanto, pensando bem, és ainda muito novo. Estás na idade de sonhares com bicicletas!
Envergonhado, sentia-me a escaldar, com todo o sangue do corpo na cara. Na sua face os vales profundos que a atravessavam, acentuavam-se quando sorria. Os olhos de uma cor indecifrável, um cinzento claro, vagueavam continuamente.
- Mas não penses que és o único cão abandonado, eu também o sou desde que nasci. Mas o meu desespero não é tão grande como a tristeza, porque tenho no sonho um refúgio seguro.
E depois de uma pausa, como se pensasse em resoluções para facilitar o recado, continuou.
- És um miúdo, mas vou ensinar-te um dos princípios fundamentais da vida. Independentemente da etapa que atravesses, dos êxitos que alcances ou dos projectos que te guiem, o amor sempre te importunará. Se já o sentires a tua preocupação será conservá-lo, enquanto viveres sem ele a angústia será a tua companheira. Só o amor nos pode salvar e como sou um doido varrido anseio dissolver-me em alguém e esconder-me do mundo e do tempo. Nessa altura serei feliz.

Depois calou-se, com o rosto inerte como se a conversa não tivesse acontecido, perdido em pensamentos até ao fim da viagem. Cresceu um clima ameno, envolvido pelo ronronar do velho motor da camioneta. Paragens precedidas de toques de campainha e chiadeira dos travões. Alguns viajantes endireitam-se a custo no corredor estreito, embrulhados em cestos e sacos de plásticos com as compras da cidade. Lá fora, ruas vazias e casas tão quedas como pinturas nostálgicas penduradas nas paredes. Parecia que a vida se resumia a um naco de sucata repleta de seres com gestos lentos.

Nos anos seguintes, encontrámo-nos inúmeras vezes em tempo de férias. Cruzávamo-nos sempre com um sinal amistoso e, frequentemente, sentados no muro do adro da igreja, ele aconselhava-me leituras e lia-me pensamentos retirados de livros, escritos num minúsculo caderno de cor azul. Os seus oráculos tinham marcas evidentes de Freud, Nietzsche e Sartre, com críticas cerradas à religião, “essa menorização do espírito e atrofiamento dos corpos” como ele repetia, ódio a qualquer amarra ao pensamento e livre realização dos instintos. Assumia-se como um profeta da grande cultura que anunciava a morte de Deus e apelava à necessidade de conquistarmos a vida. Sem compreender todas as consequências práticas da doutrina, ouvia-o com a emoção de quem busca o pote de ouro numa das extremidades do arco-íris.

Adquirira um aspecto de figurante de filme, cabelo desgrenhado, barba rala esticada por movimentos compassados, casaco de tamanho superior ao seu real tamanho, um livro debaixo do sovaco e um cigarro sem filtro entre os dedos. Pressentiam-se, igualmente, mudanças drásticas na sua alma, testemunhadas pelo semblante angustiado, como se a resposta às suas inquietações já não as encontrasse em si mesmo. O amor já não era um puro idílio fantasioso, nem a solução da existência. "O problema é que a vida não tem solução", confidenciava. Na sua vida privada adivinhavam-se jogos oculto com seres femininos enredados no seu discurso vibrante e arrebatador. A veia poética e o aspecto desalinhado permitiam-lhe avanços e escapadelas que não passariam despercebidas a outros com vidas mais determinadas. Não se vangloriava das conquistas nem me contava pormenores, mas olhares lânguidos mal disfarçados à passagem de algumas insuspeitas faziam temer consequências, tal como veio acontecer pouco tempo depois...

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A crueldade feminina


Desligou o motor e manteve-se dentro do automóvel com o rádio ligado. Nestas alturas de maior intranquilidade de espírito arrependia-se sempre de ter deixado de fumar há anos atrás. Lá fora os arbustos que povoavam o declive vergavam-se ao sopro do vento, mas naquele princípio de noite não havia qualquer sinal de gente nas redondezas. Permaneceria ali de bom grado até que os problemas se resolvessem por si mesmos. Mas o problema era dele, teria de ser ele a resolvê-lo.

