quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Cenários de guerra


Ontem fui visitar uma velha amiga que habita uma cave numa zona periférica da cidade. Por entre caixotes do lixo e paredes repletas de grafites de todas as formas e cores, tentava encontrar sinaléticas que me encaixassem no trilho. Prédios devolutos ou em risco de derrocada, horizonte que fazia lembrar uma zona de guerra onde os combatentes entrincheirados aguardam o inimigo incauto. Estilhaços eram visíveis por todo o lado, bem como janelas fortalecidas por grades estreitas. Descubro o portão verde e enferrujado encimando três escadas de um mármore escuro. Ao entrar no átrio vazio sou envolvido por um odor forte de incenso ressequido. Desci os degraus no meio da penumbra e bati à porta, várias vezes. Quase desistia quando ouvi uma voz estremunhada a perguntar quem é e, após certificar o nome num eco que envolveu o prédio todo, um intervalo silencioso até a chave rodar por diversas vezes. Ela debruçou-se por entre a porta entreaberta e olhou-me com algum desconforto:

- Não tens vindo, acusa-me, ao mesmo tempo que me vira as costas e caminha devagar pelo corredor.
- Pois não, desculpo-me. Ultimamente, tenho andado ocupado com muitas coisas e não tenho tempo para tristezas.
- Isso não é nada bom, responde com visível enfado. Quando nos esquecemos dos problemas, não os resolvemos, apenas nos esquecemos deles.

Não era bem-vindo e teria que aturar-lhe o mau feitio, famoso desde o tempo em que nos conhecemos. Foi no fim da década de oitenta, numa Escola Secundária e, desde aí, muitas vezes me perguntei porque mantinha uma relação condenada desde o início. Era possessiva, rezingona, rígida, pouco dada a gestos descontraídos e recusava-se a fazer cedências à sociedade hedonista. Lia compulsivamente os clássicos, era uma conhecedora profunda da filosofia alemã e da literatura russa, e conservara hábitos parcos, a roupa simples e a alimentação vegetariana. Se no início lhe achava graça e lhe elogiava a cultura e o humor corrosivo, fui-me afastando à medida que o tempo se encarregava de alterar andamentos e passavam meses sem que soubéssemos um do outro. Enquanto ela permanecera fiel a si mesma, eu fui-me alterando ao sabor do vento.

- Detestas ver os teus amigos minimamente felizes, não é? Questionei-a de forma cruel.

Sem responder, entrámos na sala com poucos móveis baços e abandonados, como que colocados lá por puro acaso, e montanhas de livros que se alongavam em pirâmides como obras de uma criança irrequieta. A decoração reduzida a pequenas serigrafias desamparadas numa parede com marcas de salitre. Com um sinal seco ordenou-me que me sentasse num sofá tão desgastado que encontrei as molas. Depois, sem qualquer explicação, saiu da sala e deixou-me sozinho. A escassez de luz natural e as grades interiores nas janelas tornavam o ambiente irrespirável. Minutos passados regressou com um álbum de fotografias na mão. Sentou-se à minha frente, abriu o álbum e foi folheando com os olhos concentrados nas fotos que se pegavam umas às outras como páginas de um livro. Depois parou e apontou uma delas e com um gesto incitou-me a levantar-me para a examinar. O tom sépia e o esbatimento dificultavam a interpretação, mas reconheci-me noutras eras, com cabelos compridos e com a dor espelhada no rosto.

- Estás a reconhecer-te, não estás? Afirmou como se eu devesse retirar uma lição qualquer.
- Sim, mas qual a finalidade deste regresso ao passado? Perguntei ainda aborrecido pela recepção pouco calorosa e amigável.
- Era só para te relembrar que quando nos esquecemos quem somos, podemos apresentar uma pose mais adocicada, mas lá no fundo continuamos os mesmos. Tristes, sem futuro e sem esperança. Recordas-te? Agora julgas-te imune porque tens resposta para a maioria das questões que colocavas na tua juventude, mas as perguntas mais importantes ficaram por responder. As que amenizaram a tua vida são circunstanciais e não o cerne da vida. O melhor é preparares-te convenientemente para o que aí vem. E fitou o vazio, com ar grave.
- Mas explica-me, interrompi-lhe a concentração. Porque é que não consegues descontrair-te e ser menos cáustica pelo menos uma vez? Sabes porque não venho mais vezes? Porque contigo não consigo encontrar o prazer de estar junto, o falar por falar, a fluência de uma cavaqueira sem qualquer direcção nem objectivo. Preferes filosofar, ser interessante, profunda, intensa. Sei onde queres chegar com essa foto, lembro-me muito bem como era e quem sou. Mas agora prefiro encontrar suportes de esperança do que acrescentar e reforçar atitudes de desconforto perante a vida. Escusas de tentar atirar-me novamente para o beco. Prefiro andar cá em cima, nem que seja à custa de paliativos, como tu lhe chamas.
- Eu, pelo contrário, não tenho paciência para sensaborias e futilidades. Se queres ser jovial e ter conversas agradáveis não deves vir. Já não temos idade para nos comportarmos como jovens imaturos. Olha para ti! Vestes roupas que não se coadunam com a tua idade! Ou esqueces?
- Não me esqueço. Mas fui aprendendo que nada tem sentido se recusarmos a alegria, a loucura, a inconsciência, o sonho, a viagem…

E de forma impetuosa respondeu à provocação.
-Sempre fui velha demais para jogar com os mesmos dados. A vida pode não ter sentido, mas teremos de ser coerentes e vivê-la como se um fardo se tratasse. E ser coerente também significa recusar amizades que não pactuam com esse rumo.

E emudeceu tão profundamente que percebi ser a deixa para eu me ausentar. Não era a primeira vez que nos afastávamos por não termos descoberto pontes entre nós. Saí para a rua deserta e com snipers esbatidos pela sombra dos vidros. Caminhei rápido espiando o céu cinzento que se arrastava sorrateiramente junto aos telhados e ameaçava despenhar-se em chuva. A vida vista dali era uma sucessão de imagens cruéis e sem graça. Um horizonte que fortalecia o espírito de guerra em que há muito se transfigurara. A alma tem tendência a assemelhar-se ao bairro onde se habita e vai-se adaptando tanto à leveza como à crueza dos lugares. Se há jardins habitados por crianças ruidosas com bicicletas e pequenas lojas silenciosas com fruta fresca a colorir as fachadas é bem possível que encontremos em nós maior margem de tolerância e simplicidade.

3 comentários:

Anónimo disse...

oh sim, os pavões gostam da bennetton!

essa tua amiga seria uma espécie de profeta...?

Anónimo disse...

vive num mundo paralelo, com a sua solidão, e talvez alguns fantasmas.

Unknown disse...

Muito "filósofa" para o meu gosto!
Leia-se, deprimente.
Às vezes mais vale assumirmos mesmo que os caminhos são paralelos e que as intersecções são absolutamente fictícias e artificiais. É a vida! como diz o outro.

Beijinhos