Acabou mesmo agora de entrar. Fiz de conta que não ouvi a chave a rodar na fechadura e permaneci imóvel na cozinha. Chamou o meu nome e mantive-me expectante e só. Olhei lá para fora e reconheci perfeitamente pormenores de um horizonte gasto por tanto uso, a serra esventrada por telhados vermelhos, mais perto a escola dos miúdos barulhentos, além a desordem de casas, ruas e chãos secos. As coisas não andam bem cá em casa. Não porque algum de nós tenha qualquer culpa. Andam mal porque a vida nos infesta a morada de enfermidades e falta o fármaco para nos tornarmos imunes ao caos. Andava tudo bem até há pouco tempo, se querem saber. Tínhamos tantos projectos como um gabinete de arquitectura e tudo caminhava como se o tempo fosse um carril e a família um vagão de comboio com paragens premeditadas. Sabíamos o que queríamos fazer daqui a três, quatro ou mais anos, os destinos das viagens traçados com a rigidez de uma equação matemática, os filhos loirinhos já com os nomes e tudo. Agora não, perdemos o futuro como quem perde as chaves de casa e teremos de encontrar uma nova fechadura que nos dê acesso a uma nova realidade.
Não se pense que tenho qualquer responsabilidade no assunto. Aliás, tentei sempre desdramatizar a situação. Reafirmo diariamente a nossa capacidade para construirmos um futuro liberto desta náusea que nos vai consumindo, assegurando que reencontraremos o caminho. Mas ele faz de conta que não ouve. A esperança só tem sentido quando já temos na mão parte da solução. Até agora não temos coisa alguma. E devido à espera em frente da televisão e com as mãos alisando os cabelos, envelheceu tanto em poucos meses que parece que ficou para trás. Estupidamente, recordei a história dos gémeos de Einstein. O que ficava na estação do comboio envelhecia, ao contrário daquele que se metia na geringonça e, à velocidade da luz, dava reviravoltas ao universo. Ele deixou-se ficar na estação. Sem ter culpa, claro.
Os problemas começaram há cerca de seis meses, quando ficou desempregado. Nos primeiros dias, após o choque, decorreu um período envolto numa jovialidade quase constrangedora. Parecia que andávamos em festa, tal era a quebra do ritmo, a leveza dos horários e o tempo que sobejava para tudo, para nós. Não sei se era uma estratégia inconsciente para nos esquecermos do infortúnio, se julgámos mesmo que era o início de um tempo novo liberto de qualquer plano que nos limitasse os movimentos e os sonhos. Mas a sucessão dos dias rapidamente mostrou que esse clima engalanado pelo entusiasmo tinha sido uma ilusão. E julgo que nenhuma família está preparada para se reequilibrar quando um dos membros se encontra no fio da navalha. Não há remédio para uma angústia que se vai amontoando como o lixo nos caixotes. A certa altura os sacos já são colocados no exterior porque já não cabem lá dentro.
O som do meu nome vinha agora do corredor. Sim, estou na cozinha, respondi. E ao entrar, desculpa, não te ouvi, menti. Entrou, a barba por fazer, mais cabelos brancos que ontem, pelo menos pareceu-me. Toca-me no braço como um pequeno afago e senta-se à minha frente com as mãos na testa. Mantenho-me imóvel e muda. Parece que chora ou pelo menos emite uns sons misteriosos. A certa altura, retira as mãos do rosto, fixa-me nos olhos durante uns segundos como procurando palavras, ou sentidos, ou simplesmente compreensão: - ando tão perdido que mesmo ao chegar a casa, algo no meu íntimo impele-me para que continue a andar, sempre em frente, até encontrar o meu lugar.
3 comentários:
Muito bom, como sempre!
A questão do narrador feminino está muito bem tratada.
O teu olhar sobre estes microuniversos traduz o que há de melhor na observação rica em sensibilidade e inteligência.
Beijinhos e bom fds
Com a crise instalada, temos um retrato de tantas realidades familiares assoladas por um problema chamado desemprego, associado à incapacidade de arranjar novo emprego cujo rendimento seja capaz de suportar o orçamento familiar. Depois surgem palavras/expressões como náuseas,infortúnio, angústia,
fio da navalha, perca de auto-estima...
Trata-se de situações complicadas para quem as vive como para quem lida profissionalemte com elas...
av
Perder os carris da vida
o meu pai sente-se pouco à vontade com blogs e recusa-se a mexer naquele. Portanto, acho mais viável mandares-lhe um e-mail, se quiseres. O mail está por cima, perto do título.
Beijinho, bom dia :-)
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