segunda-feira, 28 de abril de 2008

A Contra-Revolução

- Onde nos perdemos, Zé?

Assim, de chofre, sem qualquer selo introdutório. Ele rodeou-a com o olhar, ao mesmo tempo que um sorriso inexpressivo lhe aconchegava a face. Mostrava-se distraída com a televisão, como se não esperasse qualquer resposta. Há tanto tempo que não a fitava nem descobria nela o olhar maroto e a prega ao lado dos lábios que surgia na zanga ou no riso de outros tempos. Como a amara e como aquele sentimento absorvente o ajudara a caminhar pela vida fora.

Foi no início dos anos setenta quando sinais, notícias e rancores antecipavam rupturas, numa sociedade prestes a explodir pelas costuras. Ambos na universidade de Letras, ele vindo de Trás-os-Montes, ela de uma pequena vila das Beiras. Conheceram-se naqueles acasos de que é fértil a juventude, à saída da universidade num dia de chuva torrencial. Vinha ele com um chapéu-de-chuva, daqueles tradicionais, enorme e com uma pega de madeira e ela com os livros na cabeça e em passo de corrida, a tentar salvar-se da enxurrada. A timidez dele foi suficiente para lhe perguntar se queria boleia, ela parou instantaneamente, identificou o intruso por um rápido exame e aceitou de imediato. Com um sorriso recatado encostou-se ao seu braço e atravessaram a chuvada com o chapéu deslizando de um lado para o outro tentando identificar o sentido do vento, até à paragem do autocarro, no lado oposto da alameda. No autocarro, subiram ao segundo andar, sacudiram-se da água que escorria dos casacos, ao mesmo tempo que se apresentavam formalmente e se sentavam no primeiro banco da frente.

Ela estava hospedada num colégio de freiras, ele vivia num pequeno apartamento na Amadora, propriedade de um tio emigrado em França. Comungaram pequenos dados, quase telegráficos, da origem, do curso, da residência, enquanto lá fora o dia terminava abruptamente à custa do céu cinzento escuro. Ela saiu algumas paragens depois, ele continuou com a cabeça encostada à janela, pensando que os dias mais belos são os que trazem chuva e meninas bonitas que precisam de abrigo. Depois desse dia, encontravam-se quase diariamente, até que os indícios eram claros de mais para passarem despercebidos. Foram tão devagar que às vezes sobrava saudade para outros futuros, mas a força das convicções e a dificuldade de encontros em horas tardias, devido ao internato, foi atrasando envolvimentos mais íntimos. Até que irrompe o 25 de Abril, cuja energia levou tudo à sua frente. Ao mesmo tempo que a sociedade se revolta, se refaz, se ajusta, os dois reconhecem de imediato que é a grande oportunidade das suas vidas, não só fazer parte da revolução enquanto agentes como terreno fértil da própria mudança. Misturam ideais políticos com profissões de fé na sua autonomia pessoal, ela muda-se para o apartamento da Amadora, originando uma guerra surda com ambas as famílias. Como penitência, durante alguns meses, deixam de lhes enviar as mesadas e muitas vezes conseguiram comer à custa da solidariedade de alguns camaradas revolucionários. Iam sobrevivendo com explicações e pequenos trabalhos num jornal.

Não perdiam uma manifestação, uma luta, um protesto. Mudaram vestimentas, estilos, entusiasmos. O desconforto físico da militância era uma ninharia tendo em conta o valor dos projectos sociais solidários e justos. Pertenciam a um pequeno partido de extrema-esquerda, onde colar cartazes, escrever nas paredes, fazer sessões contra o analfabetismo e promover sessões de esclarecimento era um dever cívico de todos. Viviam de noite e dormiam de dia ao som dos comboios. A anarquia na universidade permitia-lhes tempo, com as as cadeiras feitas de forma administrativa. E, já de madrugada, a revolução dava lugar ao fervilhar de corpos, com aquela mania que o corpo tem de recuperar o tempo perdido à custa da inconsciência.

