I
Felisberta Semedo, cozinheira de profissão, auxiliar de limpeza durante a noite. Falta crónica de dinheiro obriga-a a ter dois empregos. Seriam mais se o dia fosse mais longo. Os filhos, três de um marido desaparecido, sobrevivem num andar comprado a prestações crescentes, no Tojal de Cima.
Uma rapariga de doze anos e dois rapazes de seis e quatro anos, respectivamente, esgotam os dias à frente da televisão e com brincadeiras na rua. Raramente vão à escola por falta de motivação. Como justificação afirmam que os professores não gostam deles. Vêem a mãe ao Domingo, estendida na cama, com as pernas em posição fetal. Dorme o dia inteiro e nem para comer se levanta. Grita, por vezes chora, implora que a deixem dormir, que se calem, que vão para bem longe. Eles saem, tristes.
Fome não passam. O frigorífico está repleto de restos de comida trazidos do restaurante, um dos locais de trabalho. Em geral, as sobras permanecem lá mais tempo do que deviam.
Tem uma face seca, povoada por sardas desiguais. Algumas são escuras e largas como se tivessem envelhecido precocemente. Os olhos errantes ainda emagrecem mais a face e tão pretos como o cabelo em desalinho. Veste-se de forma simples, uma blusa de alças em tons cinzentos e umas calças escuras, como se qualquer enfeite ou cor pudesse favorecer o olhar de alguém sobre si mesma.
Comprime-se contra a cadeira da carruagem para ser absolutamente invisível. Outros passageiros à sua frente olham-na mas não a confrontam. Possivelmente, não existe mesmo. Talvez saísse na estação anterior. Ou não veio trabalhar. Conseguiu adormecer.
II
Intendente. Ouve-se apenas o ruído da máquina nos carris. Todos passeiam por reflexões íntimas. Ninguém se olha como se qualquer olhar revelasse medo ou repercutisse considerações pouco abonatórias. As mãos seguras tentam não tocar qualquer outra mão imóvel ou qualquer parte do corpo mais próxima. O toque poderia ser mal interpretado. Chiam as rodas e abrem-se as portas. Ouve-se uma voz clara, tão alta como uma sirene: ”Intendente. Saiam as putas”. Um silêncio amenizado com alguns sorrisos surdos. “Vá lá não tenham vergonha, vergonha é roubar”. Abriram-se alas e lá mesmo ao fundo um senhor de meia-idade, com aspecto perfeitamente normal, falava mas não fitava ninguém. Tanto se lhe dava.
Ninguém saiu.
III
Voltei à estaca zero. Com saudade do futuro, como se não aguentasse o presente envenenado. Regressei no limite, o único tempo que não permite desilusões, mas quando é necessária mais descontracção maior é o peso da intranquilidade. Horas e horas no rescaldo de uma crise. Saber para onde se vai e não ter qualquer certeza se deve ficar ou partir de novo.
O repouso de uma certeza não impede outras desconfianças. A certeza não acalma, a certeza apenas pacifica esse pequeno campo do espírito. Mas já é alguma coisa essa pequena bondade neste enorme comércio que somos nós interiormente: damos em troca um lado negro, recebemos um paliativo e continuamos a protestar por aquilo que ficou pendente.
A carruagem cheia como um ovo. Os suportes de mãos, semelhantes a cordas de enforcados, estendem-se enfileirados pela carruagem e sempre que pressionados soltam ruídos metálicos cansativos. Parecem prontos para sustentar assassínios em massa, numa qualquer ditadura terceiro mundista.
IV
A um-quarto-para-as-nove ninguém fala nem mesmo para pedir desculpa de um recontro involuntário. Todos mantêm o semblante assustado de quem acordou aos gritos. Dormir é sempre mais natural do que vaguear pela vida, como se a maior ambição de qualquer ser vivo fosse um sono profundo e não a vida vivida a todo o gás. Alguns fecham os olhos alargando o mais possível o espaço exterior da realidade. Cabeças que pendem de um lado para o outro ao sabor das curvas. Vão escoando à medida que as estações aparecem e desaparecem numa atitude submissa a algo ou alguém que não eles.
Mas às vezes fala-se. Alto. Geralmente, eslavos ou chineses naquele linguarejar tão absurdo que os olhamos fixamente para atestar que não brincam com os vizinhos. Com desassombro, gesticulam, discutem, exprimem-se e no meio do mutismo torna-se quase irreal a presença de personagens que no meio do palco interpretam actos de uma opereta bufa. Sem legendas.
