sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

O OUTONO


Estou seguro que a cor amarelo-torrado das folhas dos plátanos é a que mais se aproxima do verdadeiro tom do Outono. A certeza ganhei-a ao subir o Monte Brasil por uma estrada íngreme, delimitada por espécies já centenárias e coberta de folhas mortas, às nove da manhã de um Domingo solarengo e frio. Um fundo de amarelo de forno que cobria o horizonte e folhas a rodopiar à volta umas das outras sempre que soprava o vento, tudo me envolveu numa melancolia avassaladora. Como se de uma simples sombra dependesse a tristeza absoluta.

Na Segunda, ao entrar ao serviço, informaram-me que falecera o António Filipe que tinha a tarefa diária de limpar o átrio que prolonga o solar de folhas caídas e ervas daninhas. O estranho é que a causa de morte foi uma degenerescência do cérebro que o transformou em água em apenas alguns dias. De um dia para o outro, perdeu a locomoção, o entendimento e a fala e foi mirrando como um rego que se esvazia, até ficar pele e ossos. O mal causado às árvores talvez seja semelhante ao declínio que o Outono provoca em todos os seres. Nuns mais do que noutros, mas todos sofrem esta perda de vigor e de esperança e ganham a tristeza proporcional ao desfalecimento vital. Mas, coincidência ou não, ontem garantiram-me que andava mais amarelo que o costume e tive a nítida sensação que me tinha desprendido de uma árvore qualquer e deixado abandonado à mercê de ventos e marés. O sentimento do Outono significa que a margem da vida estreita-se como se a maré alta chegasse à praia e a cor é lançada no espectro para o lado vermelho, tal como o rasto deixado por Galáxias que se afastam.

Agora, quem limpa o átrio que prolonga o Solar em direcção ao Monte Brasil é o senhor José que tira o chapéu sempre que alguém passa e tem um sorriso bonito semelhante ao defunto. É a primeira pessoa que encontro logo de manhã, sempre curvado em direcção ao empedrado como um pesquisador de ouro. Só de quinze em quinze dias ele se deixa de preocupar com as folhas e lava a fonte situada numa extremidade do átrio e onde sete peixes vermelhos e um preto andam de um lado para outro como doentes mentais. A minha vontade de o avisar face aos malefícios da sua função esbarra sempre com a inutilidade do conselho pois nada tenho para lhe dar em troca, e não acredito que ele levasse a sério a mensagem. Até porque a doença que as folhas de Outono transportam leva o seu tempo a ser visível e nada garante que não seja salvo no limite por qualquer Primavera. Mesmo assim, em todas as manhãs fico atento de forma a notar qualquer falha, qualquer mazela em mim e no mundo que identifique razões de alarme...

Não é simples a vida de um apanhador de folhas. As árvores são como as pessoas e há folhas mais presas que outras à vida, outras mais frágeis que são levadas nas primeiras sopros enquanto outras resistem até ao fim do Inverno. O apanhador de folhas, por isso, convive com uma fatalidade, a árvore não se despe de uma vez, há folhas que se agarram como lapas, enquanto outras, mais desgastadas que se deixam cair ao sabor do vento da manhã.

Qualquer apanhador de folhas espera a salvação numa primavera qualquer que lhe traga o sol e as folhas verdes tão presas à vida como pedras nas calçadas.

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