sexta-feira, 7 de março de 2008

Os Olhos Transparentes


- Olha para mim! – disse, fixando-o.
- Não. Tenho medo dos teus olhos. - Ele esboçou um sorriso aberto.
- Mas como, se neles há só ternura?… afagou-lhe o braço ao de leve.
- Ternura e questionamento… acrescentou ele.
- Mas tens medo de quê? da intimidade?
- Tenho medo da verdade – ele franziu a testa em sinal de resignação…
- De qual verdade? Da tua ou da minha?
- De ambas. O que se esconde no interior da alma transparece no olhar e ficamos indefesos à sua descoberta.
- Mas tens segredos assim tão terríveis?
- Todos temos segredos. Na maioria inofensivos, mas fazem parte intrínseca de nós. Se os partilhamos esvaziamo-nos. E tu tens um olhar de detective… e deu uma gargalhada sonora.
- Vá lá, olha para mim! - ordenou ela com voz triste. Contrafeito, fixou o olhar no dela, mas rapidamente o desviou. “- Não gosto de me sentir prisioneiro. É castrador”. A voz mostrava alguma irritação.
- Nada tens a temer. Os olhos só poderão mostrar o passado. E o passado não implica necessariamente o presente.
- O presente também. São uma espécie de periscópio do coração – ripostou ele com um ar sério - A timidez, a raiva da incompreensão, a ternura, o tédio, o desespero.....
- Deixa-me olhar! – disse com voz meiga, cortando a enumeração dos achados, como se pretendesse mudar de assunto.
- Está bem! Pronto, olha à vontade, mas não digas que não te avisei! - Exclamou com voz formal.
- O castanho, a ansiedade, o sonho, a ingenuidade. Em voz radiofónica contabilizava aspectos de um cenário. “ E o medo, como se o futuro fosse uma camisa de forças. É de mim que tens medo?”
- Não, é de mim. Sempre tive. De falhar! - E afastou o rosto.
- Em quê?
- Em tudo.
- Mas não parece.
- Disfarço muito bem!…
- Mas já alguém te olhou sem quaisquer barreiras? - Questionou com a face inquieta.
- Não, até agora. Se algum dia tiver um filho, julgo que não lhe vou estabelecer quaisquer limites. Aliás, farei promessas de que sempre lhe mostrarei sem peias o olhar. Sabes porquê? Porque no meu futuro haverá sempre o dele sem mágoa. Dos outros, mesmo os mais íntimos e familiares, nunca terei a certeza. E fez uma pausa. Parecia comovido. “Mas libertemo-nos do olhar”, protestou ele. “Porque não viajamos pelo corpo todo”. E um sorriso malandro iluminou-lhe a face. Ela empurrou-o docemente, resmungando, “Os homens são todos iguais. Para resolverem uma situação delicada, nada melhor do que reenviar a atenção para o sexo. E julgo que as mulheres caem facilmente neste logro. Fica tanto por dizer por se calar a palavra com um beijo! E não há diálogo possível quando o sexo separa as águas e faz perder a atenção nos corpos. Depois, fuma-se um cigarro e depressa se encontra no silêncio a errância do tempo”.

