Gosto de pensar nela com o sorriso célere e melancólico que lhe esclarecia a face ao chegar. As rugas profundas sucediam-se como ondas prestes a rebentarem na praia, cada uma com sua história, e as falhas de dentes acentuavam-lhe sinceridade. Só o tornava a desvendar quando à partida lhe dava um beijo de despedida. E a tarde, envolta em sombras das cortinas, decorria serena como se nada se passasse, onde os corpos se refastelavam na lentidão.
Na verdade, eram encontros silenciosos. Ela tricotava sem parar, elevava a cabeça, de tempos a tempos, concentrando-a por segundos na janela. Às vezes fazia comentários breves, semelhantes a interjeições prolongadas, mas rapidamente se reconduzia a um silêncio calmo. No início, eu ainda cortava o ambiente com monólogos extensos, sobre a minha vida e vidas de outros, a maioria seus desconhecidos, que em episódios sucessivos de novelas radiofónicas, eram abertas como os livros sagrados nas igrejas. Em movimentos das mãos e da cabeça a avó respondia ao diálogo, em sinais de compreensão, compaixão ou desagrado, conforme as histórias reconduziam a factos mais ou menos desesperados, mais ou menos tristes.
Numa tarde – o fundamento de todas as tardes futuras – descobriu o olhar afastando a malha e colocando o novelo e as agulhas meticulosamente em cima de uma mesinha, afagou as pernas cobertas com a colcha escura e desabafou: “sabes bem o que significa para mim a tua companhia. Mas como calculas, na minha idade não é o que dizes que interessa, é o ficares perto. Não te preocupes com as palavras, basta estarmos juntos. Sei que, por vezes, é um sacrifício alimentar temas de conversa e o bem que as palavras me fazem não é comparável à simples presença de ti. Quando chegas fico feliz, ao partires sinto-me feliz pela promessa do teu regresso. Com o tempo da permanência não te preocupes.”
A partir daí terminaram as revelações. Sentia-me cómodo no silêncio, sem ter que quebrar linhas de pensamento, minhas ou dela. Nunca sentira antes um estado de espírito tão cómodo de estar com alguém apenas com gestos. De vez em quando voltava-se na minha direcção, trocávamos o olhar e fazíamos um esgar de compreensão e calma. Bastava, para continuarmos a acreditar que ambos nos sentíamos confortáveis. Por vezes, analisava-a, as mãos brancas, tão lisas como papel vegetal e com veias escuras a espreitar na superfície, o cabelo esbranquiçado e aquela calma que só transparece quando não se quer estar noutro sítio. “A velhice tem também um lado positivo. A morte é tão inevitável como o Inverno depois das tardes sufocantes o que transforma as lágrimas das partidas em simples conforto espiritual. Quando se é novo o desaparecimento de alguém representa sempre uma reconstrução do tempo, pois, após o desgosto, a vida continua por espaço aberto. Quando somos velhos a morte de alguém próximo é mais uma porta que se fecha. Até que nos habituamos a encontrar no silêncio a vida que falta”.
Na juventude, os outros são sôfregos, não de nós mas de qualquer um que os alivie das tormentas, dos seus pensamentos mórbidos e suicidas. Cada vez há menos amigos, pois cada vez há menos paciência para se aturarem amigos. Os verdadeiros (como só os amigos podem ser) são chatos, possessivos, violentos, questionadores, legalistas, inquisidores. Preferimos relações fáceis, que banalizam a palavra, o sorriso, o bem-estar, o tempo corrido sem obrigações. São as relações “elásticas”: utilizam-se e esticam-se conforme as necessidades sociais. Nelas há ausência de interioridade, de melancolia, de honestidade, de reprovação. De intensidade de olhares. Há apenas o gosto pela reprodução de elogios, de palavras mansas que nos amenizam a aventura social.