Entretanto, os ecos da revolução iam perdendo a sua força. Tal como a sociedade, eles próprios iam saindo lentamente da guerra. Terminaram os cursos, ela concorreu para professora do ensino secundário, ele ingressou como jornalista num jornal de tiragem nacional. Casaram pelo civil num final de tarde, como convidados apenas os mais chegados, numa cerimónia sem qualquer folclore. Compraram casa mais perto de Lisboa e chegaram os dois filhos que, por diante, lhe ocuparam vidas e sonhos. Mais ou menos uma década depois tiveram que lidar com a velhice e mazelas dos pais, a dor de semanas e meses infindos com idas diárias ao hospital, jogando horários, intervalos e corridas para cumprimento de todos os deveres. Desprenderam-se deles, aos poucos, como de folhas de outono que caem ao sabor do vento. Com horários descontrolados, tornavam-se difíceis encontros de todos os elementos da família, e nos fins-de-semana punham-se em comunhão, os projectos, as culpas e os êxitos.

No início dos anos noventa, com as profundas alterações empresariais, ele teve de mudar de jornal, enquanto ela se media e confrontava com a nova escola, bem diferente daquela que conhecera na sua juventude. Quanto aos filhos, esses seguiam as suas próprias pegadas e já frequentavam a universidade. Para alívio da família, ambos escolheram cursos que à partida davam mais oportunidades de emprego e benesses económicas e todos aqueles ideais dos anos setenta ficaram, definitivamente, fechados em álbuns de fotografias. Discretamente, a revolução ficara perdida em baús.

Primeiro um, depois outro, saíram de casa. A filha fixou-se numa cidade do interior porque preferia a beleza e a acalmia do rio do que a chinfrineira da grande cidade; o rapaz para se juntar à namorada, sem que eles ensaiassem qualquer tentativa para o fazer mudar de ideias. E eles ficaram, claro. Ali com um pé na reforma, a olhar para a televisão. Durante todos aqueles anos não tiveram amantes, por personalidade e convicção, certeza mútua repetida em eventos mais significativos; detinham algumas acções de empresas credíveis, algumas poupanças e tudo tão equilibrado como se fosse resultado de um trabalho de mestre. O silêncio deixado pela partida dos filhos às vezes doía mas acostumaram-se como se fosse apenas o início de entusiasmos refrescantes. Sentiam as mudanças como uma marca do tempo, tal como o movimento das rodas gigantes das feiras populares em que se sobe lentamente para regressar depois ao mesmo sítio. Sem lhe confidenciar, a ela que se queixava mais do vazio criado pela partida deles, surpreendeu-se com algumas lágrimas quando entrava nos quartos agora silenciosos. Sentava-se na cama e olhava as fotografias que atestavam uma caminhada conjunta entre o nascimento e maioridade deles. Fotografias, que pela sua natureza, cor e qualidade atestavam alterações profundas, de tempos, de modernidades, de tecnologias.

Agora as noites passavam-nas juntos à frente da televisão ou a ler livros, o único hábito que restou do tempo revolucionário. Com um casal amigo combinavam viagens anuais a várias partes do mundo, iam ao cinema uma vez por semana, a um restaurante de vez em quando. No fundo, tinham encontrado um caminho seguro, onde o futuro se encontrava bem perto, mas sem aquelas angústias comezinhas. Sentiam-se livres por não deverem o seu futuro a ninguém.

Regressou ao rosto dela. Pregas simétricas, sucessivas, envolviam-lhe os olhos e marcavam a testa. A menina do autocarro de dois andares andava por ali, escondida, por baixo da seriedade da face, um cabelo mais claro e uns óculos que lhe pendiam no nariz. Durante aqueles anos, mesmo naqueles mais desgastantes, raramente lhe encontrara angústia, algumas vezes nostalgia, mas nunca desespero. A sua força e tenacidade foram suficientes para levar o navio a bom porto, mesmo no meio de algumas tempestades medonhas. Ele próprio, em várias situações, tinha sido suportado pela sua mão, no momento em que parecia escapar por abismos. E hoje sentia-se cómodo perto, sem nada que valesse a pena esconder, sem ter que inventar cenários para se sentir em casa. Da velha casa da Amadora até aquela cheia de livros e álbuns de fotografias muita água correu, muitos passos dados, alguns em contra-mão, uma catrefada de emoções à flor da pele. Sinais de vida tão inclementes como benfazejos. Sem despregar os olhos dela, enquanto ela, distraída, seguia mais uma reviravolta da série americana, respondeu-lhe:

- Por aí...

sexta-feira, 25 de abril de 2008

O Segredo

I - Há sempre uma zona de nós envolta em nevoeiro. Geralmente, identificamo-la com histórias atribuladas, desculpabilizadas por imaturidade e ingenuidade. Essa parte de nós cresce, ganha raízes, construindo, pouco a pouco, a nossa consistência. Dessa forma, nem nós temos as peças todas do que somos feitos. Temos uma aproximação, por um jogo de puzzles, onde faltam pedaços, espaços em branco, vazios que temos de inventar.

Temos desculpas, não temos todas as explicações. Aquela "face negra" não se partilha. Falar, significa elucidar, ilustrar, colocar no seu lugar, interpretar; falar nem sempre significa esclarecer. Há sempre uma parte da história que resta na obscuridade, num jogo de sombras, que não se deixa apreender mesmo por um investigador experimentado. A nossa verdadeira matriz é apenas acessível a nós próprios. Mesmo quando declaramos a dor de ser trocado por outro, isso significa muito mais do que o espelho do desconforto. Não afirmamos tudo, além do desconsolo que o facto originou. Por dizer ficaram os traumas causados ao nosso amor-próprio, horas passadas em frente à casa dos amantes, pedidos de desculpa patéticos, escarnecimento absoluto da nossa importância. É nesse lugar cruel onde nos revelamos na nossa imagem mais frágil. Por muito que se diga, o pior de nós fica apenas connosco.

As "figuras tristes" que vamos espalhando pela vizinhança nunca se esgotam. Somos o seu guardador de rebanho. Mesmo quando abrimos o jogo que desempenhamos neste teatro que é a vida, ficam guardados os pormenores mais cruéis. Um baú de viagem que nos persegue em todas as paragens. Ao recomeçarmos, indecisos, questionamo-nos: digo isto e aquilo? Logo se vê! Amputamos pormenores que poderiam causar danos irreparáveis na nossa imagem. O resto mantém-se nas masmorras. Com a desculpa de que o diremos quando a confiança amadurecer. Uma sobra para sempre perdida, subjugada pelo peso da vergonha, da timidez, da ignorância, do descrédito.

Crescemos à custa de silêncios, palavras não ditas, verdades não reveladas. O segredo é a nossa matéria-prima. Concedem-nos segredos quando nos julgam dignos de os calar. Há segredos que deixam de o ser à medida que nos vamos ajustando ao tempo, à idade, às circunstâncias. Há outros que permanecem colados a nós como lapas às pedras do mar.

II - Somos personagens misteriosas, todos temos esconderijos, alguns tão recônditos que nem nós os identificamos. Vêm ao cimo como o azeite em alturas mais melancólicas. Adormecidos, pairam como primos afastados, encontramo-los no final das festas, nos jantares de casamentos. No tempo restante passam tão despercebidos como cães vadios.

E todos nós temos segredos. Alguns fazem-nos mal como cancros adormecidos e prescindíamos deles sem custo. O problema é que não nos abandonam e vão ficando como arrendatários chatos, quezilentos, que só desocupam as casas à força da inconsciência. Outros são serenos, iluminam-nos a face e guardamo-los como preciosidades. Julgamo-nos felizes por os transportarmos vida fora, sem pena de serem só nossos e sem necessidade de os partilhar. Mas na vida há sempre um segredo determinante, um monstro que nos vai roendo as entranhas. Tão grande que parece não caber em nós e contra ele utilizamos armas poderosas como lamúrias, lágrimas e químicos. Garante o peso da vida, dá-lhe intensidade, concede-lhe densidade. É perigoso como uma bomba atómica.

