quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Fogo-Fátuo


Quando era imberbe como um grão-de-bico antes de se pôr de molho, a vida era pautada pelo tempo atmosférico. Se o sol surgia risonho e no horizonte despontavam nuvens claras como algodão doce, então as brincadeiras na rua prolongavam-se até ao anoitecer. O muro do senhor Carmindo era a paragem obrigatória dos membros da corporação que iam surgindo ao sabor do acaso. O primeiro a chegar esperava. O César Carriço, cabelo à escovinha e remoinho na testa, Zeca o bombo da festa e pedaço de tareia de todos, o Tó Rocha que gostava de brincar mas só á sua maneira e eu que não podia passar sem eles.

Mas quando o céu se desmoronava e se desfazia em água, os amigos não se juntavam por falta de poiso e cada um tratava dos seus próprios devaneios. Então, por baixo da choupana, braços sobre os joelhos e mãos nos queixos, passava horas a espiar as pingas caindo apressadas dos beirais, com medo de as provar por ser água do céu. Nesses dias escuros o tempo era mais pachorrento, a humidade emperrava os carris da história, mas a chuva bastava para que o horizonte promovesse a auto-descoberta e o rumo fácil das fantasias.

Aos Domingos, com chuva ou sem ela, a tarde era por conta das irmãs salesianas, seres frágeis, de cabeça oculta e um babete alvo no hábito preto. Todas tinham aquele ar de santas de altar, carinhosas e calmas e vivia na expectativa de, repentinamente, alguma ganhar asas e operar milagres, semelhantes aos dos santos que, invariavelmente, constavam dos sermões do Padre Agostinho. Só que o tempo foi passando e já eu andava em bolandas com uma adolescência difícil quando soube que a maioria delas tinha fugido da santidade como se o tivessem combinado em conjunto, de forma a viver a vida como toda a gente. Se hoje respeito a decisão, na altura encontrei nessas notícias sinais do advento do belzebu que não brinca com coisas sérias, pois enquanto a infância decorria nunca olhara aquelas senhoras senão com olhos de respeito que se deve a seres de outro mundo, todas tão bonitas e perfeitas como bonecas de porcelana. Como não mostravam os cabelos e traziam sempre uma farda limpa e engomada em nada se assemelhavam às outras pessoas, habitualmente sujas, arrancando batatas e plantando couves.

Além da rua nos dias solarengos, a choupana nos temporais, o Colégio Salesiano aos Domingos e feriados, víamos televisão no dia 13 de Maio se o Papa visitasse a Cova da Iria. Juntávamo-nos em casa do senhor Gouveia, proprietário de um aparelho maior que uma arca congeladora, adquirido com pecúlios ganhos no Congo. Permanecíamos em silêncio e com as costas direitas em sinal de respeito, horas infindas de transmissões numa era histórica em que o País andava mais devagar que o carro de Sua Santidade no meio da multidão. Fora isso esperava-se em temulência o futuro. Espera desconsolada porque em criança o tempo é um adversário tenebroso pela demora infindável nas voltas que dá.

Mas tenho saudades dos fins de tardes que desapareceram à custa das telenovelas das sete, telejornais das oito e programas de variedades pela noite dentro. Devido às modernices de olhar o mundo por um funil em vez de nos olharmos uns aos outros, perdemos o pôr-do-sol, etapa do dia onde as pessoas falam melhor de si mesmos e o início da noite quando a imaginação nos transporta para fora de nós. O grupo, ao invés, num banco de pedra, contíguo à casa da Senhora Alice, saltava os assuntos como um atleta de barreiras, sem preocupações sistemáticas ou de rigor. Apenas havia temas que exigiam maior esforço, silêncio e gravidade nos gestos, como o destino do mundo e almas penadas em excursões por cemitérios. Quanto ao destino do universo buscávamo-lo entre as estrelas que começavam a despontar na noite, encontrando nelas olhos divinos que nos vigiavam e uma malta celeste apontando em caderninhos narrações completas das vidas de todos, tal como o senhor Rocha fazia das mercadorias a fiado. Das almas penadas piava-se mais fino.

A Ti Carriça, mãe do César, sabia mais de mortos do que dos vivos. Ficou viúva antes do tempo quando o marido ao auxiliar uma manobra de um camião em marcha-atrás, não reparou que auxiliava a sua própria morte e foi esmigalhado contra uma árvore que já lá estava há muito tempo. Após o acidente, a sua vida esgotou-se na chegada a casa e no tempo de dar três voltas à mesa da sala. A ausência de sentido dos círculos antes do último suspiro perseguiu a viúva durante a vida e a mim pela infância fora, exigindo algum significado esotérico que não se vislumbrava, nem mesmo agora, trinta anos depois.

E se a Carriça olhava a morte com a naturalidade de uma ementa diária feita de caldo verde e broa de milho, nós, os miúdos, escutávamos com temor aquele ser vestido de negro mas iluminado por fogachos de entusiasmo. Discutia a morte com as certezas reservadas aos videntes, descrevendo o amontoado das almas como uma mistura de sopros de fumos de várias cores, tipo arco-íris de defuntos, claramente visível à noite nos cemitérios, como se quisessem demonstrar aos vivos que após a tempestade virá a bonança. No meio das descrições tétricas, com olhos esbugalhados de tanto medo, ouvia a voz da minha mãe a chamar-me para o jantar e subia a correr as escadas de pedra, com limites marcados por vasos cheios de sardinheiras vermelhas. Empurrava a porta da cozinha, do interior saltavam cheiros a sopa e chouriço caseiro, vindos de panelas de ferro escuras, arrumadas à lareira. Comia com tanta pressa que mastigava só metade e pedia o tempo ganho para ouvir o fim da história das almas coloridas e das estrelas que não são mais do que olhos de um céu cheio de luz por dentro.

E depois das sessões iniciáticas, deitado na varanda, contava estrelas, apesar da ameaça de cravos nascidos entre os dedos e pressentia que quando a idade fosse menos preguiçosa teria mais respostas do que certezas e encontraria o meu caminho sem ter que comer sopa à pressa e ouvindo as histórias até ao fim.

Afinal, a criança que era fugiu tão rapidamente que nem sequer tive oportunidade de me despedir. Ao olhar para trás, tenho saudades das estrelas que brilhavam mais do que hoje, da sopa e do chouriço caseiro da minha mãe, da Carriça viúva e tão gaga que uma história tinha o valor de duas pelo tempo que demorava. Não sei se é viva ou se a sua alma lança fumo no cemitério, mas se exala será bem colorido, pois o estado que sucede a uma tempestade com cinco filhos menores, após o marido forjar ocasião da sua própria morte, terá de ser ilustrado com um enorme arco-íris.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

As Carpideiras


Estou apreensivo quanto ao destino dado às velharias que adormeciam em casa dos meus avós. Com o entra e sai de gente a fim de olhar os dois caixões tão juntinhos como números das dezenas, naquela confusão de lágrimas, de flores e de cheiros fortes, receio que muitas realidades tivessem morrido no coração dos viajantes. E digo isto porque no final das cerimónias fúnebres entrei em casa, com portas escancaradas, e senti um vazio terrível nesse espaço tão familiar, outrora emoldurado de pratos - cavalinho, rocas, fusos e quadros tão gastos como sugestivos. Pareceu-me tudo tão despido e sem significado que nunca mais voltei.

Não se deve confiar nas carpideiras, essas criaturas necrófagas que não perdem por nada deste mundo a cara inexpressiva de um morto. Em vez da natural decência, quase pudor, perante os féretros, a morte atrai-as mais do que a vida e caras lívidas tornam-se familiares só pela pertença continuada em funerais. O tom melancólico dos sinos, ao dar o sinal de morte, faz correr a morada do morto pelas ruas da freguesia e em passo apressado chegam à residência em fila, como em carreiro de formigas, embrulhadas em luto e arrancando tantas lágrimas delas próprias como se a sua dor ultrapassasse a infelicidade dos íntimos. Mas como a quantidade de pranto sempre foi sentida como proporcional à dor da ausência de quem parte, são bem acolhidas para desempenharem a sua função, enquanto os familiares resolvem problemas menores e práticos, tais como enterrá-los de acordo com normas legais vigentes e dar comida aos resistentes.

