sábado, 9 de fevereiro de 2008

O Olhar da Indiferença...


Entrou em casa com um beijo fugidio e um olá seco. Tirou os sapatos e calçou uns chinelos. Mantinha o hábito longínquo de se separar do menos confortável ao entrar no seu domínio. Depois sentou-se em frente da televisão perto dela. Era cedo para o jantar e perguntou,

- O que te apetece comer? Há sopa de feijão verde e uns queijos frescos…
- Óptimo. Por mim está bem. O almoço foi tardio e não tenho fome.

Inclinou ao de leve a cabeça e percebeu que estava sob vigia, descobrindo nela um olhar de pesquisa. Manteve-se inalterável. Pelo canto do olho percebeu que a avaliação se seguiu por momentos longos, mas intentou que ela não notasse o reconhecimento. Estremeceu. Já não o olhara com amor, de relance pressentira o ápice que determina a reviravolta dos afectos. Da mesma forma que há instantes que despoletam o gosto também os há que determinam a indiferença.

Naquele caso, o trejeito revelava mais assombro do que indiferença. Ao fim de dez anos juntos, com um filho, uma vida em comum e tantas cumplicidades partilhadas e agora aquele olhar, aquele mesmo olhar, determinava futuros abertos e inquietantes. O comodismo de se gostar de alguém, o conforto de uma vida com tarefas definidas, as contas pagas, as poupanças reforma e um simples gesto assumia o fim do caminho. Ou apenas um pressentimento.

- Porque olhas assim para mim?
- Eu? – tentou dissimular – já olhei tantas vezes para ti…
- Não como desta vez. Viste-me como eu sou, não foi?
- Que queres tu dizer, nunca te tinha visto como és? – a voz espelhava convicção.
- Não sei. Tenho a certeza que o amor é um refúgio seguro para as nossas inseguranças. O amor liberta-nos daquilo que realmente somos para nos transformar no ser luminoso que é objecto do gosto. Ora, deve haver um momento que se olha bem lá para o fundo do outro e se encontra o verdadeiro, aquele que não é amenizado pelo gostar. Esse outro, estranho e distante que existia antes de se amar…
- Mas eu julgava que o amor permite-nos olhar o outro como ele realmente é – e na voz reconheceu algum cinismo.
- Sim, claro, permite a convivência, a comunidade de afectos que consente a irmandade de destinos. Mas lá bem no fundo continuamos a afirmar o outro pelo nosso olhar de ternura, o que é bem diferente.
- E tu continuas a olhar-me dessa maneira? – perguntou, matreira, com um sorriso mais tímido.
- Eu sim, não te consigo olhar de outra forma. Ainda. Nem sei se te olharei de outra forma algum dia. Do teu olhar já tenho as minhas dúvidas.
- Mas mesmo que identificasses hoje esse olhar, julgas que seria definitivo?

Compreendeu que ela assumia o risco e que tinha razão quando percebera que algo mudara entre eles para sempre. A pergunta dela revelava o momento da viragem. O amor é uma corrente que por muitos encontrões que leve não parte, balanceia ao sabor das relações. Quando parte não se reconstrói. Poderá manter-se a cumplicidade e o desejo ou, simplesmente, a necessidade de se viver junto, mas nunca mais será permitida a reconstrução. E naqueles segundos de espera, enquanto ela esperava a resposta concentrando a atenção na televisão, sem qualquer explicação, levantou-se, entrou no quarto do filho e às escuras, sentado no chão e encostado à cama, escutou o respirar sereno do pequenino. As lágrimas caiam-lhe na face como de uma torneira estragada. Pensou na comodidade do amor, da tranquilidade que dá à vida, da ausência de passos em direcção a estranhos na busca de encontros. Teve demasiadas caminhadas na juventude para sentir qualquer nostalgia…

Depois de lavar a cara para disfarçar o choro regressou à sala. Ela continuava no mesmo sítio do sofá, o lugar da esquerda onde um candeeiro preto pendia sobre a sua cabeça. Ao entrar ela não olhou para ele e só um tempo depois comentou:

- Não me respondeste…
- Estive a pensar e julgo que sim. Há olhares que recusam o passado e são pontes para algo novo. Depois de me fitares com uma análise fria e identificares a minha realidade nunca mais poderás olhar-me como dantes. E é muito doloroso pensar nisso. A fealdade natural do homem é condição impeditiva do amor; só podemos amar quando há uma capa que nos envolve na sua bondade.
- Eu julgo que estás mais com uma das tuas neuroses, com aquela clarividência que julgas possuir e que tenho questionado desde sempre. Olhei para ti talvez de forma mais crua, talvez cruel, mas, pelo contrário, se nós olharmos para o outro de uma forma mais fria poderá ajudar-nos a solidificar a relação. Porque é que tu achas que um olhar honesto é sempre um sinal de ruptura?
- Não julgo que seja sinal de ruptura mas entediamento. Se não houver uma máscara seja qual for, uma máscara de ternura que nos dá o outro com uma luz que retira a parte negra de nós então é impossível continuar o amor. Esse olhar não lhe repugna as debilidades ou as fraquezas; repugna-lhe a matéria-prima de que somos feitos…

