sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Caríssimo defunto...

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Enquanto te encontras exposto aos olhares do mundo, aguardando as últimas rezas e transporte para o crematório, decidi escrever umas linhas que vou arrumar no teu último domicílio, dentro de um caderno cor-de-rosa, onde ao longo dos anos sepultei desabafos, feridas e mágoas, muitas delas ainda por sarar. Vais dispor de um tempo infinito para uma leitura atenta, repetida tantas vezes que saberás de cor as palavras, mesmo de trás para a frente, até que conseguirás soletrar letra por letra, textos que em vida apenas te provocariam bocejos, ou ainda pior, repugnância. É o meu castigo e, quem sabe, a tua redenção…

Apanhaste-me de surpresa, de tal maneira que nem roupa tinha para mostrar luto e nem lágrimas encontrei nos meus olhos. Sou sincera, chorei tanto pela tua presença enquanto vivo que agora me faltam na tua ausência. E nem sequer fui infeliz. Tratavas-me bem, nunca me faltou nada, os filhos tiveram todas as oportunidades para voar sozinhos. A única coisa que faltou foi poesia. Deves rir-te imenso com o desabafo como se eu, uma pobre labrega, sem jeito e sem escola, pudesse ter uma alma de poeta... Mas era o que me parecia e agora tenho certeza. Nunca poderias entender que, para lá de uma vida confortável, precisamos de beleza, de romance e de ambição espiritual para se reinventar o sentido da vida.

Claro que tu já o tens na tua posse desde há dois dias, quando a trombose te retirou do sofá e te encostou ao soalho. Mas talvez não saibas que eu te amava à minha maneira. Nunca o atestei porque nunca te mostraste receptivo a essas lamechices, pois, como afirmavas, palavras leva-as o vento e não deixam vestígios. Dizias que falar só é importante quando não existem actos e eu sempre pensei, pelo contrário, que as palavras são mais importantes do que as acções. O acto de “fazer” perde-se nos movimentos e os ferretes deixados depressa se esfumam, enquanto que as palavras permanecem e guardam-se a elas próprias. E tantas horas dentro de autocarros nas idas e vindas do emprego, tantas horas de silêncio na cozinha, tantas horas de quietude em frente à televisão, ensinaram-me a olhar o tempo com maior sensibilidade do que me era permitido exteriorizar e, por isso, tive que guardar os sobejos num recanto qualquer, fora do olhar dos outros. Nunca mostrei o resultado com vergonha de alguém gracejar pela letra desengonçada, por versos com rimas pouco precisas que decorava e depois transcrevia para o caderninho cor-de-rosa escondido na mesinha de cabeceira. Lembro-me que, numa noite, procuravas uma pomada para a ciática pegaste nele, viraste uma página e depois outra e comentaste: “o que é que faz aqui um caderno da miúda?”, enquanto eu tremia de pavor pelo segredo desvendado. Uma mulher poeta, ainda por cima iletrada, deveria ser a pior notícia dada a um homem como tu, não achas?!

Se queres saber e como irás testemunhar, lá falo do temor de uma vida tão curta que não coubesse nas ambições desmedidas de um poema, do desejo de querer ver o mundo, de me libertar desta vida de sobrevivente que sempre nos manietou. Questiono o molde que nos amarrou à casa e à sua mesquinhez por falta de horizonte que não fosse o precaver uma velhice calma. Queria libertar-me da pressão constante de pagar prestações para logo a seguir descobrirmos outro objectivo que uma vez mais nos confinava movimentos. Agora que te finastes, sou sincera, não valeu a pena. Perdemos a vida com ninharias e pouco ou nada levámos, como tu poderás constatar nessa eternidade silenciosa. Imagina a tua cara se na semana passada te pedisse para visitarmos Santiago de Compostela…

E agora desapareces. Não faço ideia do que irei fazer mas não me apetece ficar para aqui sozinha. É muito estranho, mas sem ti não me sinto poeta. A poesia não tem que ser harmoniosa, triunfal, aliás, a maioria das vezes, sabe a fel. Não dá felicidade, bem pelo contrário. Só há poesia quando a alma se sente dilacerada, acorrentada em situações sem saída, como eu me senti muitas vezes ao teu lado. Agora, quando a vida está à minha frente, sem rodeios nem empecilhos não a quero para nada, não me interessa. Já não encontro a beleza nela. Só a inventava quando por trás das cortinas corria um mundo inacessível, sendo tu o empecilho de eu ser feliz. Agora já não consigo avistar qualquer horizonte.

Por isso, eis a surpresa e a suprema afronta. Não sei viver sem ti. Não sou capaz de pensar em vidas alternativas. Não sou capaz de me libertar da tua força. Não consigo pensar o dia sem me subjugares com a tua presença omnipotente, sem espaço para respirar. Não sou capaz, porque, sem amarras, não posso ser feliz em imaginar a minha libertação, mais cedo ou mais tarde. Agora que partiste partiu também a minha última hipótese de terminar o poema.

1 comentário:

Unknown disse...

Obriado, Antonio. Great blog!