quarta-feira, 5 de novembro de 2008

A Encruzilhada


A mim ninguém me alumiou o caminho. Cresci à custa de mim mesmo, às apalpadelas e a partir dos livros. Os amigos não apontam trilhos, com eles aprendemos que teremos de os palmilhar seguindo a nossa própria intuição. E desde muito cedo tive de pegar nas rédeas, não tive tempo para me espreguiçar ao sabor de um tempo morto. Vivi sempre com noção do dever no horizonte, com as culpas de pecados menores e com a ânsia de quebrar tabus. Uma vontade inquebrantável de me tornar adulto. Levou tempo até que me habituasse à dureza da própria vida, mas enfrentei todos os desafios com a coragem de um forcado. Talvez por isso quando me propuseram casar naquela tarde de Setembro, - num lusco-fusco com cheiro a folhas secas e no meio de um pó luminoso que desenhava espirais à minha volta -, concordei de imediato. Era mais um desafio como outro qualquer. Ela abriu os braços para me aquecer das intempéries e deixei-me levar pela aventura. Ambos desconhecíamos para onde íamos e era isso que nos aproximava.

E fomos em demanda da felicidade sem sabermos o que isso era, mas partíamos do presumível de que estaria mais próxima quanto mais os outros e o mundo se distanciassem de nós. Quebrámos laços e ninguém soube de nós durante anos. Numa auto-caravana percorremos lugares incógnitos, espaços de perder de vista, repetindo-se em formas e cores em dias sucessivos. Contactámos gente com linguagem incompreensível e só por gestos nos entendíamos. Não tínhamos calendários nem relógios, trabalhávamos pela urgência de dinheiro e adormecíamos durante dias quando o estômago se saciava. Mal falávamos e nada sabíamos um do outro. Encontrámos o silêncio e com ele resolvíamos os problemas de pele. Um dia, ao chegar, encontrei a casa tão vazia como se um buraco branco engolisse tudo o que era familiar. Sem mensagem, ela saiu com o mesmo silêncio com que nos defendíamos um do outro. Aliás, nunca mais a vi. Pressentiu que a vida não é um campo indefinido, não é tão clara como um amanhecer primaveril e nunca poderá ser tratada como um caminho descendente, sem obstáculos, por onde se escorrega como num artefacto de feira. Teremos de ter projectos e desejos, pois sem eles um vazio cresce e torna-se tão disforme que tritura os próprios ossos. Soube mais tarde que tinha filhos que saltitavam para o seu colo como gatos siameses, uma casa de uma dezena de assoalhadas de onde se via o mar, com vasos de flores coloridas que transformavam as varandas em jardins e até os cães tinham colchões ortopédicos.

E fui aprendendo, mas continuo em viagem. Agora já falo com aqueles que me pedem boleia e ouço-os atentamente nas suas neuras e melancolias. Consigo largar algumas lágrimas perante o seu desconforto e consolo-me com a sua desventura. Encontro-me naquela encruzilhada de poder saltar para o mundo dos humanos ou continuar em frente na tentativa de encontrar um precipício que clarifique de uma vez por todas este desejo enorme de insolvência. Por vezes, reconheço lugares por onde passo e convenço-me de que desde o início da viagem ando em círculos, como se não conseguisse afastar-me da minha própria sombra. Vou coleccionando razões para estacionar num destes dias...

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O Antiquário


Era louco por antiguidades. Derretia todos os bens em trastes de todo o género, a maioria deles sem certificado de garantia. Perante a possibilidade das falsificações justificava que, mesmo assim, qualquer objecto de estilo antigo era mais valioso do que as modernices, todas semelhantes e sem alma. Em casa, prateleiras atravancadas de santos, pratos e artefactos diversos, tudo se entrelaçava como se uma máquina do tempo tivesse baralhado os séculos e fizesse colidir tudo no mesmo espaço.

Os poucos visitantes que se aventuravam na pesquisa percorriam as salas direitos como um pau de vassoura, sempre na eminência de colocar em crise a história universal ou a culpa própria. A atmosfera era de tal forma constrangedora que o receio de que um gesto menos medido pudesse causar um grave dano à civilização, retirava o prazer da contemplação dos objectos, dando lugar ao tédio e ao desejo inconsolável de sair dali para fora.

Dos amigos, guardados com idêntico esmero, afirmava que a melhor qualidade que lhes concedia era olharem o passado como o seu próprio destino. Nos encontros à volta de cigarros em noites vagarosas, a melancolia voltava-se contra a pouca vergonha dos novos que perdiam a memória e as referências para se transformarem em imitadores reles de modas e gostos estrangeiros. Ao mesmo tempo que os olhos se emudeciam ao celebrarem personagens históricas com uma estatura moral à prova de bala e de cultura tão densa onde era difícil alguém penetrar.

Ora esta paixão pelo antigo motivou o conúbio com uma velha gaiteira que detestava velharias e a ela própria, por já ser uma. Conheceram-se num antiquário em Lisboa, ele para dar vazão à neurose, ela funcionária da casa havia trinta anos. Após namoro rápido, casaram numa ermida do século XIII, abençoados por um Cónego tão velho como o próprio santuário. A lua-de-mel inebriante decorreu numas ruínas do sul de Inglaterra, onde menires e outros monumentos megalíticos enfrentavam o céu com sobranceria. Ele adorava morder-lhe as reentrâncias, fazer-lhe cócegas no bócio, amaciar as vergas e acicatar-lhe as rugas, o que deixava a mulher em estado de choque, pois ao invés, ela pretendia esconder-lhe os labéus à custa de cremes, pregas e roupas justas. Mas amava-a desalmadamente mais do que qualquer antiguidade com o argumento que era a única com potencialidades para envelhecer a olhos vistos.

Este prazer do arcaico, já com deficiências, vinha da infância. Sempre detestara ser novo, pois ninguém o deixava em paz pelo facto de o ser e quando adulto ainda era suficientemente novato para as enormes expectativas dos mais velhos. Só quando a idade lhe permitiu ser velho conseguiu ser dono de si mesmo e começou a viver. A colecção principiou-a com um Santo António de cedro do mato que encontrou no espólio de uma tia solteirona, depois algumas peças foram-lhe parar às mãos de forma errática, até à recolha criteriosa e infatigável de muitas outras preciosidades. Livros com lombadas rasgadas, instrumentos musicais com cheiro a naftalina, móveis, cerâmica. Sempre com uma atitude contrária à lógica do museu: em vez de usurpação, retirando as coisas do seu lugar natural, tudo fazia para que as peças adquiridas mantivessem a sua função original, partilhando-as com a vida como se ainda existisse o seu próprio tempo.

Um dia, confidenciava a um colega de trabalho que estranhava essa propensão para o antigo: “Há aqueles que convivem pacificamente com o seu tempo; outros buscam no futuro saídas para a mediocridade do presente; outros há que encontram no passado o sentido para a vida. Estes poderão ser historiadores, filósofos e antiquários. Destes últimos, a maioria por razões comerciais. Poucos com o firme propósito de não deixar o passado por mãos alheias e contribuir para a sua dignificação e segurança. É o meu caso. ”