sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

O Faroleiro

Embrulhou-se no seu sorriso, com o braço a envolver-lhe o pescoço. Sentia uma segurança estranha, inédita, que não lhe permitia imaginar golpes no futuro. Há poucos momentos na vida em que nos sentimos indestrutíveis, capazes de fazer frente a tudo o que vier. Tal como este, pensou. Ao decidir-se prometera não chorar por aquilo que perdia e tudo fazer pelo sucesso do projecto, não só por uma questão de princípio como por acreditar que a vida ao transformar as opções em caminhos possíveis – conforme as potencialidades – permite alterações para algo melhor e mais perfeito.

Sempre esperou o pior por ser mais fácil aconchegar-se ao futuro. Se o resultado fosse idêntico às expectativas controlavam-se as consequências, perante os sucessos retraíam-se euforias. Nunca fora ambiciosa nos gostos e sempre se comportara como privilegiada perante um desenrolar normal dos acontecimentos. Em vez de lutar pela excelência julgou-se apenas com direito a resultados proporcionais ao trabalho e às qualificações. E quando, por sorte, lhe surgiram outras possibilidades agarrou-as com as mãos cheias para não as desperdiçar, mas sempre com a ansiedade de tudo fazer para que a olhassem como merecedora de tais créditos e nunca fruto de favores ou contingências.

O mesmo acontecera com os afectos. Era honesto reconhecer que sentira ao longo da vida relações fortes com os membros da família, aceites como um dado adquirido e julgadas indestrutíveis e sem mácula. Mas viveu-as de forma latente, sem paixão, assumidas sem as questionar e sem ter de as reforçar por sinais exteriores. Dos pais, pela rigidez de uma educação desprendida de proximidades, não poderia esperar meiguices ou afagos e os irmãos tinham mais que fazer do que lidar com carências da mana mais nova. Essa frieza pela ausência do toque e de intimidade percorreu-lhe a alma durante a adolescência e seguiu-a vida adiante como correntes aos pés dos encarcerados. Espontaneamente se deixava enredar em relações sem compromissos e buscava nos outros mais qualidades de relacionamento do que capacidades ou comprometimentos.

“Sabes, sempre me pareceu que era uma espécie de pinto sem conforto das asas da mãe. Um patinho feio. Não sei explicar, mas garanto-te que me senti muitas vezes órfã e abandonada no mundo, apesar de pertencer a uma família funcional, cujos objectivos de todos os constituintes eram sempre em prol dessa entidade abstracta. Daí que, se nunca pus em dúvida esse funcionamento, tive sérias dúvidas, até muito tarde, quanto à força do afecto que me ligava a todos eles. Por isso, apenas queria estar com alguém que me tocasse, que se encostasse a mim mais do que me amasse. Precisava de aconchego mais do que certeza do amor. Isso já eu tivera a minha conta demasiado tempo” E sorriu com um trejeito triste. Ele abraçou-a com força mas nada disse.

“As pessoas como eu tendem a vaguear, sabes? Os seus compromissos nunca prescrevem, são pagos antes de o prazo terminar. A atenção constante perante os estados de espírito dos outros, uma vigilância canina clarificadora que me impede de ser fardo pesado a alguém. O “estar a mais” é algo absolutamente aterrador para uma pessoa como eu que passou a vida a tentar encontrar afinidades físicas. Mais do que espirituais. É injusto dizer-te mas é o que eu sinto. E se não, repara, o que sabes tu de mim? Pouco, mas conheces muito bem os meus gestos, a minha pose. Os elementos mais exteriores não os manejo, não os retraio como se o mundo do corpo suportasse sobre eles toda a dor da alma.”

“Mas onde está a verdade e qual verdade? Será que os medos que nos reescrevem a vida não farão parte da nossa própria verdade? O que fazer senão tentar não os engordar ainda mais? Ou não seremos também as vulnerabilidades que nos obrigam a fazer um determinado percurso? Deitarem-nos à cara que nos escondemos em peripécias e manobras de diversão é em si mesmo um embuste. Somos essencialmente o que nos incomoda, o que restringe movimentos mas garante de alguma tranquilidade quando convenientemente ajustado e controlado. Não vale a pena chorar por aquilo que poderíamos ter sido ou o que ganharíamos caso esse mundo interior, magoado e sofrido, tivesse sido atenuado ou resolvido. O problema é que cada um de nós tenta sobreviver e encontrar o caminho mais próximo da nossa realidade. Ou não achas?”

Do outro lado o silêncio. Ambos com a cabeça ligeiramente elevada numa almofada e os olhos presos no tecto como investigadores num laboratório, como se respostas cifradas se encontrassem na massa de cimento imperfeita que o cobria. Ele nada tinha a declarar. Gostava dela o suficiente para lhe admitir a fragilidade de não o poder amar. Era a primeira mulher que lhe confidenciava que precisava mais dele pela meiguice do que por ele mesmo, mas julgava o facto razão suficiente para se viver com alguém.

Ao seu lado uma respiração mais funda testemunhava adormecimento, mas ela despertara. Na rua o vento corria mais célere que o camião do lixo e os sacos abandonados faziam movimentos ruidosos. Não ambicionava mudanças radicais na sua vida. Queria manter lugares secretos, espaços indivisíveis. Preferia não desembaraçar-se totalmente de si mesmo, cultivaria esse lado misterioso que apenas a ela interessava. Ele, naturalmente, teria o seu e ainda bem… Pela janela olhava reflexos do mar, mais claros quando ondas maiores invadiam a costa. A vida também é um mar revolto, outras vezes calmo como o mar de azeite ao entardecer. O segredo é agir como o faroleiro. Haja ou não tempestade mantém a lua acesa e acredita que com mais ou menos dificuldade os barcos chegarão a bom porto.

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