quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Eu Vi sem Olhos a Vida


Não sei quando tu me viste pela primeira vez, mas estou certo que não foi na primeira vez que eu te vi. Tocaste-me mas não me viste. Um olhar sem encontro. Confesso, muitas vezes aconteceu ver-te sem o teu olhar cravado em mim. E muitas vezes faz mal ao amor-próprio. Faz mal ser um espião dissimulado, exterior ao olhar de quem se vê; quando o olhar quer experimentar a imensidão e encontra um corpo opaco, sem vida para além dele…

Não sei quando me viste mas eu lembro-me do dia, do momento em que te vi. Tive a certeza porque depois a vida não se comportava em si mesma sem esse olhar. Sem que tu estivesses lá, onde quer que fosse. O mundo estava à minha frente, esmagando-me, mas sempre contigo. Não escondias o mundo, mas o mundo sem ti não tinha qualquer importância. Ou melhor, continha-te mas era ofuscado pelo brilho proveniente de ti. Como se o marcador se reduzisse a um tu que estava no mundo sem se confundir com ele. Não o negavas, mas não lhe davas autonomia. As coisas belas do mundo só o eram porque participavam de ti.

Disseste, naquela tarde, que em breve já conseguiria ver o mundo sem ti. No teu olhar não encontrei poesia nem profundidade. Vias alguém, sentias por ele ternura, nada mais que isso. Eu e o mundo convivíamos pacificamente, era possível um sem o outro. Ganhei certeza pouco depois. Melhor ainda do que pelas palavras que tentavas administrar. Aliás, não precisavas de dizer, bastava o teu olhar. Perdi as esperanças e repetias, no meio dos silêncios, que qualquer dia encontraria no mundo razões fortes de o amar sem tu estares nele.

E acertaste. Não me lembro quanto tempo entretanto se passou, sei que, ontem já não te vi. Encontrei apenas um corpo banal, - como é banal qualquer corpo - sem a imensidão que ocultava o mundo. Aliás, sou sincero, senti algum desprezo, por ter riscado a vida durante um tempo longo devido à tua ausência. Por tão pouco. Despida do olhar que viu a felicidade em ti readquiriste a tua natureza com a trivialidade dos gestos que todos somos para os outros que não nos vêem. Em mim, ao fim da tarde, restou apenas a melancolia de uma exaltação antiga e do desapontamento de ontem. E não falo apenas nas formas, normais e até sem jeito, refiro-me à ausência de sustentáculo para a poesia. Encontrei uma matéria espessa que nada me emociona nem nada me questiona. Já há muito que consigo pensar na beleza do mundo sem estares perto.

Deixaste de ser única e agora perdes-te na multidão. Foi o teu toque no braço que me determinou atenção sobre ti. O teu sorriso lembrou-me o sorriso antigo emoldurado num canto da memória e um trejeito do corpo ligou-me a um passado onde o repetia sem cessar. Perguntaste sobre a vida que decorrera e eu respondi aquelas coisas normais de gente que se reconhece numa história comum de vizinhança. Sorri a responder, sem qualquer angústia de permeio, como querendo mostrar que nada do passado se intrometera no meu bem-estar presente. Estavas sozinha, amores não quiseram nada contigo, revelações envoltas num sorriso voluntariamente triste. Fiz de conta que não percebi e garanti que a minha vida tinha o rumo seguro, de afectos e proveitos.

Não creio que qualquer sombra de remorso te agitasse. Pelo menos face à recusa no passado em aceitar um olhar como o meu. Mas, ainda bem que te encontrei e testemunhei a ausência de poesia. Um encontro que me garantiu definitivamente a paz que já muito antes alcançara. Apenas tive a prova dos nove. Não garanto, mas julgo que aos amores frustrados da juventude basta um reencontro breve para decifrar razões para aguentar o embate e julgar a justeza do destino. Talvez algo nos guia e nos defende, mesmo quando as vidas alternativas encontraram muros e vazio.

1 comentário:

::::: disse...

Primeiro o silêncio
Depois os olhares em busca de um sinal
Algo que justifique a acção
Que abra precedente para a fuga

(Encontro, Mário Cardoso)