sábado, 26 de janeiro de 2008

A Rapaziada de Ionesco


Quero falar de um grupo informal de que sou membro. Eu e mais oito, entrados ao mesmo tempo como numa sessão de cinema ao meio da tarde, sem pré-avisos nem qualquer cerimónia de iniciação. É tão informal que só com grande esforço lhe chamamos grupo, como se ele próprio recusasse ser entidade coesa com finalidades específicas. Não somos grupo de reflexão, de teatro, de leitura ou de qualquer objectivo muito concreto. Juntámo-nos porque no fim de um ano de contactos formais, pressentimos, sem o testemunharmos por palavras, que nos estimamos, aquele gostar matreiro que fabrica facilmente encontros que não têm clara uma agenda. Com a primeira e única regra instituída de que qualquer entrada a estranhos terá de ser avalizada e acordada por todos, o pseudo-grupo não tem director, nem porta-voz e no final dos encontros saímos com a consciência de que apesar do nada feito foi bom andar por lá…

Ás Quintas-feiras, sempre com atrasos significativos, olhamos os textos, lidos vezes sem conta, de um Ionesco tão absurdo como a própria vida de um adolescente. Guia-nos a fantasia de encená-los e levá-los ao palco um dia destes, mas, latente, o objectivo mesmo é dar largas a um espírito cheio de vontade de encontrar caminhos paralelos à linearidade do discurso institucional.

São alunos, alunos razoáveis mas óptimas pessoas. Poderiam ser melhores alunos mas não são. Nunca discutimos razões. Julgo que pressentiram que a competição sem alma transforma os rapazes em óptimos alunos e pessoas razoáveis; eles preferem o oposto. Possivelmente, os pais preferiam que fossem óptimos alunos e boas pessoas, mas não se pode ter tudo…(Continuo a pensar que o destino individual é sempre pesado em balanças cósmicas: quando temos uma parte em demasia teremos de, estoicamente, resignarmo-nos com a falta da outra.)

Deixem-me desde já dizer que não sinto qualquer culpa. Até porque gosto deles, mais do que se fossem melhores alunos e menos boas pessoas, daqueles que se julgam no direito de lutar por dez décimas como se delas dependesse a vida, a felicidade. Também os compreendo, a esses, mas sinto-me mais cúmplice dos que cultivam um espirito amplo, amanhado em múltiplas direcções, abertos aos outros e ricos nos afectos. Aliás, num futuro próximo, o êxito será distribuído por critérios bem diferentes dos actuais, sem a exclusividade de curricula cheios de “quadros de honra” e de notas que batem recordes de excelência.

É neles, pois, que reside a esperança. Neles que visitam o tempo com uma diversidade de interesses, de olhar saudável para a sua época, apesar do pessimismo face a um futuro perigoso e confuso. O que faremos quando a nossa vez chegar? O que encontraremos quando formos empurrados “borda fora”? Saberemos navegar? Haverá lugar para mim? Perguntava um deles. Talvez ao empurrão, responde outro. A sério, tenho a certeza que terão o espaço proporcional ao seu entusiasmo.

Mas por enquanto caminhamos ao acaso. Espera-nos um Maio qualquer que nos empurarrá para cima de um palco, um palco cheio de corredores e de estranhas personagens que estendem o sono pelas manhãs de Domingo, vestidos de roupas floridas, comem chucrute após idas ao teatro de marionetes e voam sobre os céus de Paris em aviões de cartão. E num cenário estreito povoado de cartolinas com janelas pintadas e portas pendentes, sob o calor de sois amarelos do tamanho de queijos gigantes e de luas comestíveis com saber a melão, voaremos todos pelo universo num avião que o sol derreterá antes da hora do jantar. E depois sairemos do palco em busca do sentido que desperdiçámos por jogarmos com o absurdo e que a maturidade irá trazer, aos poucos, como pedaços de confetis que vão caindo sobre espectadores após final apoteótico…

Só nesse Maio distante, numa Primavera qualquer que o grupo tomará forma, não agora que o tempo é pouco e trabalhos mais inadiáveis nos empurram para fora do palco. Virá um futuro em que irão jogar às escondidas com os mistérios tremendos de vidas ainda não vividas, vidas que têm sorte de serem cozinhadas em lume brando através de encontros e desencontros. Aí sim, o palanque tomará a forma de lares com famílias à procura de horizontes, de caminhos sinuosos e actividades separadas do mundo por vidros escuros. Agora, apenas aquele olhar matreiro, a despreocupação com os prazos que se apertam às pernas como garrotes, a resignação de decorar textos, a tornar sério o que sempre foi desde o seu início. Embora nos falte a urgência e as Quintas-feiras passem tão rápido, resta-nos a confiança que o absurdo do texto de Ionesco esconda o absurdo de tentarmos continuar por cá…

1 comentário:

Unknown disse...

Nada de absurdo tem esta rapaziada! Generosidade, entrega, antes.
Esperamos todos pelos resultados desta entrega. Pode ser quando o futuro quiser.
E não estou nada de acordo de que não haja no "grupo" um líder, há e bem legítimo!
Parabéns!
Eles saberão agradecer.