Respirou fundo, abriu a porta do automóvel com ímpeto, depois o portão do prédio, a porta do elevador, contou interiormente os números dos andares que se sucediam no visor vermelho e por fim abriu a porta de casa. Invadiu-o o cheiro de comida acabada de fazer e quando colocava a mala no móvel de entrada sentiu os braços do pequenino a rodearem-lhe as costas. Abraçou-o tão forte que até teve medo de o magoar. Depois surgiu a mulher com gestos apressados de quem tem a vida toda para arrumar e com a segurança de quem domina o espaço e o tempo, e, após o beijo ligeiro, virou-lhe as costas, como era hábito. Seguidamente, como se tivesse lembrado de algo importante, voltou-se

- Vieste mais tarde.
- Pois foi, tive uma reunião. Respondeu, enquanto se curvava para se descalçar.
Examinou-o.
- Estás com péssimo aspecto. Aconteceu alguma coisa?
- Não, gaguejou. Entrou no quarto por rotina de se despir das fardas diárias e vestir algo confortável. Depois regressou à cozinha. Foi o último a sentar-se, a sopa já estava nos pratos, e o miúdo com as mãos no peito a olhar para o prato dele com olhar desalentado. Virá agora a sessão de advertências, colheradas à pressão até se esgotar o parentesco, parabéns efusivos quando a tortura terminar, pensou. Seguir-se-á , invariavelmente, a biografia diária exaustiva do filho, o dia escolar, trabalhos de casa, tal como uma acta rigorosa de reunião. Depois, o miúdo pediu licença para sair, olharam-se com sintomas de fatalismo e acenam-lhe afirmativamente.

O silêncio envolveu-os enquanto ela descascava uma maçã. Ele, dissimuladamente, observava-a. Era o momento oportuno, com a certeza de que o seu passado se extinguiria e que o futuro seria tão diferente que não o conseguia antecipar.

“Nem sei como te hei-de dizer, não tenho qualquer desculpa. Mas tenho outra pessoa na minha vida…”, estava ela naquele preciso momento com os talheres na mão e orientou o seu olhar na direcção dele. Os olhos encontraram-se sem se desviarem naquele jogo do empurra que há muito não jogava. As feições dela alteraram-se ligeiramente, os lábios tornavam-se mais finos. Recolocou os talheres na mesa e as mãos em cima das costas da cadeira como para se proteger. Sabia que os olhos dela pousavam mortalmente nele, ganhara o jogo e agora ele explorava a toalha de mesa como se quisesse encontrar um abrigo para a tempestade. A voz saía inalterada, como sempre, um trabalho de mestre em apaziguar a voz na altura das crises.

“Se o confessas é porque já sabes o que queres fazer da tua vida e eu nada tenho que ver com isso. Estou na minha casa, no meu recanto, não quero ir para lado nenhum. Apenas haveria uma remota hipótese de vivermos os quatro juntos - conseguira fazer o tom mais corrosivo que lhe ouvira em doze anos - como julgo que não a colocarás, então o jogo está feito e a conversa terminada. A partir de agora é tudo uma questão de legalidade e sairmos desta comédia com o máximo de civilidade."

Saiu da cozinha deixando tudo como estava. Os pratos, uns em cima dos outros e com restos acumulados, cascas de fruta compondo cornucópias e outros desenhos sem nome, copos com líquidos de várias cores pousados no fundo e a cesta do pão. Apanhara-o de surpresa. Talvez estivesse à espera desta conjuntura, ou então revelava um sangue frio que não lhe reconhecia. Ouvia-a ao longe falar com o miúdo enquanto ele via na televisão um episódio de banda desenhada. O seu tom de voz era semelhante a todos os dias, como se nada de relevante tivesse acontecido. Sentia-se estranho na sua casa, sem local seguro para deambular. Ouviu-os agora na casa de banho, depois uma ordem seca “vai dar um beijinho ao pai” e o pequenito surgiu a correr para dentro dos seus braços e apertou-o outra vez, emocionou-se, mas apenas lhe desejou boa noite com um beijo audível. O menino saiu a correr, a porta do quarto fechou-se.

Um silêncio percorreu toda a casa como uma sombra, enquanto ele se mantinha inerte na mesma cadeira a olhar como que hipnotizado pelos milhares de pontos de luz que se estendiam sem limites para lá da janela. Uma relação de doze anos implodira e no final apenas a necessidade de clarificação, limpar qualquer mancha de dúvida em relação ao futuro. Seriam simples adversários. Levantou-se, arrumou a louça na máquina de lavar, entrou no escritório pé ante pé e pesquisou-o como se quisesse guardar todos os pormenores. Retirou das estantes meia dúzia de livros, quatro cd’s de Keith Jarrett, juntou tudo ao computador portátil e sentou-se no sofá. Mais tempo depois do que habitual, ela apareceu, ignorando-o, ligou a televisão, aninhou-se a um dos cantos do sofá e mudava canais sem qualquer emoção na face. Ele com vontade de esclarecimento.

