Gostei do vento de ontem, um vento de barba rija que arremessava tudo à sua frente. Varreu ruas e melancolias, sacudiu tudo, mesmo as mentes adormecidas desde o Inverno passado, e vinha acompanhado de chuva forte, daquela que faz um barulho do catano ao bater nos vidros. (A chuva sempre me consolou. Sempre sonhei dançar debaixo dela. Nunca entendi porque me acalma e me pacifica e desconheço porque me faz adormecer mais depressa. Talvez porque através dela o Céu se liga à cinza por fios descontínuos de gotas que escorrem em caleiras invisíveis e sujeitas à ventania… Uma chuva que nos eleva e ao escorrer na terra transfigura o toque celeste num abraço afectuoso). Mas como ia dizendo, tudo balouçava furiosamente, os seres mais frágeis vergavam-se de cabeça encostada ao chão e outros, desapegados do seu lugar natural, pairavam no ar como os balões de S. João. Mesmo gente insuspeita levantava voo tal como parapentes desgovernados e subia a altura proporcional à largura das roupas vestidas e área dos guarda-chuvas. Cães vadios que não se esconderam debaixo dos automóveis foram arrancados do solo e um pairava mesmo frente à janela do quarto a ladrar de aflição, em cambalhotas no ar como no circo, só que menos sincronizado. E tudo numa amálgama estranha com caixotes do lixo que abriam e fechavam as tampas como bocas dos afogados. E no mar, uma fina camada de água desprendida corria em direcção à igreja de Misericórdia, alagava os barcos que se escondiam por trás dos molhes da marina.
A cidade às escuras move-se expectante numa postura maternal que esconde sob as asas as crias indefesas. As ruas limpas de folhas e de dejectos levados pela água em corrente, as casas e as árvores a escorrerem como roupa lavada em tanques, os sinos das igrejas em movimentos desconexos sem que o badalo se inquietasse o suficiente para tocar a rebate. Em situações de crise a cidade tem posturas semelhantes ao animal acossado. Quando o perigo espreita constrói estratégias defensivas, intimida, comprime-se e transforma-se numa estrutura compacta, feroz e manhosa, pois ao reconhecer mais força ao inimigo em campo aberto assume a luta de forma contida, como guerrilheiros que atacam em acções isoladas. As janelas são empancadas por portadas, os canais de esgoto aliviados, as tunas desocupadas, tudo se ajusta para a contenda...
Horas de enorme exaltação. Aquele clima de expectativa entre a vida e a morte, entre a resistência e o abandono total à destruição. Depois das tropelias, o vento e da chuva afastaram-se e os percursos de ambos vislumbravam-se no mar pelo ardor das ondas. A cidade respirou fundo e o silêncio aconchegou-a como um cobertor de lã. Pessoas, animais e coisas que balouçaram no ar aterraram, uns sobre telhados, outros na praia, outros ainda projectados sobre as antenas das televisões e em vez do telejornal via-se a cara deles espalmada contra os ferros, num espectáculo mais cruel do que as próprias notícias. Mas não ocorreu qualquer morte o que é enigmático e os que viveram mais de perto os fragores dos elementos surgiram com aquele semblante misto de temor e paz interior garantido que estava o sentido da vida depois do enfrentamento da morte.
As gruas dos bombeiros foram aos poucos arrumando em casa os desavindos, as árvores nos seus canteiros e os burros e as vacas nos pastos correspondentes e às cinco da manhã a cidade finalmente adormeceu. Lá em casa o descanso demorou apenas duas horas porque o papagaio é como um relógio de boa marca e acorda sempre às sete e fala e grita até os donos o apaparicarem com carícias e comida renovada. Como nada havia a fazer tomei banho, saltei para a rua de Jesus e apenas um telhado meio caído na esquina com a Rua dos Canos Verde testemunhava a tempestade e a força desmesurada da ventania da noite finda. Mas segundo os técnicos hoje à noite regressa. Não percebo onde se escondeu e como é que sabe o caminho de regresso para esta caganita de terra em cima do mar. Mas vou novamente encostar-me à janela e olhar o mundo revolto pelo vento e ouvi-lo divertir-se em tangentes às coisas e levantá-las no ar como balões de S. João iluminados por velas de tão frágeis que ardem e pregar sustos às pessoas, aos cães e bater nas janelas como quem quer entrar e ensinar a voar quem nunca saiu do chão até os deixar pousados nos telhados e antenas da rua de Jesus.
A cidade às escuras move-se expectante numa postura maternal que esconde sob as asas as crias indefesas. As ruas limpas de folhas e de dejectos levados pela água em corrente, as casas e as árvores a escorrerem como roupa lavada em tanques, os sinos das igrejas em movimentos desconexos sem que o badalo se inquietasse o suficiente para tocar a rebate. Em situações de crise a cidade tem posturas semelhantes ao animal acossado. Quando o perigo espreita constrói estratégias defensivas, intimida, comprime-se e transforma-se numa estrutura compacta, feroz e manhosa, pois ao reconhecer mais força ao inimigo em campo aberto assume a luta de forma contida, como guerrilheiros que atacam em acções isoladas. As janelas são empancadas por portadas, os canais de esgoto aliviados, as tunas desocupadas, tudo se ajusta para a contenda...
Horas de enorme exaltação. Aquele clima de expectativa entre a vida e a morte, entre a resistência e o abandono total à destruição. Depois das tropelias, o vento e da chuva afastaram-se e os percursos de ambos vislumbravam-se no mar pelo ardor das ondas. A cidade respirou fundo e o silêncio aconchegou-a como um cobertor de lã. Pessoas, animais e coisas que balouçaram no ar aterraram, uns sobre telhados, outros na praia, outros ainda projectados sobre as antenas das televisões e em vez do telejornal via-se a cara deles espalmada contra os ferros, num espectáculo mais cruel do que as próprias notícias. Mas não ocorreu qualquer morte o que é enigmático e os que viveram mais de perto os fragores dos elementos surgiram com aquele semblante misto de temor e paz interior garantido que estava o sentido da vida depois do enfrentamento da morte.
As gruas dos bombeiros foram aos poucos arrumando em casa os desavindos, as árvores nos seus canteiros e os burros e as vacas nos pastos correspondentes e às cinco da manhã a cidade finalmente adormeceu. Lá em casa o descanso demorou apenas duas horas porque o papagaio é como um relógio de boa marca e acorda sempre às sete e fala e grita até os donos o apaparicarem com carícias e comida renovada. Como nada havia a fazer tomei banho, saltei para a rua de Jesus e apenas um telhado meio caído na esquina com a Rua dos Canos Verde testemunhava a tempestade e a força desmesurada da ventania da noite finda. Mas segundo os técnicos hoje à noite regressa. Não percebo onde se escondeu e como é que sabe o caminho de regresso para esta caganita de terra em cima do mar. Mas vou novamente encostar-me à janela e olhar o mundo revolto pelo vento e ouvi-lo divertir-se em tangentes às coisas e levantá-las no ar como balões de S. João iluminados por velas de tão frágeis que ardem e pregar sustos às pessoas, aos cães e bater nas janelas como quem quer entrar e ensinar a voar quem nunca saiu do chão até os deixar pousados nos telhados e antenas da rua de Jesus.
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