segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O voo nocturno

À noite é mais fácil vaguear pelo céu. Desembrulho a asa de parapente arrumada na despensa e, quando as meninas se enclausuram no sonho, salto da varanda em direcção aos cedros do cemitério, encaminho-me para norte guiado pela Ursa Maior, transponho o rio e flutuo de um lado para o outro no barlavento da serra até que o sono me traz de volta a casa. Depois, arrumo com cuidado os instrumentos de voo e, passo a passo, entro no quarto para não as acordar.

Na manhã seguinte, a mulher-a-dias recrimina as pegadas de terra fresca que saem da varanda e pintalgam toda a casa e garanto-lhe que seria impossível sair das margens do rio e entrar numa varanda do décimo andar. Mas ela não me parece convencida porque as sinaléticas são tão claras como pegadas em neve fresca e garante-me que, não existindo fantasmas, a origem das coisas e dos factos desprezíveis apenas têm como explicação a fragilidade da natureza humana que é mais falsa que a pequena brisa que antecede as tempestades tropicais. Ao olhar o mundo pelo periscópio de gente austera e sem manhas, qualquer brincadeira é apenas um empurrão da má índole que acompanha a alma enquanto vai derrapando por este mundo.

Vem isto a propósito dos sonhos. Enlouquecíamos sem eles, pois seria como se nos enterrássemos vivos neste corpo baço, lento e pesado que nos enquista à terra e nos obriga a um porte de cabeça baixa. O sonho é um mecanismo de auto-defesa que nos transporta para o alto e nos limpa da impureza da vida, seja ela o tédio ou a melancolia, seja a enfermidade e a fragilidade do corpo. Mesmo quando nos esquecemos do seu rasto, peregrinamos após o sono nos fechar os olhos a cadeado e voamos mais alto do que parapentes.

É por seu intermédio que reconhecemos lugares onde antes não tínhamos estado, revemos com saudade pessoas que não tínhamos encontrado em lado algum, sabores e odores, tudo assimilado nessas viagens espaciais, após adormecermos com vontade de esquecer a vida cheia de realidade. É nesse universo onírico que encontramos o que nos faz feliz, onde aprendemos a gostar de gostar e a gostar de gente, de comida, de sensações, aquilo que vamos reconhecendo nos pequenos momentos em que nos sentimos afortunados quando acordados.

A minha mulher-a-dias, pelo contrário, julga que a vida não passa de uma carga de trabalhos. Tudo o que não é trabalho e esforço é um presságio dos ricos a que o pobre não deve ter acesso por lhe causar mossas na mioleira. E quando eu lhe tento explicar que quando o pensamento vagueia para tão longe como um veleiro que acompanha o vento aí podemos ser tudo o que quisermos, ela responde-me que se não temos dinheiro não devemos ter vícios e tudo o que está para além das nossas capacidades não nos faz falta nenhuma. Mas eu não ligo. À noite, espero que elas se aconcheguem na indolência e, quando o silêncio é bom conselheiro, vou à despensa, desenrolo com cuidado a Frantic Plus, estico os fios e retiro os nós, espero que a asa inche com o vento norte e descolo em direcção aos cedros do cemitério. Em seguida, atravesso o rio até encontrar um vento ascendente que me sustente na encosta da montanha.

4 comentários:

Anónimo disse...

Ah what a wonderful dream..I enjoyed reading that...and yes we must have them..We are not so different the whole world over are we..

Anónimo disse...

...enquanto lia o teu texto, saí da frente do meu monitor, flutuei, e fui dar uma volta, por onde eu quis e me apeteceu. Voltei no fim da leitura. Não estava a dormir. Garanto-te. Das duas uma: ou se sonha acordado, ou a forma como escreves também faz sonhar. Eu penso que são as duas...
av

Anónimo disse...

Sonhar é o que nos resta. E levantar vôo nas asas do desejo. O pior é quando aterramos em cima das vacas na hora da ordenha e o lavrador não acha graça à coisa. E se tivermos o carro estacionado longe, então nem se fala!

Bruma das Ilhas disse...

Tal como autor refere o parapente é uma forma capaz de fazer vaguear a mente e o corpo por tudo aquilo que nos rodeia. No entanto, esqueceu-se que o mesmo poderá trazer alguns riscos e inconvenientes a quem o pratica e por sinal até já referido num dos comentários. Mas há um dos riscos, que o autor não concretiza no texto e que só não se verificou com o mesmo (é encartado na modalidade...), porque há sempre um amigo, que não sendo Anjo da Guarda, evitou que um muro de um serrado (termo usado nos Açores para definir as divisórias dos terrenos)fosse derrubado. Se assim não fosse, certamente o autor do texto teria ido vaguear umas noites não pelo céu, mas,na pior das hipóteses, pelo quarto de um hospital...e certamente a mulher-a-dias iria ter a sorte de, pelo menos durante esses dias, não ter de limpar as pegadas de terra fresca que pintalgariam a casa...
Aquele abraço...