sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Sobreviventes

Todos nós, de uma maneira ou de outra, somos sobreviventes. Fui náufrago durante várias horas no mar alto e salvo in extremis por um barco que passava por puro acaso. Por razões de amnésia insanável, não disponho de todos os pormenores que expliquem cabalmente a estranheza de me encontrar em pleno mar, com um colete de salvação e próximo da hipotermia. Mesmo após o salvamento, grande parte de mim ficou por lá a boiar, com o medo estampado no rosto e a angústia perante um silêncio tão denso que se podia cortar em pedaços. Depois da longa permanência no hospital, sem reencontrar a memória, concluí que o passado era um dom desprezável pelo trabalho que daria em recuperá-lo. O esforço despendido em o reconstruir seria mais proveitoso se o utilizasse para reerguer-me. No fim, por tudo o que passei e pelo que desconheço, analiso a vida como um sucedâneo de histórias estranhas que nos encaminham para desfechos que nos iludem face às suas próprias razões.

Sobrevivemos apenas. Não tenho da vida a noção de um caminho estreito com pequenas margens para o erro. É mais um espaço indefinido cujo traçado que nós desenhamos lembra os labirintos gregos que necessitavam de fios de Ariadna para encontrarmos o caminho de volta. Vamos em frente sem saber para onde e quando olhamos para trás não encontramos dados fiáveis que nos guiem até ao início do túnel.

Gostamos de nos pensar argutos e suficientemente razoáveis para julgarmos que a nossa história individual foi gerada pelo bom senso e pela frieza do raciocínio, mas quando nos vemos envolvidos pelo tremor de uma situação limite, questionamos com sobressalto o que permitiu vivermos aquela conjuntura trágica e ridícula na sua essência. E transparece um emaranhado de decisões, de coincidências de vontades, de rasuras, de vazios, de buracos negros na linha causal. No final, resta um enigma que nos vai ocupando os dias, os anos, a vida...

Após o naufrágio, como o passado permaneceu para sempre naquele limbo com sabor a ácido, sinto a estranheza de começar tudo de novo sempre que acordo. Deixei de ter medo, porque não existe passado; deixei de me preocupar com o amanhã porque aprendi que o agora, por vezes, é um osso tão duro de roer que ninguém pode ter a certeza de o poder domar. Quem viveu como eu a expectativa do instante final e acordou muito tempo depois, sem se lembrar quem era ou de onde veio, nada lhe garante que o amanhã seja uma inevitabilidade. Talvez nem o agora seja. Talvez tudo não passe de uma fantasia de um deus maldoso e cínico.

E sinto-me, desde aí, um náufrago. Alguém que anseia ser salvo. Alguém que não tem os pés presos a nada firme. Alguém a quem basta um copo de água potável e qualquer coisa quente no estômago. Alguém a quem a felicidade é uma miragem sem qualquer sustentação. Alguém a quem a pressa não é mais do que desespero sem sentido. Alguém que reconhece a necessidade da racionalidade nas decisões e o dever de resguardar as forças para os grandes embates. Alguém que aprendeu que qualquer esforço inútil poderá significar a morte prematura.

Ás vezes acordo mergulhado em suor salgado e pressinto que continuo a ser salvo diariamente por navios fantasmas que atravessam o oceano, estranhos que me levam para cemitérios povoados de gente de bata branca que ajeitam os mortos antes de os enviar para o crematório. E depois reinicio a vida já sem medo porque o temor nasce do perigo de nos perdermos de nós e nos esquecermos do que é essencial. Já passei por essa prova e já nada tenho a perder. Como náufrago é-me indiferente onde vou. Vou em frente. Senti já o vazio debaixo dos pés, adormeci a pensar que não voltaria a olhar o céu e agora quando o observo nunca tenho a certeza se não é o mesmo sonho que fruí dentro de água até o barco me ter, literalmente, pescado. Um sonho de areia quente e dourada que me envolve o corpo, ao mesmo tempo que o sol me aconchega e me esvaece, transformando-me numa pequena nuvem melancólica que se move ao sabor do vento.

1 comentário:

gingerandclove disse...

um beijinho da outra nuvem d'essas (dessas?):)