“Esperei-te só para dizer que lamento. A vida prega partidas, aconteceu tudo sem prévio aviso e já não conseguia viver na mentira. Não foi o que prometemos no dia do casamento? Não exigimos sempre a verdade? Pois aqui está. Mas parece que tu não a queres para nada. A verdade apenas te serve como consolo para me colocares fora da tua vida.”

O silêncio ostensivo e gestos bruscos de não querer continuar a conversa, obrigaram-no a levantar-se, recolheu o material que seleccionara e saiu. Entrou no automóvel, a música era semelhante à que ouvira antes do início da história. Por um momento imaginou que ainda não chegara a casa, encontraria tudo como dantes e a verdade ficaria para depois, talvez quando o pequenino fosse maior de idade. Mas ao seu lado os livros, os cd’s e o portátil eram a prova de nada poderia fazer para recuperar a vida anterior. Mas havia algo que não batia certo. Ela não chorara e as lágrimas compõem as coisas ou, pelo menos, amenizam efeitos. Também não falou do filho e do vazio que iria sentir pela ausência do pai, e talvez nessa altura se poderiam cumprir promessas de reencontros. Sentiu-se defraudado.

Arrancou entrando na noite como quem procura uma referência num espaço infinito, circundou a rotunda e parou no cruzamento sem saber a direcção a tomar. Uns sinais de máximos intermitentes obrigaram-no arrancar sem destino.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A morte ficava-lhe tão bem...


Não estou seguro se naquela tarde tudo aconteceu tal como guardo na memória. Fosse como fosse, pela primeira vez, contactei intimamente com a morte. Tinha sete anos. Não me lembro da sua cara, da sua estatura, da cor dos seus cabelos. Nem o seu nome consigo apanhar no nevoeiro do tempo. Emergem duas situações onde estivemos juntos, com vagas referências dos lugares. A primeira, mais enegrecida, junto a um regato que serpenteava um pomar de macieiras, onde me ensinava a colocar costilhos, armadilhas para apanhar pássaros. A segunda, mais forte e mais real, quando num Domingo o acompanhei ao rio. No caminho de Santa Eufémia, em tarde quente de final de Primavera, mimosas floridas descansavam alguns ramos sobre a estrada. O grupo em algazarra e eu com as pernas bem abertas para não empancar nos raios da bicicleta. Depois, tarde fora, os mais velhos, nus, nadando divertidos, fazendo palhaçadas na água, encharcando os que ficaram nas margens. O final da viagem regressa, cruamente. Uma valente tareia do meu pai por ter saltado sem autorização para o trilho dos adultos arruaceiros e mal comportados. A única verdadeira surra do meu pai.

Exceptuando estes pequenos resíduos pouco mais resta daquele que eu considerei sempre o único amigo adulto da minha infância. Teria uns dezassete anos, o pai, dono de um talho, era conhecido pelo Zé Carniceiro, de porte enorme e bigode farfalhudo e viviam numa casa branca que se alongava num patamar, onde uma latada sustentava videiras e trepadeiras coloridas. Um dia, um alarido enorme foi juntando toda a vizinhança, as pessoas saíam de casa apressadas, fazia lembrar os momentos de frenesim após os terramotos, e no meio do alvoroço compreendi que o meu amigo estava entre a vida e a morte, devido a um acidente de mota nas curvas perigosas do Mondego. Ao fim da tarde confirmou-se o falecimento. Contavam-se várias versões, algumas misteriosas de poderes maléficos e fugas criminosas, mas todas concordavam na velocidade excessiva da moto. Viveu demasiado depressa e morreu à mesma velocidade, opinião escutada nesse dia e em muitas ocasiões posteriores quando o seu nome veio a propósito.