Ontem, pendurado num apoio, reparei que alguém ao meu lado me fitava e me interrogava: “Ouça lá, não acha estranho que aumentem os passes e depois esbanjem dinheiro com mariquices?” Não sabia do que falava, constatava apenas o seu tom sério e arrasador.
Era pequeno, com enormes vincos na cara, como se a preocupação presente o abatesse aos poucos desde sempre. Cara redonda e olhos baços. Desgrenhados. E continuava: ”então já viu a despesa que deve representar ter em todos os comboios, uma senhora a repetir “próxima estação Roma”, próxima estação Alvalade”, então quem vai trabalhar de manhã pode dar-se ao luxo de esquecer ou ignorar a estação seguinte? Já viu que a grande maioria desta gente anda sempre a correr e não tem tempo para se enganar?
Olhava-o com temor reverencial. Como se o teor fosse a mensagem que esperara desde sempre. Uma espécie de revelação divina saída das agruras de um humano sofredor. Nada lhe disse mas fiz um semblante de consentimento à sua preocupação. Julgo que devemos ser parcos, pelo menos ao lidarmos com dinheiro público. E também não gosto das informações impertinentes para se saber onde se está. Prefiro a ignorância.
Ele afastou-se quando lhe mostrei claramente que deixara de o ouvir e continuou a falar sozinho ao longo da carruagem. Ninguém mais se mostrou interessado nas suas reivindicações, ninguém mais se acomodou à sua tristeza. No Metro não se fitam os passageiros que falam sozinhos. Mas crescem em número e talento os que se desprendem de si mesmos e buscam a atenção de desconhecidos, sintomas de uma desordem humana que se estende.
IV
Há cada vez mais gente a pedir nas carruagens do Metro. Quase todos invisuais. Funciona melhor. Os pobres já não convencem tanto, os estropiados garantem apenas alguns beneplácitos, os cegos representam a fatia dos maiores beneficiários da esmola alheia. Talvez por moda e, penso, um dia serão mais abençoados os coxos, surdos ou com hepatite B, ou então simplesmente aqueles que admitem apenas ter fome, testemunho deixado aos que passam em cartão velho. Neste momento o êxito vai todo para os ceguetas.
Logo às nove-menos-um-quarto! Olhos vendados por membranas disformes, como que trabalhadas por cirurgiões plásticos às avessas, caixas pretas penduradas ao pescoço e com ranhura para as moedas. O teor das súplicas é idêntico ”uma ajuda se faz favor”, a mesma voz metálica, igual semblante impenetrável. Conheço três dos mais habituais. A senhora que masca pastilha elástica e que por vezes leva uma de braço dado parceira também invisual, outro tresanda a suor de semanas e um terceiro que toca gaita-de-beiços enquanto a bengala de invisual marca o ritmo. Sinceramente, sinto-me desconfortável quando os encontro. Acho-os pouco credíveis nas necessidades propagadas e não são suficientemente humildes para provocar a caridade humana. Apenas a deficiência física justifica a dádiva.
Mas há outro motivo para o desconforto. Numa fase do dia em que o espírito ainda se tenta equilibrar para o confronto com a realidade, de rompante, levamos com a miséria ou com a ganância. Será que pagam o bilhete para entrar? E será que têm necessidade mesmo? E em carruagens apinhadas de silêncio os passageiros em pé encostados uns aos outros por falta de espaço e a voz – a mesma voz metálica – inclina-os para a frente ou para trás. Quem vê os movimentos do fundo da carruagem vê a força invisível que os espanta ao mesmo tempo. Como se uma tempestade vergasse por momentos canas verdes e a bonança as reconduzisse ao equilíbrio. Com uma inverosímil bengala no chão, cronometram os passos de forma a passar a pente fino a carruagem até à estação. Depois correm para a carruagem da frente como se os olhos se iluminassem. Mas deve ser o hábito. E tudo recomeça.
V
Dia de sol tão azul que me esqueço da sua pertença a um Outono já velho. Em vez de me encostar à tarde após o almoço, deambulando sem rumo pelas avenidas baixas, tive de regressar ao metro das catorze, para encontrar as botas ortopédicas da Madalena.
É um Metro diferente, o das catorze. Mais prazenteiro. Os utentes entram mais calmos sem aquele sintoma de abutres perante o lugar ainda disponível. Sento-me e na cadeira da frente reconheço um passado perdido em qualquer sítio. Depois de uns segundos de busca identifico a filha de um general, colega num curso longínquo e portadora de angústia incontrolável, diariamente reafirmada. Agora os vinte anos passados pareciam outros tantos pelas marcas visíveis numa face contraída.