Olhou-a como surpreendido pela perspicácia. “Está bem, vamos ao diálogo!” e riu-se. Sentou-se no chão da sala, iluminada por um raio de sol que conseguia ultrapassar as cortinas brancas. “O que eu quero dizer é que grande parte do que se pensa não se afirma. E o que se afirma não esgota tudo o que se pensa. ”
- Mas talvez seja melhor assim. – ele deitou-se no soalho com o cotovelo no chão apoiando a cabeça - As variações de humor, de esperança, de expectativas, altos e baixos numa harmonia conquistada são normais numa relação afectiva. Qualquer relação onde tudo se dissesse não encontraria o caminho. Se o desespero, as tristezas, a melancolia, se transformassem em palavras - como se a vida a dois fosse uma contínua sessão de terapia de grupo - a relação teria os dias marcados. Nem que fosse pelo amontoado de culpas que cada um colocaria no outro.
- Nisso concordo! – exclamou ela. Mas as mulheres são mais subtis e preferem revelar por sintomas do que falar dos problemas. São mais honestas nos sinais, reproduzem melhor as crises. E mais sinceras nas reviravoltas. Os homens são cobardes, por fraqueza. Resistem mais a uma boa briga e disfarçam muito melhor as conjunturas perigosas. Têm demasiado medo das rupturas. O grande problema deles é o pavor da solidão. Só um espírito feminino não tem receio e por isso é mais livre.
- Acho que tens razão. – Ele espreguiçou-se no soalho com os olhos fixos no tecto. Ficou em silêncio, parecia que procurava sentido para si mesmo.
- Sabes porquê? Interrompeu-lhe o pensamento. - A força, a independência são tudo imagens falsas dos homens. A sua fraqueza perante a dor e a doença, por exemplo, é confrangedora, a sua dependência afectiva até incomoda.

(E depois de uma pausa, ela baixou a voz e disse como se tivesse arrependido do que afirmara: “mas eu também tenho medo da solidão.”)

- Nesse sentido é natural que tenhas. Falavas em obsessão, não em simples receio. E nisso, tens razão, os homens são muito mais neuróticos. São capazes de passar a vida inteira a encontrar nas fugas, enganos e desculpas, razões para não terminarem relações doentes. É como se o temor de ficarem sós sustentasse uma solidão para toda a vida. Conheço vários casos…
- Mas também há mulheres assim. – Ela interrompeu-o mais uma vez. - O temor é morrer sós e muitas vezes esquecemo-nos que antes da morte há uma vida por viver. Mas o destino das relações é cristalizarem e morrerem. As que resistem são uma minoria e sabe-se lá quais as estratégias utilizadas para esse fim. Muitas vezes dar-lhe um golpe de misericórdia não só é saudável como um enorme contributo à vida de todos os intervenientes.
- A questão é conseguir aguentar depois o vazio, o peso de um futuro aberto, uma linha frágil de equilíbrio que aguenta o normal funcionamento da vida… Exclamou ele em tom de confidência.

Ela deitou-se ao seu lado, imitando-o, concentrando o olhar nos pontos negros do tecto. De vez em quando olhavam um para o outro e sorriam, como se os segredos mútuos deixassem de ser um peso e uma ameaça e se transformassem em simples conteúdos inofensivos, peças inorgânicas, como sucata sem valor.

A calma daquele fim de tarde poderia cortar-se com uma faca de lâminas. O ronronar das palavras foi-se atenuando até o silêncio se fazer dono de tudo. Talvez não haja razão para buscarmos o futuro em lado algum. Talvez o futuro seja um presente envenenado por desejos insanáveis. Talvez baste tratarmos do presente como um bem tão raro que só existe quando tomamos consciência da sua precariedade. Mesmo quando se afasta da dimensão do desejo e se aproxima velozmente do abismo, mesmo nessa altura, o desespero encontrará o caminho da sua redenção. Mas o olhar, por momentos, torna-se tão vazio que apenas se descobrirá nele um peso morto com vontade de vida.

3 comentários:

Anónimo disse...

brilhante. uma descriçao fomidavel de um momento tao leve :D


fazem-me lembrar a Ines Pedrosa estas palavras, ha-de folhear qualquer coisinha dela stor :D aconselho "Fazes me Falta".

esperamos por mais! ^^

*

Unknown disse...

Tens uma fina argúcia e uma rara sensibilidade para retratar os pequenos universos de todos nós.

És muito bom nisto para reconforto dos que te lêem.

Obrigada
Continua a fazer o que fazes, continuando a seduzir-nos com os teus contos do quotidiano

Unknown disse...

Tens uma fina argúcia e uma rara sensibilidade para retratar os pequenos universos de todos nós.

És muito bom nisto para reconforto dos que te lêem.

Obrigada
Continua a fazer o que fazes, continuando a seduzir-nos com os teus contos do quotidiano