Era de poucas falas. Ao ensinar-me a caçar pássaros com costilhos escuros fê-lo mais com gestos do que com palavras. Não me recordo dele a falar, apenas de ser atencioso e paciente. Mas na época era um rebelde, não encaixava no género de rapaz bem comportado. Não ia à Missa, não frequentava os locais saudáveis da freguesia e durante temporadas desaparecia para lugares incógnitos. Ou talvez seja ficção minha, querendo engalanar a realidade com atributos imaginários. Não sei. Mas a zanga do meu pai por o ter seguido naquela tarde, foi sempre um sinal de que a sua companhia não seria a mais adequada para um garoto ingénuo e educado nas boas práticas e melhores maneiras.

No dia seguinte, logo de manhã, regressei a casa do Zé Carniceiro, já cheia de gente e de prantos. Afinal, também era dono dos meus fantasmas e tinha mágoas para consertar. Com um pano de fundo negro, vultos enegrecidos mais baixos do que no passado, como se o peso do mundo fosse suportado pelas suas cabeças, passavam por mim e nem me reconheciam. Não haveria velório em família, pois o estado desmembrado do corpo desaconselhava cerimónias fúnebres caseiras, ainda mais quando a autópsia interferira na harmonia do corpo. Histórias que percorriam as bocas secas. Entorpecido, avançava indolente pelos corredores, aterrorizado pela visão de um amigo esquartejado.

Às três da tarde missa de corpo presente. Chovia torrencialmente e a igreja abarrotava de gente e de lamentações. Entrei por uma das portas laterais. O caixão no centro da coxia e homens munidos de ferramentas abriam-no sem qualquer emoção especial na face. Aproximei-me vagarosamente, tremia das pernas, mas com a necessidade de olhar. Com vontade tremenda de fugir. Cada vez mais perto. Lá estava, mais bonito, com uma camisa branca, barbeado, numa pose serena e a face sem um único arranhão. Com as mãos postas, parecia um anjo. Afinal, a morte não desfigurava o rosto, pelo contrário, garantia a harmonia, o poiso e o sossego que ele nunca tinha experimentado em vida.

Mas algo não batia certo. No pescoço, por baixo do colarinho, um rego profundo indiciando consequências da autópsia, tal como ouvira em casa dos familiares. No tronco e nas pernas outros traços por onde se encostava o pano em pregas. Caí em mim. Lembrei-me das histórias dos lobos com pele de cordeiro e de fantasmas sem cabeça, ou de cabeças sem corpo que esvoaçavam perdidas sobre cemitérios. Senti-me mal na minha insignificância. Como era possível ter pensado que aquela serenidade correspondia a um sinal benfazejo da morte e não ao tapume do horror que já se propagava pelo corpo todo, artificialmente criado até terminarem as cerimónias fúnebres. Subi o corredor estreito e sentei-me junto ao altar, no lugar das crianças. Com olhar assustado. Nunca mais perdi esse olhar.

Do exterior, ao cessarem as ladainhas, vinham ecos da chuva. A caminho do cemitério, uma multidão em redor do caixão num silêncio abrasador. Lá estava no alto da colina, rodeado de cedros esguios, com escadas íngremes a anteciparem um enorme portão de ferro. Mas não entrei, ao chegar ao portão desci as escadas duas a duas e regressei a casa a correr. E a minha infância alterou-se a partir dessa tarde, desconfiado face ao silêncio e às sombras que povoavam a escuridão e, com a luz apagada, continuei a vê-lo por muito tempo, desmembrado, mas amistoso e paciente.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

A subida à montanha e as declarações de amor...


Subo a serra a passo firme. O sol governa o horizonte sem qualquer estorvo, as plantas faíscam raios de luz com o movimento das folhas e, pela primeira vez em muitos meses, recebo o seu calor como uma carícia prolongada. Algumas espécies vegetais vão ficando para trás como se não conseguissem suportar o peso da caminhada. Agora, apenas gramíneas me acompanham, rasteiras e inertes. Do lado esquerdo, a imensidão do vale, montes de um lado e do outro, simétricos e de linhas perfeitas como uma grande valeira de um rio misterioso, do lado direito a escuridão do pasto após uma queimada de Outono, com o cheiro da cinza a trazer memórias de lareiras de infância. O solo e ramos negros como se o mal tivesse pintado a encosta de tons nostálgicos e estéreis…