Levantei-me de rompante, percorri a carruagem e sentei-me lá bem no fundo. Senti-me culpado por não ter dado um cumprimento mas não me senti capaz de saldar dívidas em silêncio de duas décadas e ter de prolongar qualquer conversa para além do limite imposto pelo tempo da viagem. Se noutro encontro fortuito comentasse a indelicadeza do facto dir-lhe-ia que a reconheci mas tenho o hábito de mudar de lugar durante os trajectos. Nós os perturbados acreditamos nas coisas mais banais e mais irreais.
Depois, num Centro Comercial, por momentos descobri outra cara familiar. Não sei de onde. Quanto mais a história individual se desenrola em cenários diversificados mais difícil é encontrar a simetria perfeita entre a forma e o nome de pessoas que se cruzam connosco. São tantas as personagens que temos de nos resignar à solidão proveniente de olhar os outros sem reconhecer o seu nome.
Na vinda, pensei que as duas coincidências numa só tarde mostravam que os quatro meses após o regresso a Lisboa começam a dar frutos. É como se a cidade se revelasse com os conhecidos, não com eles próprios, mas como se a sua aparição fosse consequência da minha pertença à própria cidade.
Afastei de imediato a conclusão. Nunca farei parte da Lisboa como faz parte quem lhe pertence. Não sou daqui, não sei de onde sou.
VI
O Metro é o método mais célere para chegar. Não há semáforos, não há cruzamentos, em dias de chuva não aumenta o volume de tráfego, não há atrasos acidentais. De vez em quando há avarias, mas são raras. Quem anda de Metro mostra aquela convicção de quem chega a horas, marca encontros com mais rigor, nunca diz “bom, depende do trânsito”.
Mas a um quarto-para-as-nove, quando as portas se abrem as pessoas correm pelos corredores, escadas abaixo. Raramente se vê alguém despreocupadamente na saída. Procura-se um lugar numa meta qualquer, com prémios à chegada. Corre-se para um nada que tanto pode ser um autocarro, um patrão severo, um relógio castrador, um encontro, cinco minutos a mais com a filha em casa antes dela dormir.
VII
O dia-a-dia é incompatível com o dia-apenas. O dia-a-dia é a sucessão cíclica de pequenos gestos enquadrados na utilidade, o dia-apenas resulta de um acto consciente de quebra. Como se, por golpe de mágica, ganhássemos autonomia na indefinição do tempo e por vontade negássemos o futuro pelo não cumprimento de seguimentos passados.
Um dia-apenas significa, fundamentalmente, não poder pensar no dia de amanhã. Não poder pensar indica que nada posso saber sobre ele. Um sono profundo que o agarra à cama e o liberta de compromissos, um almoço adiado por lanches esguios, um fechar a porta de casa sem regresso marcado. O amanhã, um dia-apenas, será sempre um dia sem conceito. Um dia sem conteúdo, irresponsável. Sem qualquer garantia de abalada ou de chegada. Um dia tão aberto que parecerá um ano inteiro, sem o constrangimento das horas de que é feito; permanecerá como uma abertura ao infinito. Por isso é que há dias que merecem uma vida, milagres de criação individual, sementes de histórias.
O dia-a-dia é, pelo contrário, um dia repleto de conteúdo que permite com antecedência saber tudo acerca dele. Como se a existência dependesse só da essência de ser um seguimento inalterado de segundos, minutos e horas. Poderíamos prescindir dele que não faria diferença; não deixa marcas, não vai entrar em qualquer domínio da ficção, não poderá ser lembrado por qualquer circunstância nova, por ténue que seja. O dia-apenas é sempre um dia para guardar. Mesmo que nada de grande aconteça, ele próprio é já um acontecimento. Não se deixa manietar por nenhum preconceito, subsiste sem que a sua subsistência se deva ao mês ou ao ano a que pertence. Por isso a nossa vida é sempre representada por dias e não por anos ou meses. Foi no dia tal que nasci, no dia tal que ganhei coragem, num dia que quebrei laços, noutro que os forjei…A nossa vida resume-se, unicamente, à existência de dias-apenas.
