quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

O Rio Castanho


As férias em casa dos meus avós não eram para brincadeiras. Levantava-me muito antes do sol nascer e, em ritual diário, caminhava para o Rio Castanho com o frio a bater nas pernas nuas. Era uma pequena quinta, um lugar mágico onde no meio de carvalhos e paredes cheias de silvas, como por milagre, crescia tudo o que era necessário para a sobrevivência da família. Os tons amarelos e dourados de um Verão já longo, que ocupavam em grande medida o cenário de todo o vale, eram ofuscados por aquele oásis de vida, diverso e multifacetado, de um verde tão vivo como só a água e o carinho podem construir.

Depois da ordenha e do pequeno almoço soltávamos a burra e as vacas da loja e se iam soltas encontravam de imediato a direcção certa. Se levavam o carro atrelado o meu avô encarregava-me de lhes manter o ritmo até ao destino. Eu ia à frente todo empertigado com uma vara comprida por cima do ombro. A honra pela tarefa era superior a qualquer outra que me lembre em toda a minha vida e julgava um feito as vacas enfileirarem nos caminhos estreitos seguindo escrupulosamente ordens minhas. Mas em terrenos mais agrestes o avô completava as manobras com gestos e ordens mas sem retocar minimamente na minha autoridade.

Durante a manhã, os regos escoavam a água das presas para regar os feijões, as alfaces e o milho e mais ao cimo a burra com olhos vendados dava voltas à nora até esvaziar o poço. Ao meio-dia, debaixo de carvalhos enormes, comíamos um almoço composto invariavelmente de sopa de couves, peixinhos da horta, pão espanhol, queijo de vaca feito pela avó e acompanhado de um vinho que saía de esguicho pela almotolia espanhola. Fruta havia nas árvores, umas maças grandes e ácidas que deixavam a boca com um sabor áspero a terra e uns abrunhos pequenos e de cor verde mas de uma doçura incompreensível. Durante a tarde, cortavam-se canas de milho, colhiam-se vagens de feijão e recolhia-se lenha para a lareira. Havia sempre muito para fazer, mas a um ritmo pausado, com as sobras a estenderem-se para o dia seguinte.

Ao regressar-se à noitinha, enquanto a avó fazia a sopa nas panelas de ferro, o avô ordenhava as vacas e tratava delas. Depois subia as escadas que pendiam sobre o curral e sentado em cadeiras de verga deixava-se embalar pelo silêncio de um céu entupido de estrelas. Eu chegava-me perto e sem pedinchar ele contava-me histórias aprendidas em livros, das suas aventuras em Macau e com personagens misteriosas da aldeia. Ouvia-o assombrado e com os olhos pousados no caminho de Santiago e tantos outros carreiros que conseguia vislumbrar no embrenhado dos astros. Histórias que se prolongavam pelo jantar, apesar dos protestos da avó, envolvidas em sombras dos seus gestos nas paredes brancas da cozinha, ao mesmo tempo que o lume, em brincadeiras, iluminava ou deixava na penumbra o cenário. Depois acossado pelo sono, nos lençóis de linho, tentava guardar as aventuras como quem guarda um tesouro.

Já era adulto quando os avós ficaram tão velhos que as andanças para o Rio Castanho deixaram de fazer sentido. As vacas foram vendidas a estranhos, deram-se os arreios da burra, as lojas desocuparam-se de batatas e castanhas e o curral limpo de estrume e de galinhas poedeiras. As férias regressavam à medida cíclica do tempo e o retorno fazia-se em conjunto com os pais, mas o mês caminhava vagarosamente naquele balcão cheio de sombra. Ao lado do avô continuei a ouvir contos que brotavam da sua boca como de um poço sem fundo, alguns ainda hoje tão vivos como se os recordasse no meio dos lençóis de linho. Depois acudiam as festas da aldeia, as despedidas e o seu olhar triste a afiançar que era a última vez que me via. E uma vez teve razão, não resistiu à tristeza de não olhar mais o Rio Castanho e foi embora, deixando um vazio que nunca consegui preencher.

Não havia histórias e sem elas e sem a sombra das tardes quebraram-se elos e desejos de voltar. Após muitos anos, ontem regressei. Com a minha filha. Mostrei-lhe o recanto onde o avô me contava histórias, mas ela de tão pequenina não percebeu como esse lugar poderia ser tão especial. Prometi-lhe que ao chegar o tempo de entender o valor infinito do encontro com o maravilhoso e íntimo levá-la-ia outra vez àquela enseada da alma que se tornou um recanto da vida (ou vice-versa), o lugar mais emocionante que conheci e onde ganhei a certeza de que o mais importante é a cumplicidade ganha pela vontade de aprender e se emocionar.

Á noite quando todos já dormiam levantei-me ao de leve, coloquei sobre os ombros uma manta de lã, sentei-me no mesmo degrau e pesquisei de novo o céu tentando encontrar lá os marcos que me guiaram nas minhas pesquisas. Apesar de um céu menos límpido, tive a certeza que as estradas de ontem se mantêm inalteradas e que as poderemos retomar caso seja essa a vontade. Será com a minha filha ou filhos dela que um dia ali regressarei e viajaremos juntos por aqueles socalcos de candeias que nos levarão tão longe como o meu avô me levou.

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