No meu caso, quando tudo aconteceu, era tão pequeno como um pirilampo e só davam por mim por atrapalhar os movimentos dos mais velhos, tão firmes nos objectivos e nas convicções. Mas nesse dia cresci tanto que me tornei adulto de um momento para o outro. As pessoas entravam na sala, benziam-se, circundavam a urna e apertavam-me a mão, afirmando com ar pungido “os meus sentimentos” e, num misto de tristeza e de surpresa, endireitava-me para esconder a minha pequenez, pois há sempre quem pense que os índices de sofrimento perante a morte variam consoante a idade do perdedor. Mas havia alguns romeiros, desconhecidos, que após a apresentação de condolências, se sentavam e choravam tanto ou mais que eu. Não vou dizer que não senti alguma culpa pelo facto, mas ao passar em memória aquilo que o avô me ensinou, concluí que não deveria chorar, mas identificar aqueles momentos como pequenos pormenores do muito que restou da convivência mútua.

Ainda por cima, após divulgada a notícia que a mulher do meu avô morrera nesse mesmo dia, como exigindo ser sepultada ao mesmo tempo, a história correu depressa e muitos outros vieram. Em geral, os assuntos da morte são mais apelativos que quaisquer mistérios da vida e a alma popular acredita que se possa morrer por um querer muito forte. Mas, quando acontece, merece da parte de todos a reverência, porque retrata a presença de alguém que manteve na mão, até ao fim, o seu próprio destino. Por esse facto, a família solicitou permissão às autoridades para que o funeral dele esperasse o dela, e o avô ficou exposto mais do que seria normal e o cheiro a flores fora de prazo confundia-se com um odor de homens e mulheres amontoados em estadia prolongada.

Como testemunha privilegiada poderei contar como tudo se passou. Após a verificação da morte mais que esperada do meu avô, ela não se emocionou nem deu qualquer mostra de desânimo. Andava de um lado para o outro em movimentos decididos como era habitual nela, lavou o marido, vestiu-o, arrumou a cozinha e no fim de tudo exclamou “agora chegou a minha vez” e fitou-me com olhar inexpressivo. Não entendia aquela falta de emoção, como se pretendesse esquecer o facto, até que se sentou a um canto da sala, onde o caixão aberto pendia sobre uma mesa. Com um xaile preto por cima da cabeça, tão pequenina e enroscada sobre si mesma como um ouriço-cacheiro, imóvel, até que, horas passadas, ao ser incentivada a comer qualquer coisa, sacudiram-na e caiu no chão desamparada. O Delegado de Saúde assegurou que teriam sido problemas cardíacos, mas sempre afiancei que morreu por vontade própria. Além do cansaço, normal para uma idade avançada, o peso da ausência dele tornou insuportável a continuidade da vida sem objectivos nem sinais benfazejos para uma velhice descansada.

E o sino tocou mais uma vez com o ritmo pausado e as pessoas não paravam de chegar, “uma tragédia assim, veja lá o menino” e apertavam-me a mão e sussurravam “os meus sentimentos” e eu crescia para que não me julgassem pequeno demais para aceitar condolências, mas lá bem no fundo com a certeza de que por pequeno que se seja a morte de alguém tão próximo custa tanto como uma ferida aberta que não pára de sangrar.

O resto da família esvoaçava para cuidar dos vivos e eu fiquei perto das carpideiras para me libertar das lágrimas que não saíam.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008


Há tanto tempo que não me ouço, que não me encontro nas palavras. Há tanto tempo que me visto com roupas estranhas com as quais me disfarço e me afasto de mim no ruído. Há tanto tempo me enrolo em exterioridades baças e me esqueço de quem sou…Como se tivesse saído de casa e deambulasse em lugares desconhecidos e no regresso, oco, sem qualquer marca deixada pelos passos, batesse à porta de mãos vazias…

sábado, 26 de janeiro de 2008

A Rapaziada de Ionesco


Quero falar de um grupo informal de que sou membro. Eu e mais oito, entrados ao mesmo tempo como numa sessão de cinema ao meio da tarde, sem pré-avisos nem qualquer cerimónia de iniciação. É tão informal que só com grande esforço lhe chamamos grupo, como se ele próprio recusasse ser entidade coesa com finalidades específicas. Não somos grupo de reflexão, de teatro, de leitura ou de qualquer objectivo muito concreto. Juntámo-nos porque no fim de um ano de contactos formais, pressentimos, sem o testemunharmos por palavras, que nos estimamos, aquele gostar matreiro que fabrica facilmente encontros que não têm clara uma agenda. Com a primeira e única regra instituída de que qualquer entrada a estranhos terá de ser avalizada e acordada por todos, o pseudo-grupo não tem director, nem porta-voz e no final dos encontros saímos com a consciência de que apesar do nada feito foi bom andar por lá…

Ás Quintas-feiras, sempre com atrasos significativos, olhamos os textos, lidos vezes sem conta, de um Ionesco tão absurdo como a própria vida de um adolescente. Guia-nos a fantasia de encená-los e levá-los ao palco um dia destes, mas, latente, o objectivo mesmo é dar largas a um espírito cheio de vontade de encontrar caminhos paralelos à linearidade do discurso institucional.

São alunos, alunos razoáveis mas óptimas pessoas. Poderiam ser melhores alunos mas não são. Nunca discutimos razões. Julgo que pressentiram que a competição sem alma transforma os rapazes em óptimos alunos e pessoas razoáveis; eles preferem o oposto. Possivelmente, os pais preferiam que fossem óptimos alunos e boas pessoas, mas não se pode ter tudo…(Continuo a pensar que o destino individual é sempre pesado em balanças cósmicas: quando temos uma parte em demasia teremos de, estoicamente, resignarmo-nos com a falta da outra.)

Deixem-me desde já dizer que não sinto qualquer culpa. Até porque gosto deles, mais do que se fossem melhores alunos e menos boas pessoas, daqueles que se julgam no direito de lutar por dez décimas como se delas dependesse a vida, a felicidade. Também os compreendo, a esses, mas sinto-me mais cúmplice dos que cultivam um espirito amplo, amanhado em múltiplas direcções, abertos aos outros e ricos nos afectos. Aliás, num futuro próximo, o êxito será distribuído por critérios bem diferentes dos actuais, sem a exclusividade de curricula cheios de “quadros de honra” e de notas que batem recordes de excelência.

É neles, pois, que reside a esperança. Neles que visitam o tempo com uma diversidade de interesses, de olhar saudável para a sua época, apesar do pessimismo face a um futuro perigoso e confuso. O que faremos quando a nossa vez chegar? O que encontraremos quando formos empurrados “borda fora”? Saberemos navegar? Haverá lugar para mim? Perguntava um deles. Talvez ao empurrão, responde outro. A sério, tenho a certeza que terão o espaço proporcional ao seu entusiasmo.