Depois de passar o moinho abandonado, invadido por silvas, guardiãs armadas que espreitam à porta, a subida acentua-se e cada vez mais sinto o vento a rodear-me, como lobos a escoltarem a presa. Deixei de ouvir os meus passos e ouço apenas os silvos que levantam a poeira onde tropeço. Por vezes, deixo de ver o trilho, escondido por baixo da vegetação, mas sei que o cimo da montanha continua por cima da minha cabeça, pendurado no ar. Com maior ou menor dificuldade chegarei ao cume. Parece tão perto…

A solidão arranha-me a alma da mesma forma que o vento me arranca a pele. Não há tortura física que me liberte deste mal que me reduz à minha insignificância metafísica. Posso esquecê-la, mas não consigo expulsá-la. Resolvê-la. Mesmo que um ruído ensurdecedor a esconda em meia-luz, virá ao cimo sempre que sonho com aquilo que sou. É nestes momentos de um isolamento extremo, quando o meu íntimo se torna barulhento - o ritmo acelerado da respiração e o eco profundo das palavras - que tenho a certeza de que não pertenço aqui, a este chão arenoso e seco, esventrado por estrias profundas de chuvas de outros Invernos. Sou incapaz de criar vínculos suficientemente fortes para forjar a minha pertença à terra. Vivo e morrerei fora de chão familiar.

Na aldeia da minha infância apenas resistem fantasmas de pessoas que outrora por lá andaram e as cidades transformaram-se num mar de gente sem nome, tropeçando uns nos outros, em movimentos pendulares como as ondas, perdidos e adormecidos. No final, morre-se tão incógnito como se foi em vida. Os cemitérios comungam do cimento espalhado por todas as clareiras, despercebidos na paisagem, colados a outros muros do mesmo tamanho que preservam poderes terrenos, e as fragrâncias dos corpos cremados indiferenciam-se dos fumos dos escapes e vapores expulsos pelas chaminés. A morte e a vida deambulam por locais estranhos, impessoais, sem comunicação com qualquer estreiteza. Levar os mortos para o lugar dos antepassados é o esforço simbólico para que o atilho perdido renasça com o cruzamento de seivas familiares, pela proximidade dos ossos que comungam de histórias longas de séculos. Mas a verdade é que não há lugar onde se repouse porque somos todos estrangeiros. Não sei de onde vimos, a vida é curta demais para ter acesso a todos os segredos.

Mas a escalada fornece vestígios dessa minha não-pertença, porque quanto mais me aproximo do cume menos vontade tenho de regressar. Por isso, meu amor, acomodas-me e sem ti não saberia o que fazer com a minha própria dissolução. Apesar de não ser a melhor razão, é uma boa razão para amar. Sem ti, seria impossível sobreviver a este espaço desguarnecido, seria inconcebível o peso das noites cavadas por silvos do vento que agora tentam amarrar-me ao cimo da montanha. Sem ti, o frio que me faz ter pesadelos e tossir a noite inteira forjaria uma aridez no tempo semelhante à vegetação rasteira e pobre do alto desta serrania.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O teatro e a vida...


Tenho quase a certeza que sabias que ao passar por ti o meu coração acelerava como um louco e que ao ver-te compunha uma personagem com gestos ríspidos como se tivesse uma doença nervosa. Tenho quase a certeza que no teu íntimo tinhas pena de mim quando arriscava uma conversa séria e inteligente e me escapavam apenas banalidades e recapitulações, prova evidente da minha infantilidade. Sabias que, mais cedo ou mais tarde, teria de expulsar aquele monstro que me corroía por dentro e saberias o que dizer por teres imaginado a cena, pincelada por pincelada.