Este causa sofrimento. Empurramo-lo para o mais profundo de nós, tentamos aprisioná-lo nas masmorras para que não nos apoquente com as suas manifestações. E a única forma de o amenizarmos é através da partilha. Falar dele significa reduzi-lo na sua dimensão. Perderá tanto mais a sua força quanto maior a sua partição. Deveria haver a possibilidade de uma purga colectiva onde os despejássemos e daí, por cloacas cósmicas, desaguassem no universo…

O que mais se aproxima desta catarse é a confissão católica. Um hábito perdido, injustamente extraviado, apesar das infinitas potencialidades que apresenta. Lá poderíamos exorcizar fantasmas, com alguém desconhecido que nos ouve com um silêncio acolhedor e no final manda-nos em paz. Também existem os psiquiatras que ficam gratos quando os procuramos! Mas aí a revelação é sempre mitigada pela presença de um estranho que não gosta de nós e nos ouve à custa de um preço. Haverá sempre aquela tendência de julgarmos que, ao entrar no seu gabinete, enquanto nos aperta a mão, pensa “ Que chatice! Nem me recordava que este doido vinha hoje!”. E no final, tem a tendência quase obsessiva de receitar uns anti-depressivos, como quem diz “ toma que isso passa”… Seria o mesmo que acreditar que o sexo pago permite ultrapassar a solidão!

III - Voltei como um ex-presidiário à aldeia. Estimado pela generalidade dos vizinhos, há muitos anos, saí sem dar desculpas e agora no regresso retenho sobre os ombros vergonhas antigas. A maioria permanece com semblantes carregados da idade e das guerras e olha-me como se eu tivesse mil segredos por desvendar. Tento sorrir para desbloquear memórias. Alguns respondem-me na mesma moeda, outros escondem-se na indiferença. Percebo-os perfeitamente…

domingo, 20 de abril de 2008

A Saudade

Diz-se que a saudade é muito nossa. A sua origem situar-se-ia nas gerações de caminhantes e peregrinos que, extasiados por mundos novos, colocavam sobre os ombros não só a tarefa de sobreviver como outra, não menos importante, a de regressar às origens. Voltar ao local onde se sentiram felizes. Um eterno retorno que faz lembrar os salmões que, após deambulações por vários anos e milhares de quilómetros pelo mar, sabe-se lá bem porquê, regressam para desovar e morrer.

Desses caminhantes que detestavam a viagem mas a julgavam como necessidade vital, ficou-nos o gosto melancólico dos afastamentos temporários, bem como o desejo de reencontros com o útero terreno. Da terra, das pessoas, dos cheiros e sabores. A viagem tem sempre retorno. Mais cedo ou mais tarde.

Mas, então, o que é a saudade? É um estado de espírito que não quer o presente para nada. O presente é um limbo de passagem que, ao rejeitar o passado, rejeita a felicidade e, ao negar o futuro, estorva o aconchego com a bem-aventurança. Mas a saudade não se satisfaz com um futuro cópia-fiel-do-passado. Reinventa-o com a audácia do novo, pela força acumulada da espera. Faz a triagem do passado, numa espécie de fábrica do tempo, onde operários retiram os produtos com defeito e deixam apenas seguir aqueles cuja qualidade e bom gosto motivam o interesse dos clientes de lojas comerciais. Para a saudade, o futuro é um passado reciclado.

Mas há outra razão forte para a saudade não gostar do presente. Recorro à história mais comovente que conheço sobre o tema. É de um escritor brasileiro cujo nome omito porque, para lá do meu esquecimento, tentativas do reencontrar revelaram-se infrutíferas. A história de uma mulher que diariamente vai ao cais chorar o desgosto da lonjura do marido embarcado. Muitas vezes, em sonhos, olhei esta mulher sozinha, em passos curtos, tantas vezes no meio de ondas que chocavam o cais com violência e com os cabelos escuros povoando o céu cinzento. As lágrimas correm-lhe numa face lívida, ao mesmo tempo, que o seu olhar se estende em direcção ao longínquo navio preso nas vagas. Tempos depois, regressa o barco que ela espreita desde a sua entrada no porto e o abraço mútuo é de uma energia tal que faz esquecer a barreira dos dias.