E há pessoas que são o protótipo do “convidado”. São simpáticos, de riso fácil, não se deixam conhecer, sabem de memória ditos e sentenças que vêm sempre a propósito, reconhecem e praticam as regras da boa educação e são sedutores o suficiente para que os donos da casa repitam gestos simpáticos nas próximas festas caseiras. Quem os convida fá-lo por sua própria conveniência. Aos convidados permitem-lhes os discursos sem interrupções ou discordâncias, alimentam-lhes hipocrisias, toleram-lhes o teatro, os sonhos, as mentiras. São socialmente requisitados, não por eles – o que eles são – mas por amenizarem a passagem de um tempo banal e sem rumo. Todos nós gostamos de estar com gente assim. A menorização deles não é por seu mal mas por bem nosso.
Mas depois do charme a rodo, do enebriamento social, das plumas, chega o emudecimento. Entra-se em casa como num castelo inexpugnável sem necessidade dos outros, sem sorrisos de circunstância, sem a violência da verdade, sem vidas paralelas, sem guerras sociais, sem a luta constante entre o desvanecimento no ser dos outros e a independência de nós. Caímos encostados à porta fechada, os cotovelos nos joelhos e os punhos fechados a segurar a cabeça e sonhamos com silêncios tão ferozes como cães malditos, guardiões de tesouros e adversos a famílias faladoras, a amigos íntimos, àqueles que não são nem virão a ser e aos outros que as circunstâncias nos aproximam e nos encostam…
Como eu saboreava as visitas a casa da minha avó. De sentir aquela calma do sorriso da chegada, de me encolher na melancolia e passar as horas sem dar conta, sem ter de aprender nada nem dizer, sem desvendar nem oferecer ao desvendamento. Ela não precisava de mim ali, nem de me ver, nem de sentir a minha voz. Talvez haja uma essência no “estar” que não precisa de ajustamento físico. Uma solidão tão perfeita que o ser que a palavra representa ou participação no mesmo espaço físico são factores insignificantes. O verdadeiro encontro prescinde de tudo o que é exterior à intimidade. Estar acompanhado mas no isolamento de nós.
Em que pensa, avó? “Em nada, filho. Estou a rezar. Pensar é criar problemas, oportunidade de tristezas e mágoas. Já desisti de pensar. Apenas caminho sem rigor, sem precauções ou limites. Neste estado, a pergunta do destino já não é origem de tragédias, espera-se como quem está na expectativa de um pôr-do-sol numa tarde soalheira”.
Não me lembro quanto tempo durou a peregrinação. Um dia, ao chegar, ela não me esperava, estendida em urgência noutro lugar menos silencioso que a sala do encontro. Mas o sorriso melancólico ficou.
Na verdade, eram encontros silenciosos. Ela tricotava sem parar, elevava a cabeça, de tempos a tempos, concentrando-a por segundos na janela. Às vezes fazia comentários breves, semelhantes a interjeições prolongadas, mas rapidamente se reconduzia a um silêncio calmo. No início, eu ainda cortava o ambiente com monólogos extensos, sobre a minha vida e vidas de outros, a maioria seus desconhecidos, que em episódios sucessivos de novelas radiofónicas, eram abertas como os livros sagrados nas igrejas. Em movimentos das mãos e da cabeça a avó respondia ao diálogo, em sinais de compreensão, compaixão ou desagrado, conforme as histórias reconduziam a factos mais ou menos desesperados, mais ou menos tristes.
Numa tarde – o fundamento de todas as tardes futuras – descobriu o olhar afastando a malha e colocando o novelo e as agulhas meticulosamente em cima de uma mesinha, afagou as pernas cobertas com a colcha escura e desabafou: “sabes bem o que significa para mim a tua companhia. Mas como calculas, na minha idade não é o que dizes que interessa, é o ficares perto. Não te preocupes com as palavras, basta estarmos juntos. Sei que, por vezes, é um sacrifício alimentar temas de conversa e o bem que as palavras me fazem não é comparável à simples presença de ti. Quando chegas fico feliz, ao partires sinto-me feliz pela promessa do teu regresso. Com o tempo da permanência não te preocupes.”