Mas por enquanto caminhamos ao acaso. Espera-nos um Maio qualquer que nos empurarrá para cima de um palco, um palco cheio de corredores e de estranhas personagens que estendem o sono pelas manhãs de Domingo, vestidos de roupas floridas, comem chucrute após idas ao teatro de marionetes e voam sobre os céus de Paris em aviões de cartão. E num cenário estreito povoado de cartolinas com janelas pintadas e portas pendentes, sob o calor de sois amarelos do tamanho de queijos gigantes e de luas comestíveis com saber a melão, voaremos todos pelo universo num avião que o sol derreterá antes da hora do jantar. E depois sairemos do palco em busca do sentido que desperdiçámos por jogarmos com o absurdo e que a maturidade irá trazer, aos poucos, como pedaços de confetis que vão caindo sobre espectadores após final apoteótico…

Só nesse Maio distante, numa Primavera qualquer que o grupo tomará forma, não agora que o tempo é pouco e trabalhos mais inadiáveis nos empurram para fora do palco. Virá um futuro em que irão jogar às escondidas com os mistérios tremendos de vidas ainda não vividas, vidas que têm sorte de serem cozinhadas em lume brando através de encontros e desencontros. Aí sim, o palanque tomará a forma de lares com famílias à procura de horizontes, de caminhos sinuosos e actividades separadas do mundo por vidros escuros. Agora, apenas aquele olhar matreiro, a despreocupação com os prazos que se apertam às pernas como garrotes, a resignação de decorar textos, a tornar sério o que sempre foi desde o seu início. Embora nos falte a urgência e as Quintas-feiras passem tão rápido, resta-nos a confiança que o absurdo do texto de Ionesco esconda o absurdo de tentarmos continuar por cá…

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Eu Vi sem Olhos a Vida


Não sei quando tu me viste pela primeira vez, mas estou certo que não foi na primeira vez que eu te vi. Tocaste-me mas não me viste. Um olhar sem encontro. Confesso, muitas vezes aconteceu ver-te sem o teu olhar cravado em mim. E muitas vezes faz mal ao amor-próprio. Faz mal ser um espião dissimulado, exterior ao olhar de quem se vê; quando o olhar quer experimentar a imensidão e encontra um corpo opaco, sem vida para além dele…

Não sei quando me viste mas eu lembro-me do dia, do momento em que te vi. Tive a certeza porque depois a vida não se comportava em si mesma sem esse olhar. Sem que tu estivesses lá, onde quer que fosse. O mundo estava à minha frente, esmagando-me, mas sempre contigo. Não escondias o mundo, mas o mundo sem ti não tinha qualquer importância. Ou melhor, continha-te mas era ofuscado pelo brilho proveniente de ti. Como se o marcador se reduzisse a um tu que estava no mundo sem se confundir com ele. Não o negavas, mas não lhe davas autonomia. As coisas belas do mundo só o eram porque participavam de ti.

Disseste, naquela tarde, que em breve já conseguiria ver o mundo sem ti. No teu olhar não encontrei poesia nem profundidade. Vias alguém, sentias por ele ternura, nada mais que isso. Eu e o mundo convivíamos pacificamente, era possível um sem o outro. Ganhei certeza pouco depois. Melhor ainda do que pelas palavras que tentavas administrar. Aliás, não precisavas de dizer, bastava o teu olhar. Perdi as esperanças e repetias, no meio dos silêncios, que qualquer dia encontraria no mundo razões fortes de o amar sem tu estares nele.

E acertaste. Não me lembro quanto tempo entretanto se passou, sei que, ontem já não te vi. Encontrei apenas um corpo banal, - como é banal qualquer corpo - sem a imensidão que ocultava o mundo. Aliás, sou sincero, senti algum desprezo, por ter riscado a vida durante um tempo longo devido à tua ausência. Por tão pouco. Despida do olhar que viu a felicidade em ti readquiriste a tua natureza com a trivialidade dos gestos que todos somos para os outros que não nos vêem. Em mim, ao fim da tarde, restou apenas a melancolia de uma exaltação antiga e do desapontamento de ontem. E não falo apenas nas formas, normais e até sem jeito, refiro-me à ausência de sustentáculo para a poesia. Encontrei uma matéria espessa que nada me emociona nem nada me questiona. Já há muito que consigo pensar na beleza do mundo sem estares perto.

Deixaste de ser única e agora perdes-te na multidão. Foi o teu toque no braço que me determinou atenção sobre ti. O teu sorriso lembrou-me o sorriso antigo emoldurado num canto da memória e um trejeito do corpo ligou-me a um passado onde o repetia sem cessar. Perguntaste sobre a vida que decorrera e eu respondi aquelas coisas normais de gente que se reconhece numa história comum de vizinhança. Sorri a responder, sem qualquer angústia de permeio, como querendo mostrar que nada do passado se intrometera no meu bem-estar presente. Estavas sozinha, amores não quiseram nada contigo, revelações envoltas num sorriso voluntariamente triste. Fiz de conta que não percebi e garanti que a minha vida tinha o rumo seguro, de afectos e proveitos.

Não creio que qualquer sombra de remorso te agitasse. Pelo menos face à recusa no passado em aceitar um olhar como o meu. Mas, ainda bem que te encontrei e testemunhei a ausência de poesia. Um encontro que me garantiu definitivamente a paz que já muito antes alcançara. Apenas tive a prova dos nove. Não garanto, mas julgo que aos amores frustrados da juventude basta um reencontro breve para decifrar razões para aguentar o embate e julgar a justeza do destino. Talvez algo nos guia e nos defende, mesmo quando as vidas alternativas encontraram muros e vazio.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

As Raparigas Bonitas Levantam-se Tarde, as Outras Apanham o Metro a Um Quarto para as Nove


I
Felisberta Semedo, cozinheira de profissão, auxiliar de limpeza durante a noite. Falta crónica de dinheiro obriga-a a ter dois empregos. Seriam mais se o dia fosse mais longo. Os filhos, três de um marido desaparecido, sobrevivem num andar comprado a prestações crescentes, no Tojal de Cima.

Uma rapariga de doze anos e dois rapazes de seis e quatro anos, respectivamente, esgotam os dias à frente da televisão e com brincadeiras na rua. Raramente vão à escola por falta de motivação. Como justificação afirmam que os professores não gostam deles. Vêem a mãe ao Domingo, estendida na cama, com as pernas em posição fetal. Dorme o dia inteiro e nem para comer se levanta. Grita, por vezes chora, implora que a deixem dormir, que se calem, que vão para bem longe. Eles saem, tristes.

Fome não passam. O frigorífico está repleto de restos de comida trazidos do restaurante, um dos locais de trabalho. Em geral, as sobras permanecem lá mais tempo do que deviam.

Tem uma face seca, povoada por sardas desiguais. Algumas são escuras e largas como se tivessem envelhecido precocemente. Os olhos errantes ainda emagrecem mais a face e tão pretos como o cabelo em desalinho. Veste-se de forma simples, uma blusa de alças em tons cinzentos e umas calças escuras, como se qualquer enfeite ou cor pudesse favorecer o olhar de alguém sobre si mesma.

Comprime-se contra a cadeira da carruagem para ser absolutamente invisível. Outros passageiros à sua frente olham-na mas não a confrontam. Possivelmente, não existe mesmo. Talvez saísse na estação anterior. Ou não veio trabalhar. Conseguiu adormecer.

II

Intendente. Ouve-se apenas o ruído da máquina nos carris. Todos passeiam por reflexões íntimas. Ninguém se olha como se qualquer olhar revelasse medo ou repercutisse considerações pouco abonatórias. As mãos seguras tentam não tocar qualquer outra mão imóvel ou qualquer parte do corpo mais próxima. O toque poderia ser mal interpretado. Chiam as rodas e abrem-se as portas. Ouve-se uma voz clara, tão alta como uma sirene: ”Intendente. Saiam as putas”. Um silêncio amenizado com alguns sorrisos surdos. “Vá lá não tenham vergonha, vergonha é roubar”. Abriram-se alas e lá mesmo ao fundo um senhor de meia-idade, com aspecto perfeitamente normal, falava mas não fitava ninguém. Tanto se lhe dava.

Ninguém saiu.

III

Voltei à estaca zero. Com saudade do futuro, como se não aguentasse o presente envenenado. Regressei no limite, o único tempo que não permite desilusões, mas quando é necessária mais descontracção maior é o peso da intranquilidade. Horas e horas no rescaldo de uma crise. Saber para onde se vai e não ter qualquer certeza se deve ficar ou partir de novo.