Mas a estadia dele revela-se como sempre se revelou no passado, cheia daqueles dramas que a intimidade negoceia. Mais a violência. É um passado presente que regressa já sem a triagem optimista da saudade. E ao fim da tarde a mulher caminha lentamente pelo mesmo cais, com aquele passo curto como se contasse os ladrilhos que cobrem o cimento escuro da salga, enquanto ondas fortes rebentam e a espuma flutua. E as lágrimas escorrem. Não tenho a certeza se a quantidade é superior. Mas são muitas. Na presença dele, sente a saudade de ter saudade. Afinal, também não quer o presente para nada.

Foi há muitos anos que conheci este conto, numa juventude onde a acomodação ao passado se fazia com tristeza. Pressenti que a vida é uma espécie de realização cinematográfica com feedbacks, viagens ao futuro e presentes perfeitos que se tornam envenenados. Com a saudade buscamos no passado a força para prosseguir, ao identificar o melhor de nós e da vida. No futuro sonhamos com pequenos cambiantes que reforçam a esperança.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Em Busca do Trivial

Às vezes, temo ficar enredado na simplicidade da vida, como se a vida pacata e feliz fosse apanágio dos mediocres. Esforço-me para me justificar a mim mesmo e aos mais próximos porque não procuro alternativas ao lento vaguear pelo empedrado do tempo. Afinal, todos parecem esperar a grande oportunidade, aquele alçapão mágico, que os leve a descobrir o seu nível de excelência. Permanecer, para a maioria, é exigir pouco de si mesmo. Permanecer é o resultado do medo do confronto com impasses insolúveis, densas desilusões, duras batalhas pela sobrevivência. Outros, para justificar a sua história simples e rotineira, garantem que nunca a alteraram porque não usufruiram do contacto com pessoas importantes que os puxassem para cima; ou não estavam no sítio certo quando a boleia do êxito passou. Como se os fracassos pessoais dependessem mais de outros do que deles.

Mas vou andando com aquele passo firme e procuro razões de busca ou de recusa de viagens. Penso melhor quando ando. Quando corro. Naquela passada certa ao ritmo de uma respiração mais ofegante. Com o sol ainda meio adormecido e a brisa fria das primeiras horas da manhã. Correr para onde? A sério, para onde? Para fora de nós mesmos? Será que acomodarmo-nos à vida é sinónimo de fraqueza de espírito?

Ou não será uma desculpa para não promovermos a auto-descoberta? A recusa do trabalho árduo na senda do melhor de nós? Tenho dúvidas, teremos de fazer contas e, em geral, somos péssimos contabilistas. Os passivos surgem porque, na maioria das vezes, não colocamos todos os dados nos pratos balança. O que poderíamos ter conquistado ao expulsar a capa de conforto que nos livra de inseguranças e do esforço redobrado? O que teríamos a ganhar e a perder pela ruptura com a condescendência, com a fraqueza, com a leviandade, com o encolher de ombros?

E lembrei-me de Steinbeck, num livro tão longínquo que se esconde o título, onde de uma forma crua condensava em duas vias a possibilidade da vida: a genialidade ou a mediocridade. Enquanto a primeira exigia a luta constante e diária pelo aperfeiçoamento individual, e teria de suportar a frieza, a ausência dos outros e a dor de ser incompreendido, com a segunda ganhava o calor, a promiscuidade e o prazer de ser aceite. E julgo que terminava, dizendo que se sentia feliz por ter escolhido a mediocridade, mas nunca saberia que recompensa teria obtido caso a sua escolha tivesse sido diferente.

E agora páro de correr, com o suor a escorrer pelo corpo. No parque da cidade apenas mais uma pessoa com o passada forte e perdido em pensamentos. O sol ainda jovem mostra o seu rosto mais familiar. Podemos olhar para ele sem medo de cegar, aquela massa avermelhada e revolta como um braseiro morno. O passo do coração vai deambulando já por ritmos mais pausados e pesquiso na memória espaços alternativos, onde a alma melhor se acomodasse. Mesmo alguns que me pertenceram no passado surgem com uma transparência vítrea. Não optaria por nenhum. Pelo menos nesta manhã de Abril fiquei convicto que o melhor será procurar a serenidade, aquele jogo de equilíbrio onde a vida não precisa de excelência, precisa de verdade e autenticidade.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Santa Eufêmia