A partir daí terminaram as revelações. Sentia-me cómodo no silêncio, sem ter que quebrar linhas de pensamento, minhas ou dela. Nunca sentira antes um estado de espírito tão cómodo de estar com alguém apenas com gestos. De vez em quando voltava-se na minha direcção, trocávamos o olhar e fazíamos um esgar de compreensão e calma. Bastava, para continuarmos a acreditar que ambos nos sentíamos confortáveis. Por vezes, analisava-a, as mãos brancas, tão lisas como papel vegetal e com veias escuras a espreitar na superfície, o cabelo esbranquiçado e aquela calma que só transparece quando não se quer estar noutro sítio. “A velhice tem também um lado positivo. A morte é tão inevitável como o Inverno depois das tardes sufocantes o que transforma as lágrimas das partidas em simples conforto espiritual. Quando se é novo o desaparecimento de alguém representa sempre uma reconstrução do tempo, pois, após o desgosto, a vida continua por espaço aberto. Quando somos velhos a morte de alguém próximo é mais uma porta que se fecha. Até que nos habituamos a encontrar no silêncio a vida que falta”.
Na juventude, os outros são sôfregos, não de nós mas de qualquer um que os alivie das tormentas, dos seus pensamentos mórbidos e suicidas. Cada vez há menos amigos, pois cada vez há menos paciência para se aturarem amigos. Os verdadeiros (como só os amigos podem ser) são chatos, possessivos, violentos, questionadores, legalistas, inquisidores. Preferimos relações fáceis, que banalizam a palavra, o sorriso, o bem-estar, o tempo corrido sem obrigações. São as relações “elásticas”: utilizam-se e esticam-se conforme as necessidades sociais. Nelas há ausência de interioridade, de melancolia, de honestidade, de reprovação. De intensidade de olhares. Há apenas o gosto pela reprodução de elogios, de palavras mansas que nos amenizam a aventura social.
E há pessoas que são o protótipo do “convidado”. São simpáticos, de riso fácil, não se deixam conhecer, sabem de memória ditos e sentenças que vêm sempre a propósito, reconhecem e praticam as regras da boa educação e são sedutores o suficiente para que os donos da casa repitam gestos simpáticos nas próximas festas caseiras. Quem os convida fá-lo por sua própria conveniência. Aos convidados permitem-lhes os discursos sem interrupções ou discordâncias, alimentam-lhes hipocrisias, toleram-lhes o teatro, os sonhos, as mentiras. São socialmente requisitados, não por eles – o que eles são – mas por amenizarem a passagem de um tempo banal e sem rumo. Todos nós gostamos de estar com gente assim. A menorização deles não é por seu mal mas por bem nosso.
Mas depois do charme a rodo, do enebriamento social, das plumas, chega o emudecimento. Entra-se em casa como num castelo inexpugnável sem necessidade dos outros, sem sorrisos de circunstância, sem a violência da verdade, sem vidas paralelas, sem guerras sociais, sem a luta constante entre o desvanecimento no ser dos outros e a independência de nós. Caímos encostados à porta fechada, os cotovelos nos joelhos e os punhos fechados a segurar a cabeça e sonhamos com silêncios tão ferozes como cães malditos, guardiões de tesouros e adversos a famílias faladoras, a amigos íntimos, àqueles que não são nem virão a ser e aos outros que as circunstâncias nos aproximam e nos encostam…
Como eu saboreava as visitas a casa da minha avó. De sentir aquela calma do sorriso da chegada, de me encolher na melancolia e passar as horas sem dar conta, sem ter de aprender nada nem dizer, sem desvendar nem oferecer ao desvendamento. Ela não precisava de mim ali, nem de me ver, nem de sentir a minha voz. Talvez haja uma essência no “estar” que não precisa de ajustamento físico. Uma solidão tão perfeita que o ser que a palavra representa ou participação no mesmo espaço físico são factores insignificantes. O verdadeiro encontro prescinde de tudo o que é exterior à intimidade. Estar acompanhado mas no isolamento de nós.
Em que pensa, avó? “Em nada, filho. Estou a rezar. Pensar é criar problemas, oportunidade de tristezas e mágoas. Já desisti de pensar. Apenas caminho sem rigor, sem precauções ou limites. Neste estado, a pergunta do destino já não é origem de tragédias, espera-se como quem está na expectativa de um pôr-do-sol numa tarde soalheira”.
Não me lembro quanto tempo durou a peregrinação. Um dia, ao chegar, ela não me esperava, estendida em urgência noutro lugar menos silencioso que a sala do encontro. Mas o sorriso melancólico ficou.
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