O repouso de uma certeza não impede outras desconfianças. A certeza não acalma, a certeza apenas pacifica esse pequeno campo do espírito. Mas já é alguma coisa essa pequena bondade neste enorme comércio que somos nós interiormente: damos em troca um lado negro, recebemos um paliativo e continuamos a protestar por aquilo que ficou pendente.

A carruagem cheia como um ovo. Os suportes de mãos, semelhantes a cordas de enforcados, estendem-se enfileirados pela carruagem e sempre que pressionados soltam ruídos metálicos cansativos. Parecem prontos para sustentar assassínios em massa, numa qualquer ditadura terceiro mundista.

IV

A um-quarto-para-as-nove ninguém fala nem mesmo para pedir desculpa de um recontro involuntário. Todos mantêm o semblante assustado de quem acordou aos gritos. Dormir é sempre mais natural do que vaguear pela vida, como se a maior ambição de qualquer ser vivo fosse um sono profundo e não a vida vivida a todo o gás. Alguns fecham os olhos alargando o mais possível o espaço exterior da realidade. Cabeças que pendem de um lado para o outro ao sabor das curvas. Vão escoando à medida que as estações aparecem e desaparecem numa atitude submissa a algo ou alguém que não eles.

Mas às vezes fala-se. Alto. Geralmente, eslavos ou chineses naquele linguarejar tão absurdo que os olhamos fixamente para atestar que não brincam com os vizinhos. Com desassombro, gesticulam, discutem, exprimem-se e no meio do mutismo torna-se quase irreal a presença de personagens que no meio do palco interpretam actos de uma opereta bufa. Sem legendas.

Ontem, pendurado num apoio, reparei que alguém ao meu lado me fitava e me interrogava: “Ouça lá, não acha estranho que aumentem os passes e depois esbanjem dinheiro com mariquices?” Não sabia do que falava, constatava apenas o seu tom sério e arrasador.

Era pequeno, com enormes vincos na cara, como se a preocupação presente o abatesse aos poucos desde sempre. Cara redonda e olhos baços. Desgrenhados. E continuava: ”então já viu a despesa que deve representar ter em todos os comboios, uma senhora a repetir “próxima estação Roma”, próxima estação Alvalade”, então quem vai trabalhar de manhã pode dar-se ao luxo de esquecer ou ignorar a estação seguinte? Já viu que a grande maioria desta gente anda sempre a correr e não tem tempo para se enganar?

Olhava-o com temor reverencial. Como se o teor fosse a mensagem que esperara desde sempre. Uma espécie de revelação divina saída das agruras de um humano sofredor. Nada lhe disse mas fiz um semblante de consentimento à sua preocupação. Julgo que devemos ser parcos, pelo menos ao lidarmos com dinheiro público. E também não gosto das informações impertinentes para se saber onde se está. Prefiro a ignorância.

Ele afastou-se quando lhe mostrei claramente que deixara de o ouvir e continuou a falar sozinho ao longo da carruagem. Ninguém mais se mostrou interessado nas suas reivindicações, ninguém mais se acomodou à sua tristeza. No Metro não se fitam os passageiros que falam sozinhos. Mas crescem em número e talento os que se desprendem de si mesmos e buscam a atenção de desconhecidos, sintomas de uma desordem humana que se estende.

IV

Há cada vez mais gente a pedir nas carruagens do Metro. Quase todos invisuais. Funciona melhor. Os pobres já não convencem tanto, os estropiados garantem apenas alguns beneplácitos, os cegos representam a fatia dos maiores beneficiários da esmola alheia. Talvez por moda e, penso, um dia serão mais abençoados os coxos, surdos ou com hepatite B, ou então simplesmente aqueles que admitem apenas ter fome, testemunho deixado aos que passam em cartão velho. Neste momento o êxito vai todo para os ceguetas.

Logo às nove-menos-um-quarto! Olhos vendados por membranas disformes, como que trabalhadas por cirurgiões plásticos às avessas, caixas pretas penduradas ao pescoço e com ranhura para as moedas. O teor das súplicas é idêntico ”uma ajuda se faz favor”, a mesma voz metálica, igual semblante impenetrável. Conheço três dos mais habituais. A senhora que masca pastilha elástica e que por vezes leva uma de braço dado parceira também invisual, outro tresanda a suor de semanas e um terceiro que toca gaita-de-beiços enquanto a bengala de invisual marca o ritmo. Sinceramente, sinto-me desconfortável quando os encontro. Acho-os pouco credíveis nas necessidades propagadas e não são suficientemente humildes para provocar a caridade humana. Apenas a deficiência física justifica a dádiva.

Mas há outro motivo para o desconforto. Numa fase do dia em que o espírito ainda se tenta equilibrar para o confronto com a realidade, de rompante, levamos com a miséria ou com a ganância. Será que pagam o bilhete para entrar? E será que têm necessidade mesmo? E em carruagens apinhadas de silêncio os passageiros em pé encostados uns aos outros por falta de espaço e a voz – a mesma voz metálica – inclina-os para a frente ou para trás. Quem vê os movimentos do fundo da carruagem vê a força invisível que os espanta ao mesmo tempo. Como se uma tempestade vergasse por momentos canas verdes e a bonança as reconduzisse ao equilíbrio. Com uma inverosímil bengala no chão, cronometram os passos de forma a passar a pente fino a carruagem até à estação. Depois correm para a carruagem da frente como se os olhos se iluminassem. Mas deve ser o hábito. E tudo recomeça.

V

Dia de sol tão azul que me esqueço da sua pertença a um Outono já velho. Em vez de me encostar à tarde após o almoço, deambulando sem rumo pelas avenidas baixas, tive de regressar ao metro das catorze, para encontrar as botas ortopédicas da Madalena.

É um Metro diferente, o das catorze. Mais prazenteiro. Os utentes entram mais calmos sem aquele sintoma de abutres perante o lugar ainda disponível. Sento-me e na cadeira da frente reconheço um passado perdido em qualquer sítio. Depois de uns segundos de busca identifico a filha de um general, colega num curso longínquo e portadora de angústia incontrolável, diariamente reafirmada. Agora os vinte anos passados pareciam outros tantos pelas marcas visíveis numa face contraída.

Levantei-me de rompante, percorri a carruagem e sentei-me lá bem no fundo. Senti-me culpado por não ter dado um cumprimento mas não me senti capaz de saldar dívidas em silêncio de duas décadas e ter de prolongar qualquer conversa para além do limite imposto pelo tempo da viagem. Se noutro encontro fortuito comentasse a indelicadeza do facto dir-lhe-ia que a reconheci mas tenho o hábito de mudar de lugar durante os trajectos. Nós os perturbados acreditamos nas coisas mais banais e mais irreais.

Depois, num Centro Comercial, por momentos descobri outra cara familiar. Não sei de onde. Quanto mais a história individual se desenrola em cenários diversificados mais difícil é encontrar a simetria perfeita entre a forma e o nome de pessoas que se cruzam connosco. São tantas as personagens que temos de nos resignar à solidão proveniente de olhar os outros sem reconhecer o seu nome.

Na vinda, pensei que as duas coincidências numa só tarde mostravam que os quatro meses após o regresso a Lisboa começam a dar frutos. É como se a cidade se revelasse com os conhecidos, não com eles próprios, mas como se a sua aparição fosse consequência da minha pertença à própria cidade.

Afastei de imediato a conclusão. Nunca farei parte da Lisboa como faz parte quem lhe pertence. Não sou daqui, não sei de onde sou.

VI

O Metro é o método mais célere para chegar. Não há semáforos, não há cruzamentos, em dias de chuva não aumenta o volume de tráfego, não há atrasos acidentais. De vez em quando há avarias, mas são raras. Quem anda de Metro mostra aquela convicção de quem chega a horas, marca encontros com mais rigor, nunca diz “bom, depende do trânsito”.