Guardo os amigos de infância tão vivos na memória como marcas negras nas pernas e os muros e as veredas que calcorreávamos como símbolos da minha pertença ao chão. Nunca me senti tão envolvido pela ambiência social nem encontrei nos amigos posteriores tamanha sinceridade no estar e o mesmo aconchego. Mas também albergo com estranha exactidão o horizonte fronteiro às varandas da casa, – os meus castelos de vigia –, de onde se estendiam pelos buracos das grades de ferro as vinhas do senhor Carmindo e lá ao longe pinheiros verdes povoavam os montes como monstros inertes. A cor viva do Verão iluminando as cepas escuras não mais a reencontrei nas minhas andanças por desaparecimento do sol límpido e sereno da minha infância; mesmo as nuvens brancas que me perturbavam a atenção me pareciam mais vivas e variadas do que todas as outras que me assombraram as paisagens futuras.

A perspectiva apenas se alterava radicalmente uma vez por ano, em Setembro, durante as festas de Santa Eufémia, quando uma multidão de romeiros procurava o santuário, a maioria enfiada em camionetas que, em carreiro, se encostavam à varanda. A concentração tornava o passo lento e dava-me tempo para olhar nos olhos os peregrinos. Alguns, poucos, faziam-me sinais amistosos, mas a maioria, preocupada com os enigmas e razões das promessas feitas à virgem mártir, olhava em frente com pressa de chegar ao destino.

A verdade é que a santidade de Eufémia devia ultrapassar todos os santos conhecidos porque nenhum deles conseguia agrupar tanta gente em redor de uma ermida. Apesar da minha curiosidade, nem na catequese das irmãs salesianas, nem nos serões à volta da lareira, consegui a explicação cabal. Sabia apenas que o seu martírio se devera ao facto de Eufêmia não querer casar-se com alguém importante da sua terra, durante o reinado do imperador Diocleciano. A história causava-me algum desconforto, porque, se por um lado, na minha inocência, concordava que o casamento não era um local feliz para se viver, e que as relações humanas mais íntimas mergulhavam os intervenientes em situações de embaraço e incomodidade, por outro, também não percebia o dramatismo da opção, causa próxima da sua morte aos quinze anos de idade.

Um paradoxo que se manteve vivo durante alguns anos e que legitimava a recusa de um casamento no futuro, bem como manter na omissão as raparigas, já ausentes das brincadeiras dos garotos pelo sistema social vigente. Até que, numas férias de um Junho quente e cúmplice de trovoadas que forjavam no céu riscas florescentes e sons tão roucos como se partes do mundo ruíssem para os lados, no grupo coral das missas dominicais apercebi-me de um rosto tão sereno e harmonioso que só vira sonhos e de sorriso em sorriso acreditei que ela seria o único e o grande amor da minha vida. Os suspiros provocados pela sua lembrança e a ânsia de repetição dos treinos corais eram os sinais mais evidentes. Mas nada aconteceu até uma viagem a uma praia fluvial do rio Zêzere, organizada pela paróquia.

Alcandorados numa camioneta de caixa aberta, misturados com pratos, talheres e alguidares com febras de porco, tentávamos manter o equilíbrio nas curvas encostados uns aos outros. Proximidade desfeita logo à chegada quando os mais afoitos saltaram e enfiaram-se no rio no meio de risos e esgares de arrepios e outros à volta ganhando coragem para enfrentar as águas frias. Uma nova trovoada dava sinais no horizonte, mas apenas a chuva forte que arremessava tudo à frente determinou a fuga de todo o grupo, acomodando-se numa gruta natural que havia nas proximidades. Não foi por acaso que fiquei junto dela como perto do altar e no meio da tempestade, com relâmpagos certeiros que iluminavam o interior do abrigo e trovões que criavam ecos ensurdecedores, peguei-lhe na mão com o coração a tremer e ela acedeu colocando firmeza no aperto. O peito batia tanto que tive receio que se ouvisse e fizesse eco tal como os trovões e saí da gruta assustado com a genica que saía dos meus poros e com a consciência nítida que a comodidade das certezas desaparecera.

