terça-feira, 23 de setembro de 2008

O Homem-Gelo



Desde que foste embora não me lembro de sorrir. Mesmo com as patifarias do Ernesto, aquele gato manhoso que trouxeste no Natal, não consigo reproduzir o movimento ligeiro e silencioso da boca e dos olhos que represente contentamento. No entanto, apesar da estranheza da tua partida, e após um tempo impreciso de mágoa, encontro-me agora naquele estado indolor, talvez o mais próximo da ventura budista: não sofro porque nada desejo, nada procuro, nada quero. Não me sinto infeliz, sinto-me vazio. Ao saíres de casa levaste contigo aquela parte de mim que se preocupava com os outros, que se sentia enquadrado no mundo, que tinha projectos. Hoje vivo encarcerado em mim sem pretender inventar bengalas exteriores que me amparem na caminhada.

Soube que tens alguém novo na tua vida que te completa e te faz feliz. E se não me surpreende o teu novo estado de espírito, a ideia de complemento faz-me alguma confusão porque comigo sempre procuraste as semelhanças. Como és melhor em todos os domínios, aquilo que te poderia oferecer já o tinhas em abundância e eu surgia tão pouco interessante, mesmo vulgar. Mas não julgues que este bilhete é um ajuste de contas, mas um simples reparo. Ao te afastares, aquelas lágrimas não me comoveram porque percebi que lamentavas a decisão por ti e não por mim. Iria obrigar-te a alterar passos, a aconchegares-te à vida de uma forma matreira, zelo que nunca foi reivindicado na nossa vida em comum. Vivias comigo com tal segurança e naturalidade que exibires a tua realidade garantia, desde logo, o êxito e o afago. Percebo que não seja tarefa fácil moldar a tua imagem para que te julguem digna de admiração e afecto. Agora percebes que ser feliz dá um trabalhão enorme! Pela parte que me toca, pelo contrário, vivo a ressaca do esforço dispendido para encontrar o melhor de mim para te dar, o lado mais fotogénico, o mais adequado. Mas neste momento, como recuso qualquer fardo na minha relação com os outros, reproduzo apenas aquela trivialidade que me faz transparente.

Por isso, se os amigos comuns continuarem a manifestar preocupação pelo meu estado de espírito que apelidam de depressivo e aberrante, podes dizer-lhe que estou num bom momento e que volvam a sua atenção para a sua vida comezinha e medíocre. Uma inquietação que nasce, naturalmente, quando alguém é abandonado. Se for homem, transforma-se num ser ridículo, objecto de compaixão e zombaria. A mulher tem sempre fortes razões para largar o companheiro, enquanto os homens têm no seu mau carácter ou na sua fraqueza a origem dos desenlaces. Mas esta simbologia do “largar”, como quem liberta uma ave de rapina mantida em cativeiro, no meu caso é no mínimo estranho, porque eu fiquei. Estou no meu ninho. Foste tu quem saltou da escarpa em busca do vale verdejante que se estende até onde a vista alcança. Tenho a certeza que encontrarás o que procuras, com a mesma de certeza que eu nada preciso de procurar, porque tenho tudo o que preciso.

1 comentário:

Unknown disse...

Ai que lindo, que lindo!E que intranquilidade!Até arrepia!

Bjs