Mas a um quarto-para-as-nove, quando as portas se abrem as pessoas correm pelos corredores, escadas abaixo. Raramente se vê alguém despreocupadamente na saída. Procura-se um lugar numa meta qualquer, com prémios à chegada. Corre-se para um nada que tanto pode ser um autocarro, um patrão severo, um relógio castrador, um encontro, cinco minutos a mais com a filha em casa antes dela dormir.

VII

O dia-a-dia é incompatível com o dia-apenas. O dia-a-dia é a sucessão cíclica de pequenos gestos enquadrados na utilidade, o dia-apenas resulta de um acto consciente de quebra. Como se, por golpe de mágica, ganhássemos autonomia na indefinição do tempo e por vontade negássemos o futuro pelo não cumprimento de seguimentos passados.

Um dia-apenas significa, fundamentalmente, não poder pensar no dia de amanhã. Não poder pensar indica que nada posso saber sobre ele. Um sono profundo que o agarra à cama e o liberta de compromissos, um almoço adiado por lanches esguios, um fechar a porta de casa sem regresso marcado. O amanhã, um dia-apenas, será sempre um dia sem conceito. Um dia sem conteúdo, irresponsável. Sem qualquer garantia de abalada ou de chegada. Um dia tão aberto que parecerá um ano inteiro, sem o constrangimento das horas de que é feito; permanecerá como uma abertura ao infinito. Por isso é que há dias que merecem uma vida, milagres de criação individual, sementes de histórias.

O dia-a-dia é, pelo contrário, um dia repleto de conteúdo que permite com antecedência saber tudo acerca dele. Como se a existência dependesse só da essência de ser um seguimento inalterado de segundos, minutos e horas. Poderíamos prescindir dele que não faria diferença; não deixa marcas, não vai entrar em qualquer domínio da ficção, não poderá ser lembrado por qualquer circunstância nova, por ténue que seja. O dia-apenas é sempre um dia para guardar. Mesmo que nada de grande aconteça, ele próprio é já um acontecimento. Não se deixa manietar por nenhum preconceito, subsiste sem que a sua subsistência se deva ao mês ou ao ano a que pertence. Por isso a nossa vida é sempre representada por dias e não por anos ou meses. Foi no dia tal que nasci, no dia tal que ganhei coragem, num dia que quebrei laços, noutro que os forjei…A nossa vida resume-se, unicamente, à existência de dias-apenas.

Já nem me lembro de um dia-apenas. E estes que me perseguem em carruagens pejadas de tédio com um olhar mortiço contra os vidros, não me parecem dispor de dia-apenas. Como se as histórias dos dias-de-anos se rendessem à crónica iniciada no metro de um quarto para as nove e finda no metro de regresso das dezanove e trinta. Como se a nossa vida se justificasse por poucos dia-apenas enquanto as outras décadas, vazias e fugazes, se esfumassem na penumbra de muitos dia-a-dia, sem lembranças, sem compromissos com a vida.

E depois chega-se a casa com a cabeça feita em merda por chatices, tão pequenas como as chatices são e com falta a paciência para os filhos que querem jogar à amiga, para a mulher que quer jogar às palavras, para a televisão que quer jogar com emoções. E ganha a cama que quer jogar às fadigas e em dois minutos dorme-se tão cerrado que não existe nada para além daquele sono. E os sonhos remetem para aqueles dia-apenas que tardam em chegar, imagens, gestos e opções que manifestam a vida que não se procura ou não se encontra.

E o regresso ao metro de manhã tem-se a nítida sensação que já se viu aquele filme, caras que são tão iguais que julgamos nunca nos separámos e no escritório os processos são os mesmos, as mesmas respostas, as mesmas asneiras, as mesmas chamadas de atenção, os mesmos pedidos de apoio. O mesmo objectivo.

Mas continuamos na expectativa de um dia-apenas. Será dramaticamente novo, como se nada houvesse com tal novidade. Mesmo se o Metro co-existir num dia-apenas terá carruagens de cores vermelhas, nas janelas surgirão imagens verdes, desorientadas e frescas e estofos limpos onde nunca ninguém se sentou e eu vou gostar de andar pela primeira vez num Metro sem qualquer passado, tal como eu.

VIII

As duas únicas grandes certezas que temos são a morte e o nome. Talvez mais a certeza do nome do que a morte. Não nos podemos livrar de nenhum e se vamos conseguindo afastar a morte, o nome coze-se a nós como lapas às pedras molhadas. Quando pensamos ou falamos, sou eu o fulano de tal que pensa, espera, refila. Toda a nossa individualidade se concentra e tem sentido por aquela nomeação; toda a nossa vida é em si mesmo uma tentativa de esquecer o nosso destino trágico. As variações, as distracções que levamos a cabo insinuam fugas para o esquecimento, quantas vezes também gostaríamos que essa individualidade que nos afronta não tivesse um marco que lhe atribui a consequência das nossas decisões.

Enquanto o nome nos dá a vida, a morte retira-a. Um faz-nos existir, o outro remete-nos para o nada. Se bem com uma reticência: a morte retira-nos a vida mas não o nome. O nome continuará a identificar um ente que se mantém vivo na memória dos que têm nome.

E estes que se encostam à carruagem tal como eu, têm nomes que desconheço e por isso não existem. O mesmo se passa de mim para com eles. Como se as personagens, figurantes de um filme qualquer, fossem apenas reflexos de uma imaginação qualquer, de um realizador qualquer. Mas têm nome e têm vida fora daquela carruagem, em vidas paralelas à minha, onde viverão reencontros e horas e dias tal como eu. Pelo menos acho que assim seja.


IX

Encontrei um amigo no metro, um amigo verdadeiro. Ele não me encontrou, encontrei-o eu. À mesma hora todos os dias à saída do metro no Rossio. Seria impossível ser ele a encontrar-me, é cego. A primeira vez que o vi entrou numa carruagem onde eu já estava sentado. Vinha acompanhado por uma mulher, de cabelo de ouro e ambos sentaram-se à minha frente. Ambos à volta dos quarenta anos e sem uma única fala durante a viagem. Imaginei a vida deles em conjunto, o peso do silêncio, as traições do olhar, discussões que não seguem o olhar do outro, a dificuldade de reconhecer a verdade do que se diz ou não se diz. Depois considerei com exactidão que alguém que viva com um invisual tem de olhar duas vezes a mesma coisa e repeti-la por palavras e há tantas coisas que não se conseguem dizer por palavras. O silêncio com um cego é sinónimo de ausência, não de aconchego. Falar deve ser o único sintoma de presença. O toque não chega, porque é fácil falsear um toque! A certa altura mudámos de linha e notei um afago dela no braço dele, comprimindo o braço com a mão e umas palavras breves que me escaparam.