Foi o único amor da adolescência e resistiu tão pouco como aquele Verão que se esfumou ao som de trovões, raios coloridos no céu e foguetes da romaria de Santa Eufêmia. O futuro mostrava-se sombrio. Mais simples foi sentir o aperto de um afecto que não sabia o que fazer com ele para lá do calor das mãos.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

O Nosso Fundamentalismo


Muitos dos contornos e turbulências da vida se devem à falsa identidade entre certeza e verdade. Ao fazermos coincidir os dois conceitos, – em si antagónicos – a nossa história pessoal gira à volta desse fracasso da consciência. Usufruímos mais das certezas do que das verdades, preferimos mais os dogmas que aberturas de espírito e fugimos de tudo o que nos questione e nos faça vergar ao peso da dúvida. A dúvida desgasta, a verdade é cruel e a certeza pacífica.

Moldamos um espírito que nos alivie a alma da procura, pois receamos que a investigação nos coloque na senda de qualquer coisa incontrolável. A vida é mais simples quando já somos donos do que procuramos, seja a certeza das prioridades ou do que é imprescindível para ser feliz. Os ganhos com a destruição do “velho”, do gasto, do definido, do concreto, do evidente, do exacto, do previamente ajustado, seriam fabulosos, mas raramente arriscamos o seguro pelo risco do provável.

Quanto à nossa vida social, não gostamos de quem nos questione, elegemos quem nos mantém em terrenos familiares. Se alguém causa danos à nossa carapaça então que vá maçar outro! A verdade é uma obrigação exterior a nós. Não a queremos para nada. Preferimos as demonstrações, o reconhecimento. E tudo o que contraria esse estado de espírito são rasteiras dos nossos adversários, ratoeiras ao nosso bem espiritual e corporal.

Desta maneira, o fundamentalismo é um sistema benévolo que nos liberta de esforços e nos salva. Poderemos até defender uma faceta civilizada e tolerante em público, vestindo a capa do “politicamente correcto” para não sermos identificados a perigosos terroristas, mas, no íntimo, somos tão certos e seguros como pregadores xiitas. Apanhados desprevenidos poderemos criticar os sistemas sociais fechados e controladores, os seus decretos mortais, o aprisionamento das mentes e da vida de milhões de pessoas; censuramos-lhe o controlo rigoroso de hábitos, de procedimentos e formas de pensamento. Mas lá bem no fundo julgamo-los imunes à angústia, ao serem donos de uma vida onde o certo e o errado, a vida e a morte, o bem e o pecado, a certeza do céu e da terra, do crime e castigo são determinados por decretos. Pois fundamentalistas somos todos nós.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

O Jogo de Xadrez

Rasgo-me por dentro à procura de trilhos e sorrio como uma criança quando os encontro espalhados em paisagens iluminadas por luas cheias, tantas quantas cabem numa folha de papel. Os quartos crescentes e minguantes divergem por simples letras e repudiam-se mutuamente como num jogo de xadrez. É estranho como, por vezes, as luas se escondem por tempo indeterminado e depois surgem do nada com a visibilidade dos dias, claras como lençóis de linho retirados da lixívia. Depois, a transparência favorece a andança e adivinha-se a meta antes da caminhada se iniciar. Os dedos fogem depressa por teclados inertes que ganham ruídos sem ecos e as palavras escorrem da solidão de um dicionário morto.

Outras vezes, resisto mal ao tempo que demora a passar. A vida é um oportuno teste à nossa paciência. Não procuro outro lugar, apenas clareiras onde se dissolvam os dias. E hoje comecei cedo correndo tanto para ocidente que ainda presenciei um sol orgulhoso a sair do monte. Não sinto pressa em descer o morro mas a praia cheia de luz atrai-me irresistivelmente. Tenho medo de ficar preso a sombras e a ilha não é o melhor local para encontrar sinaléticas. Porque será que quem está lá fora deslumbrado de espaço anseia a ilha como campo de libertação e reencontro consigo mesmo, e, para quem vive nela, o espaço indefinido é o cenário onde se desmembram mais facilmente as angústias?

sexta-feira, 4 de abril de 2008

O Que Fazer com a Solidão?