Já nem me lembro de um dia-apenas. E estes que me perseguem em carruagens pejadas de tédio com um olhar mortiço contra os vidros, não me parecem dispor de dia-apenas. Como se as histórias dos dias-de-anos se rendessem à crónica iniciada no metro de um quarto para as nove e finda no metro de regresso das dezanove e trinta. Como se a nossa vida se justificasse por poucos dia-apenas enquanto as outras décadas, vazias e fugazes, se esfumassem na penumbra de muitos dia-a-dia, sem lembranças, sem compromissos com a vida.
E depois chega-se a casa com a cabeça feita em merda por chatices, tão pequenas como as chatices são e com falta a paciência para os filhos que querem jogar à amiga, para a mulher que quer jogar às palavras, para a televisão que quer jogar com emoções. E ganha a cama que quer jogar às fadigas e em dois minutos dorme-se tão cerrado que não existe nada para além daquele sono. E os sonhos remetem para aqueles dia-apenas que tardam em chegar, imagens, gestos e opções que manifestam a vida que não se procura ou não se encontra.
E o regresso ao metro de manhã tem-se a nítida sensação que já se viu aquele filme, caras que são tão iguais que julgamos nunca nos separámos e no escritório os processos são os mesmos, as mesmas respostas, as mesmas asneiras, as mesmas chamadas de atenção, os mesmos pedidos de apoio. O mesmo objectivo.
Mas continuamos na expectativa de um dia-apenas. Será dramaticamente novo, como se nada houvesse com tal novidade. Mesmo se o Metro co-existir num dia-apenas terá carruagens de cores vermelhas, nas janelas surgirão imagens verdes, desorientadas e frescas e estofos limpos onde nunca ninguém se sentou e eu vou gostar de andar pela primeira vez num Metro sem qualquer passado, tal como eu.
VIII
As duas únicas grandes certezas que temos são a morte e o nome. Talvez mais a certeza do nome do que a morte. Não nos podemos livrar de nenhum e se vamos conseguindo afastar a morte, o nome coze-se a nós como lapas às pedras molhadas. Quando pensamos ou falamos, sou eu o fulano de tal que pensa, espera, refila. Toda a nossa individualidade se concentra e tem sentido por aquela nomeação; toda a nossa vida é em si mesmo uma tentativa de esquecer o nosso destino trágico. As variações, as distracções que levamos a cabo insinuam fugas para o esquecimento, quantas vezes também gostaríamos que essa individualidade que nos afronta não tivesse um marco que lhe atribui a consequência das nossas decisões.
Enquanto o nome nos dá a vida, a morte retira-a. Um faz-nos existir, o outro remete-nos para o nada. Se bem com uma reticência: a morte retira-nos a vida mas não o nome. O nome continuará a identificar um ente que se mantém vivo na memória dos que têm nome.
E estes que se encostam à carruagem tal como eu, têm nomes que desconheço e por isso não existem. O mesmo se passa de mim para com eles. Como se as personagens, figurantes de um filme qualquer, fossem apenas reflexos de uma imaginação qualquer, de um realizador qualquer. Mas têm nome e têm vida fora daquela carruagem, em vidas paralelas à minha, onde viverão reencontros e horas e dias tal como eu. Pelo menos acho que assim seja.
IX
Encontrei um amigo no metro, um amigo verdadeiro. Ele não me encontrou, encontrei-o eu. À mesma hora todos os dias à saída do metro no Rossio. Seria impossível ser ele a encontrar-me, é cego. A primeira vez que o vi entrou numa carruagem onde eu já estava sentado. Vinha acompanhado por uma mulher, de cabelo de ouro e ambos sentaram-se à minha frente. Ambos à volta dos quarenta anos e sem uma única fala durante a viagem. Imaginei a vida deles em conjunto, o peso do silêncio, as traições do olhar, discussões que não seguem o olhar do outro, a dificuldade de reconhecer a verdade do que se diz ou não se diz. Depois considerei com exactidão que alguém que viva com um invisual tem de olhar duas vezes a mesma coisa e repeti-la por palavras e há tantas coisas que não se conseguem dizer por palavras. O silêncio com um cego é sinónimo de ausência, não de aconchego. Falar deve ser o único sintoma de presença. O toque não chega, porque é fácil falsear um toque! A certa altura mudámos de linha e notei um afago dela no braço dele, comprimindo o braço com a mão e umas palavras breves que me escaparam.