Entrei na Linha Verde e mudei de filme, outras personagens se avolumaram num novo ecrã. A história anterior teria ficado perdida se dias mais tarde não o reencontrasse no Rossio. Afinal, naquele dia fez o mesmo trajecto mas a distância e o ritmo dissonante dos passos separou os nossos comboios. Ia de bengala em riste em direcção a um obstáculo e uma senhora adiantou-se, pegou-lhe pelo cotovelo, disse-lhe qualquer coisa, ele sorriu e acompanhou-a num passo decidido. Passei por eles a correr com o temor de ser engolido pelo tempo. Ando sempre assim, a querer não perder uns míseros segundos iguais a tantos outros…

Mas dias depois, - os cenários são tão semelhantes não permitem identificar os dias que entretanto se passaram, - vi-o de novo, naquele movimento decidido, de semblante seguro e sem pedir ajuda a ninguém. Estava mesmo à minha beira, passei por ele. Não quer esmolas, pensei. Depois, talvez por aquele passado de coincidências atrasei o meu passo, aproximei-me, pequei-lhe no cotovelo e guiei-o para as escadas. Sussurrou um obrigado quase inaudível e junto às escadas retirei a mão como se já tivesse dado a chave do puzzle. Ele não fez qualquer movimento de reparar a distância, ele ficaria para trás envolvido com o som metálico da bengala, mas houve qualquer sinal que me fez recuar e agarrei-lhe de novo no braço e perguntei-lhe o destino. “Rua dos correeiros, faz favor”, “onde é?” perguntei eu. “Uma rua entre a rua dos Fanqueiros e a rua do Ouro”. E passámos o átrio, subimos as escadas e chegámos à Praça da Figueira sempre em silêncio, da minha e da parte dele. Como se o acto de o levar fosse tão natural que não precisasse de agradecimentos dele nem de justificações de mim enquanto táxi humano. Como se a nobreza de um cego que anda à procura de um destino fosse infinitamente maior do que o gesto que o guia. Quando cheguei ao seu início, confirmei o nome na placa e disse-lhe um bom dia claro, com uma voz sem uma entoação original. Ele respondeu bom dia, sem mais.

Passaram-se semanas até que o revi, no mesmo sítio, adiando a decisão da direcção a tomar. Aproximei-me mais seguro e com uma voz mais familiar. Reconheceu-a, como está, mas não fez qualquer movimento físico de aproximação. Como se o facto de o saudar não fosse obrigatório a ajuda na caminhada. O mesmo que saudar um conhecido não implica acompanhá-lo. Quer separar bem dois actos. A saudação não obriga ao acto de guia. Mas eu acompanhei-o. Se existe qualquer sentimento de alívio da sua parte não o mostra. Profissão de telefonista e escreve num computador. Simples, de sorriso límpido. Sem as mágoas que geralmente atribuímos às pessoas manifestamente infelizes. O António não me parece que o seja, pelo menos mais do que o normal das pessoas. Pelo contrário.

Como o seu horário é idêntico ao meu o desencontro será fruto de uns breves minutos, talvez de um simples comboio. Sempre que o revejo não me desculpo pelos dias em que a minha passagem não coincide com a dele. Ele não se refere ao tempo entretanto decorrido, nem declara a bondade da coincidência. Terá outros amigos no Metro que o acompanham até à superfície e lhe indicam a direcção certa.

Ando sempre a correr contra aquele tempo que me magoa por não esperar por mim. Não que eu tenha muito para fazer, mas porque acredito que o que tenho para fazer é necessário terminá-lo antes que os outros o achem atrasado. Mas tal como hoje, sempre que o António sai da carruagem como a bengala em riste enfrentando o desafio, nunca fujo. Prefiro levá-lo à Rua dos Correeiros, não por ele, mais por mim. É como se o tempo a mais que gasto até lá chegar fosse a minha salvação perante um tempo que se vai embora sem me levar com ele.

De quê? De nada…

X

Quando deixar o Metro as histórias serão outras. Vai fazer-me falta. Trajectos e rituais que já são parte da minha vida. Claro que continuarei a utilizá-lo mas já não será o mesmo. Já não fará parte do dia como hoje acontece. Significará também um regresso e um abandono de um ritmo que me causa alguma resistência e amanhã causará saudade. Foram dez anos fora da Escola, sem o stress da aula seguinte, sem o cansaço do falar até doer a garganta.

Terminar as viagens diárias no Metro significa entrar igualmente noutros subterrâneos da alma. Ter mais tempo, mais momentos com a pequenina. Agora preparo o ninho. No local dos livros lá em casa, procuro uma caixa de música e um sofá confortável para me acolher. Será o meu poiso. Aí espero encontrar novas saídas.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

O Blog e a aventura da escrita...


A minha intenção é apenas escrever. Sempre que possa e sinta o jeito. Nem sempre se pode, mas ainda é mais penoso sentir-se a falta das palavras, do sentido, das histórias. Há já muitos anos atrás alguém me disse que apesar da graça faltava-me o talento. Acomodei-me pacificamente à minha incapacidade, mas continuei a escrever. Nessa altura escrevia no Diário Insular, seis anos de contribuição periódica em crónicas dominicais que saíam ao Sábado. Escrevia os contos com tal entusiasmo como se deles dependesse a minha sobrevivência futura. No fundo, até tinha razão.

Não fiz qualquer contrato com o Jornal, nem os seus responsáveis alguma vez exigiram temas, mostraram preferências ou solicitaram alterações. A eles devo a oportunidade de escrever sem qualquer pré-condição. Poderá parecer paradoxal mas podemos continuar a escrever uma vida inteira, encher baús ou computadores com memórias, reflexões ou contos, mas nunca com a força dada pelo facto de os podermos partilhar, de identificarmos o resultado no olhar dos outros. A força e o entusiasmo pela sua exposição garante continuidade, as palavras de ânimo motivam esforços redobrados ao aperfeiçoamento, à recondução do próprio espírito a exercícios periódicos. Foi por isso que cheguei a este Blog, onde quero depositar o que vou escrevendo e , de vez em quando, regressar a algumas crónicas publicadas entre 1997 e 2003, mais coisa menos coisa... Ficará sempre aberto a todos quantos quiserem participar nesta aventura que é escrever, quer por comentários ou mesmo textos que espelhem a complexidade da vida, a força dos sentimentos e a fuga ao banal onde nos vamos afundando.

A Arte do Espectáculo


Ignoro quem seja sem silêncio e não saberia combater a sucessão dos dias sem o conforto da solidão. Talvez seja mais habitual procurar-se o ruído pelo temor das emoções enredadas que jogam às escondidas na mente, mas eu, pelo contrário, receio ficar para sempre indissociável dos outros, sem tempo para ruminar alimentos ingeridos à pressa. Em abono da verdade, a minha vida foi pródiga em retiros forçados, demasiadas horas ouvindo pensamentos próprios para agora suportar a confusão que gira à minha volta. Contas feitas, ainda não tenho a certeza se o percurso e o que restou de mim foi fruto do hábito ou de uma necessidade da minha natureza. João, o meu marido, ao invés, não consegue uma quietude sem envolvimento exterior. Precisa bulir continuamente, uma agitação vazia de qualquer finalidade, como se a pausa o obrigasse a reencontrar maus pensamentos. Talvez sofra o terror do prisioneiro, uma angústia pela constante atenção sobre si mesmo, mais do que a perda do que ficou fora dos muros. A verdadeira tortura é a alucinação provocada por demónios residentes, a eminência de enlouquecer por tantas palavras ditas sem eco.

Rodopia, com graciosidade repete a pirueta de grau dificuldade superior, volteia sobre si mesmo com os olhos pregados no céu, desliza suavemente a perna esquerda para trás enquanto o joelho direito escorre pelo chão como uma carícia. A cabeça no enfiamento perfeito da perna, olhar vazio preso a miragens, belas pela expressão de êxtase. A música termina em acordes tonais, harmoniosos, como se todo o cenário tendesse para um final perfeito de coerência. As palmas soam com violência, ruidosas e fortes num entusiasmo comovente, volta, volta para o público que serve de bandeja sorrisos a quem o emociona. Acho bem que espremas a sua generosidade, enquanto eu me escondo por trás das cortinas vermelhas e ouço aplausos cada vez mais histéricos perante as tuas reaparições. E dão-te flores, tratam-te como vedeta, a estrela mais cintilante do mundo do espectáculo. Estou tão orgulhosa que as lágrimas correm-me pela face, tão silenciosas que só dou conta delas porque humedecem os lábios frios. Eu espero-te aqui. Não me quero exibir apesar de desejares que me associe à festa. Prefiro o recato. Agora ouvem-se portas abrir-se, os convidados em fila esperam vez para se retirarem. Pela hora avançada e apaziguados pela piruetas dos artistas o sono chegará rápido e não terão que se aturar muito tempo. O que é essencial é que não haja tempo morto. Como aguentar a vida sem a exposição de tantos que falam sem cessar, sem dar espaço de confidência àqueles que se fecham a vida inteira em salas de espectáculo?