Percebeu que ela não queria continuar a conversa. Possivelmente, o olhar que hoje lhe descobrira não teria sido o primeiro. Há quanto tempo ela olhava assim para ele? Estremeceu e sentiu-se feio, aquela fealdade que sempre encontrou nele e que agora era partilhada também por ela. Questionou-se se o prazer de estar com alguém não significará a ignorância do outro em si mesmo, e o conhecimento apenas de uma aparência dada pela estrutura do gostar…Senão, porque é que haveria paixões desenfreadas entre seres tão díspares quanto à beleza dos corpos, como a qualidades intelectuais…A história infantil da bela e do monstro ficaria assim justificada: enquanto o amor dura o outro é belo mesmo sendo um monstro para todos os outros. O problema é que regressará o monstro mais cedo ou mais tarde. O conto termina no casamento e não dá os capítulos seguintes.

Já estava há muito na cama, quando ela se deitou a seu lado. Aquele perfume, um odor que sempre o aconchegara e sentiu uma vontade louca de abraçar e pedir-lhe para esquecer a conversa. Ela virou-lhe as costas, em posição fetal, em silêncio… Não sabia quanto tempo depois, sem qualquer introdução, disse com uma voz quebrada
- Tens razão, não posso continuar assim, tenho de ser honesta contigo, devo-te isso. Já não sinto amor por ti, perdi-o não me perguntes onde porque eu não sei. Tenho muita pena e ultimamente tenho sofrido muito com isso. Foi como se de um momento para o outro tivesses sido arrancado de mim e ficasses apenas ao meu lado. Sinto-me vazia depois de te perder, um despojamento tão grande que sinto os ecos constantes de tudo à minha volta.
- Tens alguém? – de rompante, interrompeu-a.
- Não, não tenho. Neste momento não tenho ninguém, a não ser o pequenino.
- Não é isso. Alguém que tu olhes da forma que tu me olhavas…

Houve um silêncio, um momento tão cruelmente longo que parecia que lhe esfaqueava o peito. E ouviu uns soluços distantes, que no escuro pareciam vir das paredes, cheias de almas penadas. Não precisava da resposta dela, bastavam-lhe os sinais que interrompiam a noite. Não queria saber qualquer pormenor, era demasiado orgulhoso para lhe pedir mais explicações.

Só muito tempo depois a questionou: “ quando é que contavas dizer-me?”

Do outro lado da cama não houve qualquer resposta, os ecos dos soluços iam ficando mais ténues e deram lugar a um respirar profundo. Pressentiu que a revelação lhe permitira, finalmente, o repouso. A ele, pelo contrário, a descoberta colocara-lhe um sino de bronze na cabeça, fonte de um ruído ensurdecedor. Levantou-se, pé ante pé, recostou-se no sofá da sala. Debatiam-se soluções e condenações, perseguição de amantes, consequências dramáticas e punições exemplares. Separações pérfidas, jogar o filho na fogueira dos ciúmes, represálias económicas e toda a noite foi um jogar do futuro no tabuleiro das emoções violentas.

Quando o dia surgiu envolviam-no um cansaço brutal e uma violenta dor de cabeça. Ao entrar na cozinha, de robe, ela baixou os olhos e disse-lhe “desculpa” como se transportasse as culpas do mundo mas ele não respondeu nem olhou para ela. Tomou banho, vestiu-se rapidamente, deu um beijo ao pequenino que ainda dormia e ao sair, sem a olhar, num tom de voz tão autoritário como violento: “resolve a situação o mais rápido possível. Se fosse hoje, melhor”. E saiu.

Na rua, o ar frio adensava a violência que o atingira como se estivesse numa camisa-de-forças. Há situações onde o dramatismo do universo parece pender sobre a cabeça de um único indivíduo, aquele que vai ser crucificado em favor da ordem cósmica. Não via qualquer saída, não identificava nada de positivo que lhe pudesse amenizar o mal. Um mal físico, tão denso como se lhe pudesse tocar. Com alguma culpa pensou no filho que a esta hora ainda dormia. Talvez fosse ele a sua redenção.

Em vez de entrar na empresa, telefonou para o director de serviços justificando com problemas de saúde a ausência ao trabalho. Como bom funcionário que era, do outro lado recebeu uma palavra de compreensão e apoio.

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