sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

O Crime de Aldeia do Bispo

Há dias assim. Uns tão vagos que não servem para nada, outros tão intensos que em plena noite, colocados em balanças policiais, seriam multados por excesso de acontecimentos. Foi o caso de um dia de Junho, mês mole, sem Verão pelo sol turvo como vinho a martelo, mas sem Primavera devido a um sopro quente que arrasava as noites.
Nas comemorações solenes de uma data significativa, ao nascer da noite, após missa e cumprimentos entre todos os presentes – a maioria de saudades devido a afastamentos de um ano ou até mais, - seguiu-se um jantar em mesas brancas e cadeiras forradas de laços azuis celestes. Era um cenário dramático com personagens cheias de pedigree e tudo regado com conversas de circunstância que faziam ponte para repetições de pratos gastronómicos, todos muito bem trabalhados e em quantidade suficiente para um regimento de infantaria repleto de sargentos brutos e difíceis de contentar. Os temas de conversas eram variados, desde terramotos – durante a manhã tremera a terra de forma sub-reptícia e os mais argutos aperceberam-se do clamor do fundo – amizades perdidas em grutas sem regressos, a mafia do futebol e de muitos outros assuntos com menor potencialidade, como touradas de praças e de géneros mais provincianos, vindos à baila pela feira taurina que decorria. Com assuntos tão esotéricos e a maioria fora da minha experiência pessoal, ainda não tinha feito qualquer comentário e, para não julgarem que me armava em distante, comentei a experiência de ter visto um touro de morte numa Aldeia do Bispo que ninguém conhecia, em lide analisada de cima, no meio de árvores, numa autêntica selva de chopos e plátanos centenários que rodeavam o redondel e onde muitos outros assistentes se empinavam em carros de bois. Os aristocratas da mesa olharam-me com frestas na testa fantasiando lugares com terriolas assim, talvez no fim do mundo, sabe-se lá. E comentei que não era o único empoleirado nas árvores, parecíamos espantalhos coloridos e ríamo-nos muito uns para os outros, de árvore para árvore ou de galho para galho conforme as distâncias e no meio da sorte o azar do touro que levou uma estocada tão imperfeita que não o deitou abaixo e via-se a ponta da espada a surgir num dos lados da barriga e quanto mais o toureiro repetia golpes mais o touro se animava na sua panaceia e parecia um sonho e todos nós alcandorados berrávamos “assassino” e o espanhol importava-se tanto com os insultos como as nuvens do céu que passavam devagar como se fossem surdas. E se o touro morreu após desistir da luta eu desisti nesse dia de gostar de olhar bichos furiosos contra capas, cavalos, furcões, homens e pneus, tudo usado nas lides, tanto em arenas pintadas de branco em círculos pequenos ou grandes ou em arenas mais rudimentares cercadas por carros de bois e por árvores centenárias com galhos grossos.

No fim do meu testemunho, todos os companheiros da mesa fitavam-me como se fosse um fantasma, uns de lágrimas nos olhos com pena do animal, outros indiferentes à sorte do touro mas agoniados pelo atraso civilizacional de terras do fim do mundo, outros com manguitos nos olhos, pois são toxicodependentes das touradas e vão a Madrid de propósito para contemplar os touros a morrer muito mais depressa do que o da minha experiência. Talvez por isso houve um momento de silêncio tão forte como uma sirene dos bombeiros e apenas se ouviam as colheres a bater nos pratos e às vezes nos dentes e senti vergonha por ter destruído a harmonia de um jantar que se queria liberto de qualquer pensamento.

E quando já o ocaso do jantar comemorativo se aproximava, anunciado pela postura esguia das altas e médias entidades, um colega de mesa, reconhecido leiloeiro pela Internet de santos ignorados como S. Martinho de Porres e S. Olegário, começou a ficar tão branco que, em comparação, as folhas A4 pareciam papel de embrulho e enquanto alguns julgaram ser apenas resultado da magnanimidade de um dia de festa, pela variedade astronómica de carnes, receitas antigas e modernas, peixe de tantas espécies que nos perdíamos na sua conta, além de castanhas fritas em bacon, feijoada à moda de cá, crepes de marisco à moda francesa, peru assado no forno, morangos e frutas de época e sobremesas de pasmar, desde pudins, gelados encandescentes e bolos de todas as cores, e outros julgaram ser da emoção da história de um touro que tardava em morrer e outros ainda pensaram que talvez fosse uma razão mais grave e levaram-no em ombros – tal como aos toureiros que fazem faenas de grande qualidade e não como o espanhol de Aldeia do Bispo – até a um quarto recatado e fora das vistas das entidades médias, altas e dos outros. Um médico chegou rápido que parecia residente e depois de o ter acordado primeiro com chapadas leves na cara e em seguida com encontrões furiosos agarrado à aba do casaco, perguntou-lhe se sabia o nome e onde estava e julguei que o médico tinha bebido demais mas, segundo outra testemunha da reanimação mais competente do que eu, o médico tinha toda a razão em lhe perguntar coisas tão evidentes pois se ele as ignorasse o caso seria mais sério do que uma digestão difícil. Ainda foi levado ao hospital onde fez mais exames do que um aluno do secundário, mas já ninguém o questionou se tinha enlouquecido no jantar comemorativo.

E quando cheguei a casa senti-me tão fatigado como o touro da arena antes de expirar e com tanta pena dele como de mim que também passeava por arenas de gente branca, em círculos grandes e outros nem por isso, até ser oferecido em faenas de capote e bandarilhas. Depois, pacientemente, aguardei a estocada final.

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