Sofres com frequência de insónia e angustias-te quando não tens um livro que te entusiasme ou um bom filme na televisão. Contar caprinos é a solução banal mas sem resultados palpáveis, a medicina encontrou alternativas em químicos e a sociedade inventou uma televisão de sucessão contínua e bares que encerram já de madrugada. Mas o problema é demasiado grave para milhões de seres despertos e não há lugares vagos em instituições psiquiátricas. A insónia é uma ratoeira bem disfarçada. Se os dias passam rápidos pelas tarefas sucessivas a desempenhar, as noites são cruéis na sua passada lenta. Nesse desenrolar os pensamentos mortais, questionamentos insanáveis, a dor da presença própria, contínua até ao absurdo. Uma boa saída seria adormecer através de um interruptor, não achas? A noite mata mais do que a febre dos dias.

Segunda-feira. No escritório as folhas amontoam-se à minha frente como uma praga. Trabalho estúpido esse, tão vazio de sentido como pobre em resultados. Noventa por cento deste esforço era escusado mas a sociedade teve de inventar a burocracia para manter ocupados os assalariados, contribuindo assim para a paz e saúde social. A Organização inventou o equilíbrio entre o tempo gasto e o tempo disponível, não como defesa dos cidadãos mas para os proteger do vazio. O que seria da História sem homens ocupados? O que fariam eles sem obrigações tão desnecessárias quanto ocas de sentido? Na Grécia antiga, o trabalho manual era destinado aos escravos e o cidadão tinha tempo para se dedicar a actividades nobres, como a filosofia e a política. Hoje seria impensável uma sociedade de ociosos no sentido grego, talvez porque os homens de hoje preocupam-se mais com respostas do que com perguntas. E á tardinha, após o laborioso tempo escorrido, chega-se a casa tão exausto que tudo o resto diminui na sua importância.

E tu chegaste a casa tão cansado que olheiras escuras atingiam o queixo, como inundações de Inverno em locais desabrigados. A tua postura corporal correspondia a um velho acabado e mesmo o sorriso resultava de um esforço nítido. Concluo que o espectáculo consome e corrói os artistas como um cancro maligno. Pediste uma massagem aos ombros e adormeceste no sofá com o mesmo olhar do palco, aquele que interpretei ser portador de horizontes belos. O teu silêncio, dono dos sonhos, é tão importante como o meu, razão de possibilidade da fantasia de mim; não percebo como é que desconfias da necessidade dele e me culpas do meu.

Partir sem Regresso Marcado

Partir nunca é fácil. O acto em si coloca questões incómodas, como fazer malas e embrulhos, marcar viagens e um sem número de questões logísticas que requerem disponibilidade e paciência. Partir sem regresso marcado é ainda mais difícil. É uma partida que necessita de preparação, recolhimento interior, prévios consolos, gestos cúmplices, despedidas, juras de reencontros. No acto é difícil manter a serenidade, ainda mais quando se foi feliz no sítio de onde se parte.

Regressar, por seu lado, tem o sentido místico de aconchego, de tocar de novo no familiar e no íntimo. Sentimentos tanto mais profundos quanto a duração da viagem. Há algumas tão compridas que se transformam em parte substancial da vida e o regresso a solo familiar não é uma simples chegada mas um recomeço. As viagens longas quando se esgotam implicam que a vida tenha de procurar um novo sentido, novos ritmos, novos pontos de apoio, novos espaços de silêncio. Como se o reencontro fosse também um olhar novo sobre velhos horizontes, após perda da ingenuidade nos caminhos percorridos. Depois, qualquer perspectiva é toldada pela experiência acumulada de viajante, qualquer juízo ou projecto serão analisados pelo filtro da vida ou vidas anteriores.

Mas qualquer regresso exige sempre uma partida e quem parte divide-se pelo que se apropria e pelo que se desvincula, cruzamentos que na sua infinita diversidade constróem o destino de quem viaja. Como uma vez já dissemos, é impossível pensar a individualidade humana dissociada dos locais de vida e das pessoas com quem se cruzou. A essência do homem determina-se pela história das partidas e chegadas que coube em sorte a cada um. Mas há regressos mais calmos, os falsos regressos, em que não se regressa, pois nunca se chegou a partir; como há falsas partidas que transportam em si mesmo regressos marcados; mas há partidas muito mais dolorosas, as verdadeiras, aquelas que traduzem o sentido essencial de “partida”, as partidas sem regresso.

Em todas as partidas há sempre um elemento negativo unificador: a privação. Das pessoas, dos lugares, dos cheiros, do intercâmbio de gestos, das tonalidades das paisagens. Mas tem presente um elemento positivo, quem parte fica com a melhor parte. Leva o melhor que retirou daquilo que fica. Nunca se levam mágoas, incertezas, tristezas ou decepções. Levam-se filhos, amigos, momentos belos, tempos felizes. À chegada, ao testemunhar a passagem, elogia a experiência e o saber adquirido, as pessoas que conheceu, a beleza das paisagens, o tempo que corresponde e corresponderá a algo de fundamental na vida de quem chega. Nunca se menospreza o tempo de viajante, seria uma traição a uma parte de quem regressa. Aliás, pelo contrário, a perda inflaccionará o valor da ausência...

Mas ao partir sem regresso, acredita-se num regresso sem data, uma viagem futura que curará feridas e avivará memórias. Não aquele regresso como vida que era antes de partir, mas um falso regresso com partida marcada, que anima as memórias, reforça laços e reafirmação da marca do passado.

Quando se parte sem regresso marcado aquilo que fica é ainda mais importante do “mesmo” enquanto parte da vida. É como se a distância transformasse o bom que se viveu na felicidade que se procurou sempre. Quando se parte sem o regresso marcado tem-se medo de não se conseguir sobreviver sem o que deixou. Mas como o tempo sara as feridas, a ausência do que fica longe ganha uma áurea que sempre perdurará.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

A TEMPESTADE


Gostei do vento de ontem, um vento de barba rija que arremessava tudo à sua frente. Varreu ruas e melancolias, sacudiu tudo, mesmo as mentes adormecidas desde o Inverno passado, e vinha acompanhado de chuva forte, daquela que faz um barulho do catano ao bater nos vidros. (A chuva sempre me consolou. Sempre sonhei dançar debaixo dela. Nunca entendi porque me acalma e me pacifica e desconheço porque me faz adormecer mais depressa. Talvez porque através dela o Céu se liga à cinza por fios descontínuos de gotas que escorrem em caleiras invisíveis e sujeitas à ventania… Uma chuva que nos eleva e ao escorrer na terra transfigura o toque celeste num abraço afectuoso). Mas como ia dizendo, tudo balouçava furiosamente, os seres mais frágeis vergavam-se de cabeça encostada ao chão e outros, desapegados do seu lugar natural, pairavam no ar como os balões de S. João. Mesmo gente insuspeita levantava voo tal como parapentes desgovernados e subia a altura proporcional à largura das roupas vestidas e área dos guarda-chuvas. Cães vadios que não se esconderam debaixo dos automóveis foram arrancados do solo e um pairava mesmo frente à janela do quarto a ladrar de aflição, em cambalhotas no ar como no circo, só que menos sincronizado. E tudo numa amálgama estranha com caixotes do lixo que abriam e fechavam as tampas como bocas dos afogados. E no mar, uma fina camada de água desprendida corria em direcção à igreja de Misericórdia, alagava os barcos que se escondiam por trás dos molhes da marina.