Já sem forças para resguardar tanta energia desperdiçada em futilidades e viagens sem nexo, abordei-te naquele Domingo e abri a alma de uma forma tão crua que, em vez de testemunhar um afecto doce e acolhedor, parecia estar a despejar um fardo para cima de camioneta vazia. Falava da paixão como se fosse um cancro, algo tão disforme que ninguém poderia aceitar de mão beijada. É estranho, mas ao comentarmos o amor por alguém é como um mal que nos possuiu. Algo que preferíamos não ter e nos ameaça… Deixaste-me falar e repetias em voz baixa aquilo que ia dizendo como se adivinhasses palavra por palavra o meu monólogo, ao som da chuva que se abatia em cima do abrigo que eu segurava com as mãos geladas e olhavas para mim com a pena que já sentiras muito antes da conversa acontecer. Depois de um curto silêncio, - para não ser tão evidente a cena trabalhada e ensaiada - fizeste um belo discurso cadenciado, artifício que me fez lembrar os truques dos ilusionistas. Estiveste bem. Não me achincalhaste, nem feriste o meu orgulho, apenas aquele desprezo bem medido que não deixa margem de dúvida, mas numa linguagem meiga e sem rancor. Revelaste, mentindo, que tinhas sido apanhada de surpresa - logo eu, um tipo simpático que podia ter outras - e até cometeste inconfidência de saberes de uma pessoa que sonhava e que sofria por mim, tal como eu acabara de revelar sofrer por ti. A certa altura julguei que me irias aconselhar trocar de paixão como quem troca de carro usado, mas apenas ficaste no início do raciocínio sem tirares as devidas consequências. Achei bem. E no fim do que poderia ter sido apenas um simples não, ou um não com desculpas, atestaste o orgulho de seres o meu objecto de desejo, apesar de não ser a altura certa, não ser o tempo certo para nós.

E assim foi. Não repeti razões nem implorei reflexões mais cuidadas e caminhei ruela acima com os pés encharcados no meio da água que continuava a cair como nos pesadelos. Lembro-me que desisti de me abrigar na protecção que apenas preservava uma parte mínima de mim e envolvi-me na chuva como quem mergulha no rio. Em casa, à entrada, despi-me para não encharcar o corredor. O frio que rodeava a minha nudez fez-me sentir só como uma criança abandonada e tomei um duche longo e quente que causou um nevoeiro tão denso na casa de banho que no espelho não me reencontrei, apenas uma névoa espessa que não deixava antever qualquer realidade e permitia escrever com o dedo textos vazios de esperança. Deitei-me embrulhado em cobertores de lã ouvindo a chuva que lá fora continuava a tombar, levando consigo palavras, lágrimas e passos dados e ouvi o sino a dar as horas através de badaladas que iam aumentando na medida que a noite se ausentava devagarinho.

De manhã, senti-me livre como uma gaivota. Ao afastar-me de qualquer percurso teu, amadureci mais do que em todo o tempo que já tinha passado. A dor que sentia já não tinha origem na tua recusa de mim, mas na vida que dá e tira, a seu bel-prazer, aquilo que nos poderia fazer feliz. Percebi que nada poderemos esperar, apenas limitar-nos àquilo que emerge da vida e através dele começar, começar, recomeçar e tentar não desistir. Assim, soube que não era a tua falta que me fazia infeliz, mas o meu próprio vazio que nunca poderia preencher. Julgarmos que temos a felicidade logo ali à mão, tão perto como se fosse uma coisa, matéria quente que se pode comprar com um pequeno esforço, é tão cruel como de imediato percebermos que não é senão uma miragem criada pela nossa ânsia em trocar as voltas à banalidade da própria vida.

Após tantos anos, hoje fui procurar aquela noite e, de novo, sentei-me em frente do espelho embaciado pelo nevoeiro. Amontoaram-se memórias porque te encontrei, sem te procurar. Tudo aconteceu após um corredor comprido, sombrio, uma porta aberta, tal como uma boca de cena, e logo fui envolvido num cenário iluminado por meia dúzia de janelas, uns sofás cor de carmim espalhados como num bar nocturno e uns vasos espaçados com buganvílias, umas róseas, outras vermelhas e ainda outras alaranjadas. No meio de outros actores, encontrei os teus olhos em diálogo e pesquisando intrusos. Eu. E o teu semblante amanhecido pelo sorriso veio dar-me a mão e abrigaste-te debaixo da minha sombra como naquela noite de chuva medonha e desfizeste culpas e histórias mal alinhavadas pelo nosso andar errante. Concluí que nada do passado restou em nós, nenhum rancor, nenhuma culpa, porque os dois compreendemos que a felicidade não poderia ser consequência de uma noite de tempestade em que se representaram peças de fingimento bem alinhavadas. Apenas gostei de te ver, sem qualquer mágoa por não te ter tido. Limitei-me ao prazer de te olhar e sentir um brilho vindo de ti. Não falámos do passado, nem do futuro, apenas trocámos uns textos escrevinhados em folhas A4 para decorar e representar na próxima vez que os nossos olhos se encontrem, quando uma porta aberta invente cenários e um sorriso transforme o presente num dom que se procura.