sábado, 20 de setembro de 2008

Filhos da luz...



É difícil entender a maldade. Mais difícil ainda é entender a loucura. A loucura que enferniza a vida aos próximos, que os engole na sua névoa, lhes impõe trâmites e exige réplicas canónicas. Se todos temos um fundo escuro que nunca o exteriorizamos no seu esplendor, a loucura significa ausência de amortecimento de efeitos e, nesse caso, esse lado misterioso extravasa-se em consequências trágicas para os demais.

Um amigo, daqueles que se prendem a nós sem se perceber as razões e vão connosco para todo o lado, desde garoto suportou uma relação turbulenta com a mãe e as sequelas desse processo são ainda visíveis e insanáveis. Talvez não haja culpas para distribuir, ou então os intervenientes vão sobrevivendo às transgressões, sem terem a certeza se foram eles a sua causa ou simples consequência.

Tudo começou quando a mãe, na tentativa de identificar o conteúdo dos livros de psicologia como a solução mais elementar para as dúvidas surgidas na relação com os outros, encontrou nos filhos as cobaias ideais. Um processo desastroso, porque se era evidente que os filhos espelhavam os textos, aquilo que não encaixava teria de ser acertado nos parâmetros, ou então analisado como moléstia tratada com receituário médico. E o garoto era demasiado irrequieto, uma vivacidade interior tão forte que arrasava tudo à sua frente, tal como uma enxurrada num dia invernoso. Mas naquele tempo não se falava em hiperactividade e a norma transparecia nos colegas de escola, atentos e sossegados como os anjinhos das igrejas. Então, após consultas a vários médicos, um deles confiou nos sintomas, possivelmente esticando as suas certezas para se encaixar nas certezas dela, e diagnosticou-lhe epilepsia, uma disfunção no sistema nervoso, caracterizada por convulsões e problemas de atenção. Enquanto isso, paralelamente, a luta do pai era bem diferente, certificando a normalidade do filho e recusando diminui-lo à custa de medicamentos. A mãe acusava-o de apenas ter vergonha de uma anomalia no filho, o pai acusava-a de importar para a vida familiar de forma imprudente uns livros que ela devorava de sol a sol. As trapalhadas amontoaram-se sem remédio, desencadeando rupturas que adviriam bastante mais tarde.

Mas a mãe ganhou a guerra e toda a energia que encontrou nas entranhas direccionou-a para a salvação do filho, transformando-a num instrumento metódico e inflexível de regeneração do corpo e da alma. Desenhou deveres com a rigidez de um militar de carreira, metodologias, tempos e actividades. O fundamental era a ocupação desportiva sistémica, decretando, além das actividades normais da escola, natação várias vezes por semana, corridas diárias em volta da casa, enquanto ela supervisionava o esforço e o tempo, completando o tratamento com a norma implacável de se deitar às sete da tarde. Tudo com o objectivo de expulsar o mal pelo esforço e a fadiga extremos, primeiro, atenuaria os efeitos e, aos poucos, descobriria o ritmo certo da normalidade.

Hoje, ele não se lembra se corria com lágrimas nos olhos e se dormia as horas prescritas, pois apenas tem na memória o calor de África que impedia o sono solto e os sonhos calmos. Mas os tempos foram difíceis, pois as crianças preferem encontrar um tempo escorregadio e não um tempo determinado por regras severas. Preferem o afago do que uma disciplina férrea que esconde o sorriso. No entanto, a inocência não é culpabilizadora e, se o é, revira para si mesma culpas alheias.

Em complemento, até ao fim da adolescência, ele tomou sem qualquer escusa, fortes doses de medicamentos. Até que a maturidade, perante as dúvidas que sempre pairaram e confessadas em território inimigo, determinou a interrupção do tratamento. Três anos após essa tomada de força, através de novos exames médicos solicitados por ele, foi-lhe garantido que nunca teve epilepsia e que teria sido um erro clínico do seu colega, quinze anos atrás.

É claro que desacertos todos os cometemos e há erros trágicos que tiveram na sua origem o sentimento de procura do certo e do bem-fazer. Educar tem riscos, pois nunca saberemos se o que propomos é o caminho mais certo para quem está nas nossas mãos. Mas quando o nosso lado obscuro extravasa, as consequências são tão desastrosas que a vida não chega para as expiar.

3 comentários:

moongirl disse...

I enjoy reading your topics as I try to learn your language. I hope I have the "sense" of what you are saying on this Ilheu..many many "labels" have been put/or tried to be on my son over the years as well... (although I did see the first scan of the immense damage to his brain at birth, thats the medical bit)..nobody's fault really, although I did spend some time in the early years wondering how I could have prevented it... But They told us he may never walk, perhaps not speak...and from the moment he could, he ran around everywhere! and has not stopped talking....To the delight of us, and the medical professionals.So yes sometimes they get it wrong, and yes sometimes mothers can make it much worse as they "hold them close".. He is now 24 does have an intellectual disability, and epilepsy..and is a joy to be with... He will try anything in life.(sometimes to my disdain, and fear of the consequences!)But you have to let him push the boundaries to find his capabilities. the hardest times have been telling him, no he cant have a drivers licence, or join the police force!, or drive an ambulance..I think We must just love them for themselves, and thank God they are still alive?

ilhéu disse...

um beijo do tamanho da lua, moongirl.

Anónimo disse...

Thanks Ilheu..and my word thank goodness these things get easy as our "youngsters" become grown ups eh...(moongirl)