A cidade às escuras move-se expectante numa postura maternal que esconde sob as asas as crias indefesas. As ruas limpas de folhas e de dejectos levados pela água em corrente, as casas e as árvores a escorrerem como roupa lavada em tanques, os sinos das igrejas em movimentos desconexos sem que o badalo se inquietasse o suficiente para tocar a rebate. Em situações de crise a cidade tem posturas semelhantes ao animal acossado. Quando o perigo espreita constrói estratégias defensivas, intimida, comprime-se e transforma-se numa estrutura compacta, feroz e manhosa, pois ao reconhecer mais força ao inimigo em campo aberto assume a luta de forma contida, como guerrilheiros que atacam em acções isoladas. As janelas são empancadas por portadas, os canais de esgoto aliviados, as tunas desocupadas, tudo se ajusta para a contenda...

Horas de enorme exaltação. Aquele clima de expectativa entre a vida e a morte, entre a resistência e o abandono total à destruição. Depois das tropelias, o vento e da chuva afastaram-se e os percursos de ambos vislumbravam-se no mar pelo ardor das ondas. A cidade respirou fundo e o silêncio aconchegou-a como um cobertor de lã. Pessoas, animais e coisas que balouçaram no ar aterraram, uns sobre telhados, outros na praia, outros ainda projectados sobre as antenas das televisões e em vez do telejornal via-se a cara deles espalmada contra os ferros, num espectáculo mais cruel do que as próprias notícias. Mas não ocorreu qualquer morte o que é enigmático e os que viveram mais de perto os fragores dos elementos surgiram com aquele semblante misto de temor e paz interior garantido que estava o sentido da vida depois do enfrentamento da morte.

As gruas dos bombeiros foram aos poucos arrumando em casa os desavindos, as árvores nos seus canteiros e os burros e as vacas nos pastos correspondentes e às cinco da manhã a cidade finalmente adormeceu. Lá em casa o descanso demorou apenas duas horas porque o papagaio é como um relógio de boa marca e acorda sempre às sete e fala e grita até os donos o apaparicarem com carícias e comida renovada. Como nada havia a fazer tomei banho, saltei para a rua de Jesus e apenas um telhado meio caído na esquina com a Rua dos Canos Verde testemunhava a tempestade e a força desmesurada da ventania da noite finda. Mas segundo os técnicos hoje à noite regressa. Não percebo onde se escondeu e como é que sabe o caminho de regresso para esta caganita de terra em cima do mar. Mas vou novamente encostar-me à janela e olhar o mundo revolto pelo vento e ouvi-lo divertir-se em tangentes às coisas e levantá-las no ar como balões de S. João iluminados por velas de tão frágeis que ardem e pregar sustos às pessoas, aos cães e bater nas janelas como quem quer entrar e ensinar a voar quem nunca saiu do chão até os deixar pousados nos telhados e antenas da rua de Jesus.

O OUTONO


Estou seguro que a cor amarelo-torrado das folhas dos plátanos é a que mais se aproxima do verdadeiro tom do Outono. A certeza ganhei-a ao subir o Monte Brasil por uma estrada íngreme, delimitada por espécies já centenárias e coberta de folhas mortas, às nove da manhã de um Domingo solarengo e frio. Um fundo de amarelo de forno que cobria o horizonte e folhas a rodopiar à volta umas das outras sempre que soprava o vento, tudo me envolveu numa melancolia avassaladora. Como se de uma simples sombra dependesse a tristeza absoluta.

Na Segunda, ao entrar ao serviço, informaram-me que falecera o António Filipe que tinha a tarefa diária de limpar o átrio que prolonga o solar de folhas caídas e ervas daninhas. O estranho é que a causa de morte foi uma degenerescência do cérebro que o transformou em água em apenas alguns dias. De um dia para o outro, perdeu a locomoção, o entendimento e a fala e foi mirrando como um rego que se esvazia, até ficar pele e ossos. O mal causado às árvores talvez seja semelhante ao declínio que o Outono provoca em todos os seres. Nuns mais do que noutros, mas todos sofrem esta perda de vigor e de esperança e ganham a tristeza proporcional ao desfalecimento vital. Mas, coincidência ou não, ontem garantiram-me que andava mais amarelo que o costume e tive a nítida sensação que me tinha desprendido de uma árvore qualquer e deixado abandonado à mercê de ventos e marés. O sentimento do Outono significa que a margem da vida estreita-se como se a maré alta chegasse à praia e a cor é lançada no espectro para o lado vermelho, tal como o rasto deixado por Galáxias que se afastam.

Agora, quem limpa o átrio que prolonga o Solar em direcção ao Monte Brasil é o senhor José que tira o chapéu sempre que alguém passa e tem um sorriso bonito semelhante ao defunto. É a primeira pessoa que encontro logo de manhã, sempre curvado em direcção ao empedrado como um pesquisador de ouro. Só de quinze em quinze dias ele se deixa de preocupar com as folhas e lava a fonte situada numa extremidade do átrio e onde sete peixes vermelhos e um preto andam de um lado para outro como doentes mentais. A minha vontade de o avisar face aos malefícios da sua função esbarra sempre com a inutilidade do conselho pois nada tenho para lhe dar em troca, e não acredito que ele levasse a sério a mensagem. Até porque a doença que as folhas de Outono transportam leva o seu tempo a ser visível e nada garante que não seja salvo no limite por qualquer Primavera. Mesmo assim, em todas as manhãs fico atento de forma a notar qualquer falha, qualquer mazela em mim e no mundo que identifique razões de alarme...

Não é simples a vida de um apanhador de folhas. As árvores são como as pessoas e há folhas mais presas que outras à vida, outras mais frágeis que são levadas nas primeiras sopros enquanto outras resistem até ao fim do Inverno. O apanhador de folhas, por isso, convive com uma fatalidade, a árvore não se despe de uma vez, há folhas que se agarram como lapas, enquanto outras, mais desgastadas que se deixam cair ao sabor do vento da manhã.

Qualquer apanhador de folhas espera a salvação numa primavera qualquer que lhe traga o sol e as folhas verdes tão presas à vida como pedras nas calçadas.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Estranhamente Não Sou o João


Estranhamente não sou o João. Nem sei quem seja o João. Ou melhor, conheço o João mas não sei quem seja. É ainda recente na proximidade e o ser do João esconde-se numa exterioridade moldada por gestos. Por isso, o João da fotografia não é o João que eu conheço. Ainda por cima, hoje o Joãoé bem maior que o João espelhado na fotografia, tão grande que ele próprio não sabe onde ficou. Tal como eu, mas ainda é cedo para o revelar.

Perguntar-se-á porque é que o João é figura central do meu blog. Eu ainda não fiz essa pergunta mas terei de fazê-la um dia destes. O que faz um estranho no mundo de um ilhéu? Os ilhéus são desconfiados, ressentidos, não deixam que desconhecidos invadam os seus domínios. A razão é que as ilhas são tão pequenas que no espaço residual reservado para cada um não cabe lá mais ninguém…

Mas eu já não vivo na ilha, hoje a ilha sou eu. Vivi lá, tão juntinho ao mar que lhe chegava com a mão se a estendesse. Dez anos, tão ou mais longos que a vida, até que o mar se afastou e me deixou em prédios tão altos que não reconheço as pessoas que passam perto. Ando agora ao sabor das nuvens e não das ondas. Tão perdido que já não procuro encontrar-me. Afinal de contas o João sou eu e todos quantos se reconhecem numa lonjura, envoltos em histórias cheias de espuma.

E ao regressar fiquei por lá e cada vez mais tenho saudades de mim e daquele mar que às vezes me batia à porta e entrava tão calmo como os amigos íntimos. Agora, acomodo-me ao vazio tentando criar recantos que me recordam a minha ilha e aconcheguem a ilha em que me tornei.

E vai surgindo em pequenos instantes a alma que se perdeu por lá, nas letras que se vão juntando sem saber e assobio canções que o mar me ensinou.