Voltei-me como quem vigia uma criança solta no banco de trás de um automóvel. O passado não sabe comportar-se e, em caso de acidente, pode ser catapultado para a dianteira causando amolgadelas ao condutor. O itinerário escolhido, a velocidade, os meios de segurança accionados, muito devem a esse passageiro incómodo. Mesmo que, na maioria das vezes, o omitamos, por esquecimento nosso ou por falta de vivacidade dele.

Mas qualquer análise, por mais frágil que seja, assegura-me que mesmo dispondo de uma máquina do tempo não queria regressar. A trabalheira foi tremenda e hoje prefiro uma vida estável a um amontoado de sobressaltos e incertezas. A miragem de uma existência cheia de aventuras e desenlaces é coisa de filmes e livros de aventuras. Tal como a maioria, desejo a continuidade dos refúgios seguros após as deambulações diárias. Afectos, estabilidade no emprego, serras iluminadas por candeias imóveis ao fim da noite. A andança faz parte de um registo parcial e temporário e não um desejo intrínseco do ser humano.

A razão é simples. O bem supremo, o nosso Graal, é o afecto. O resto é coisa menor. Aliás, verdadeiramente, é o único bem que interessa remediar. A pobreza é mais fácil de resolver. Naturalmente, há muitos pobres queixando-se que a sociedade os esquece e rejeita, mas a grande maioria tudo fez para garantir esse estatuto e recolhe dele as suas alegrias íntimas. Aliás, creio que as pessoas acreditam naquilo que querem e preferem isso ao desvendar puro e simples das suas próprias imposturas. Se hoje se julgam infelizes pelo marido que é violento e alcoólico, amanhã chorarão a sua solidão pela morte prematura dele.

Por isso, tantos que se demarcavam de qualquer solução de compromisso definitivo, hoje afirmam a sua incapacidade de pensar a sua vida sem um suporte familiar, mesmo que ele seja – como quase sempre é – opressivo e pouco motivante. É a maturidade o elemento dinamizador da permanência e do conflito constante com a possibilidade da implosão. O que fazer sem a chatice da família, das suas regras e suas imposições? Da mesma forma o que fazer com a liberdade de um tempo sem os horários do emprego e sem a obrigatoriedade dos documentos a preencher? O que fazer do vazio inevitável face à previsibilidade de um futuro sem marcas ou sem projectos?

Não me lembro de quase nada. Poderão ser umas férias num sítio qualquer, num país qualquer, num paraíso qualquer. Poderão ser uns encontros mais ou menos alucinantes nuns fins-de-semana, poderão ser uns reencontros animados de velhos conhecidos. Mas, no final, quando a porta se fecha e as vozes soarem cada vez mais longínquas, regressará tudo de novo, que nos engole e nos domina. O que fazer perante a solidão?

Não há fuga. Há desvios, sobressaltos, escapadelas, mas regressa como um presidiário com estatuto de prisão em regime aberto. À noite, de volta à cela e, apesar do sol que reencontrou ao longo do dia, sabe que nada repara e ameniza a exigência de retorno aos velhos fantasmas da sua reclusão. O drama humano resulta da inexistência de atalhos de afecto ou de comunicação.

É como se as linhas de contacto serenas, certas e estáveis fossem a única conjuntura de sobrevivência. Penso em casos conhecidos. Pessoas que conheço desde a juventude e que permanecem encerrados no seu quarto. Vão desde os que olharam sempre com sobranceria para quem deles gostou, aqueles que por feitio cultivaram a frieza ou distanciamento – tanto da família como dos mais próximos – como outros que por falta de jeito ou de oportunidades não cumpriram ambições. Vinte anos depois os primeiros sinais de cansaço e desencanto são evidentes. Aquele furor antigo, exibição de força da sua individualidade, orgulho na situação cómoda de indiferença perante os outros, transformou-se em nostalgia. Não tanto pelo medo do futuro mas pela consciência do que perderam. O que vale a vida sem laços? O que vale o tempo sem os fios condutores de afectos? O que vale a resignação perante o desenrolar inevitável da vida sem um objecto afectuoso que a determine e, ao mesmo tempo, a eleve?