Entrei na Linha Verde e mudei de filme, outras personagens se avolumaram num novo ecrã. A história anterior teria ficado perdida se dias mais tarde não o reencontrasse no Rossio. Afinal, naquele dia fez o mesmo trajecto mas a distância e o ritmo dissonante dos passos separou os nossos comboios. Ia de bengala em riste em direcção a um obstáculo e uma senhora adiantou-se, pegou-lhe pelo cotovelo, disse-lhe qualquer coisa, ele sorriu e acompanhou-a num passo decidido. Passei por eles a correr com o temor de ser engolido pelo tempo. Ando sempre assim, a querer não perder uns míseros segundos iguais a tantos outros…
Mas dias depois, - os cenários são tão semelhantes não permitem identificar os dias que entretanto se passaram, - vi-o de novo, naquele movimento decidido, de semblante seguro e sem pedir ajuda a ninguém. Estava mesmo à minha beira, passei por ele. Não quer esmolas, pensei. Depois, talvez por aquele passado de coincidências atrasei o meu passo, aproximei-me, pequei-lhe no cotovelo e guiei-o para as escadas. Sussurrou um obrigado quase inaudível e junto às escadas retirei a mão como se já tivesse dado a chave do puzzle. Ele não fez qualquer movimento de reparar a distância, ele ficaria para trás envolvido com o som metálico da bengala, mas houve qualquer sinal que me fez recuar e agarrei-lhe de novo no braço e perguntei-lhe o destino. “Rua dos correeiros, faz favor”, “onde é?” perguntei eu. “Uma rua entre a rua dos Fanqueiros e a rua do Ouro”. E passámos o átrio, subimos as escadas e chegámos à Praça da Figueira sempre em silêncio, da minha e da parte dele. Como se o acto de o levar fosse tão natural que não precisasse de agradecimentos dele nem de justificações de mim enquanto táxi humano. Como se a nobreza de um cego que anda à procura de um destino fosse infinitamente maior do que o gesto que o guia. Quando cheguei ao seu início, confirmei o nome na placa e disse-lhe um bom dia claro, com uma voz sem uma entoação original. Ele respondeu bom dia, sem mais.
Passaram-se semanas até que o revi, no mesmo sítio, adiando a decisão da direcção a tomar. Aproximei-me mais seguro e com uma voz mais familiar. Reconheceu-a, como está, mas não fez qualquer movimento físico de aproximação. Como se o facto de o saudar não fosse obrigatório a ajuda na caminhada. O mesmo que saudar um conhecido não implica acompanhá-lo. Quer separar bem dois actos. A saudação não obriga ao acto de guia. Mas eu acompanhei-o. Se existe qualquer sentimento de alívio da sua parte não o mostra. Profissão de telefonista e escreve num computador. Simples, de sorriso límpido. Sem as mágoas que geralmente atribuímos às pessoas manifestamente infelizes. O António não me parece que o seja, pelo menos mais do que o normal das pessoas. Pelo contrário.
Como o seu horário é idêntico ao meu o desencontro será fruto de uns breves minutos, talvez de um simples comboio. Sempre que o revejo não me desculpo pelos dias em que a minha passagem não coincide com a dele. Ele não se refere ao tempo entretanto decorrido, nem declara a bondade da coincidência. Terá outros amigos no Metro que o acompanham até à superfície e lhe indicam a direcção certa.
Ando sempre a correr contra aquele tempo que me magoa por não esperar por mim. Não que eu tenha muito para fazer, mas porque acredito que o que tenho para fazer é necessário terminá-lo antes que os outros o achem atrasado. Mas tal como hoje, sempre que o António sai da carruagem como a bengala em riste enfrentando o desafio, nunca fujo. Prefiro levá-lo à Rua dos Correeiros, não por ele, mais por mim. É como se o tempo a mais que gasto até lá chegar fosse a minha salvação perante um tempo que se vai embora sem me levar com ele.
De quê? De nada…
X
Quando deixar o Metro as histórias serão outras. Vai fazer-me falta. Trajectos e rituais que já são parte da minha vida. Claro que continuarei a utilizá-lo mas já não será o mesmo. Já não fará parte do dia como hoje acontece. Significará também um regresso e um abandono de um ritmo que me causa alguma resistência e amanhã causará saudade. Foram dez anos fora da Escola, sem o stress da aula seguinte, sem o cansaço do falar até doer a garganta.
Terminar as viagens diárias no Metro significa entrar igualmente noutros subterrâneos da alma. Ter mais tempo, mais momentos com a pequenina. Agora preparo o ninho. No local dos livros lá em casa, procuro uma caixa de música e um sofá confortável para me acolher. Será o meu poiso. Aí espero encontrar novas saídas.
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