Conheci-a nos tempos de Liceu e mais tarde reencontrei-a na Universidade. Ponderada, jogava sempre pelo seguro. Escolhera o curso com apoio de uma conselheira de orientação escolar e parecia tão certa de tudo o que girava à sua volta que, ao contrário de mim que era uma dúvida com pernas, tomava sempre as decisões mais sensatas e não dava passos em falso. Ninguém desconfiava da sua natureza e eu só o reconheci mais tarde. Após intimidade conquistada, uns pensamentos desfraldados perante notícias de um mundo em ebulição, análises de filmes, opiniões sobre broncas da vida política, aquilo que julgara princípios de sensatez era afinal uma incomensurável atracção para a asneira.
Mas, contrariamente a qualquer previsão lúcida, atingiu com sucesso todos os seus objectivos. Obteve classificação de muito bom no curso porque nunca foi obrigada a defender qualquer tese, conquistou um lugar de destaque na Câmara Municipal e pouco tempo depois casou com um pato-bravo que viu nela as pernas bem torneadas e uma crista espampanante de cabelos louros. Lembro-me de que no dia do casamento olhou para o grupo com ar triunfante, quase soberba, e nós, que gozávamos com a sua secreta incapacidade para revelar rasgos interiores, ali especados no adro da igreja, sozinhos, sem futuro e sem saídas. Convidara-nos para nos humilhar e bem o merecíamos.
Nos anos seguintes encontrei-a tantas vezes que parecia que me perseguia, gozando com o meu desleixo e ar falhado. Ostentava quase sempre uma barriga de meia-lua à espera do próximo pinto e eram já tantos que se escondiam debaixo das suas asas que parecia que tinham sido chocados todos de uma só vez. Fruíam de um ar feliz, branquinhos de pele e rosados, tão louros como trigo maduro e brincavam uns com os outros, como se o quintal fronteiro à casa se tratasse do recreio de um colégio privado. Habitavam uma capoeira de paredes brancas e janelas de guilhotina e durante o dia imaginava-os a debicar em púcaras de barro e à noite empoleirados em ripas de madeira encaixadas nas paredes. Quanto ao marido que andava de mercedes e fazia casas à medida das necessidades, exibia-se como um poderoso chefe de poleiro e não perdia uma oportunidade para reafirmar o seu império de pato metamorfoseado em galo. Tinha o raro dom de ganhar dinheiro e ela sabia gastá-lo como ninguém.
Quando adulto, na idade já permitida a confidências, os mais velhos da família confiaram-me todos os segredos. Verdades transmitidas de geração em geração, manchadas por esquecimentos e algum facciosismo, mas tão verdades como quaisquer outras. Foi nessa altura que desvendei que a família da referida já há muito pertencia à classe das aves e que além dela havia na aldeia uma catrefada de bichos com aparência humana, desde os mais comuns, os burros, por falta de inteligência, alguns cavalos pela escassez de jeito em lidar com o social, ratos e ratazanas por deitarem a mão ao alheio, cobras pela sua língua bifurcada e viperina, doninhas fedorentas por razões óbvias, porcos, macacos, lobos e cordeiros, por requisitos vários.
Na boca sábia dos antigos nada escapa e tudo tem nome. Qualquer acto encaixa num figurino e, no fundo, poucos são humanos como eles próprios. O seu conhecimento profundo da animalidade dava-lhes tipologias de comportamentos que assentavam como uma luva na conduta dos vizinhos, desvendando por baixo dos tapumes um autêntico jardim zoológico em plena aldeia. E, se quase todos eram falsas aparências, perguntei se aos nossos olhos – da família – mais alguém seria humano como nós. Claro que sim! Relações sem mácula, solidariedade centenária entre famílias mais chegadas, motivos para se confiar que a espécie não estava em perigo de extinção.
Mas desde aí pairaram sempre dúvidas da minha humanidade aos olhos dos outros. Na certeza porém de que aquela galinha que depenicava couves, engolia milho, soltava ovos brancos com gemas mais amarelas que girassóis e fugia espavorida sempre que me via tinha uma pancada só admissível nos humanos…
Mas, contrariamente a qualquer previsão lúcida, atingiu com sucesso todos os seus objectivos. Obteve classificação de muito bom no curso porque nunca foi obrigada a defender qualquer tese, conquistou um lugar de destaque na Câmara Municipal e pouco tempo depois casou com um pato-bravo que viu nela as pernas bem torneadas e uma crista espampanante de cabelos louros. Lembro-me de que no dia do casamento olhou para o grupo com ar triunfante, quase soberba, e nós, que gozávamos com a sua secreta incapacidade para revelar rasgos interiores, ali especados no adro da igreja, sozinhos, sem futuro e sem saídas. Convidara-nos para nos humilhar e bem o merecíamos.
Nos anos seguintes encontrei-a tantas vezes que parecia que me perseguia, gozando com o meu desleixo e ar falhado. Ostentava quase sempre uma barriga de meia-lua à espera do próximo pinto e eram já tantos que se escondiam debaixo das suas asas que parecia que tinham sido chocados todos de uma só vez. Fruíam de um ar feliz, branquinhos de pele e rosados, tão louros como trigo maduro e brincavam uns com os outros, como se o quintal fronteiro à casa se tratasse do recreio de um colégio privado. Habitavam uma capoeira de paredes brancas e janelas de guilhotina e durante o dia imaginava-os a debicar em púcaras de barro e à noite empoleirados em ripas de madeira encaixadas nas paredes. Quanto ao marido que andava de mercedes e fazia casas à medida das necessidades, exibia-se como um poderoso chefe de poleiro e não perdia uma oportunidade para reafirmar o seu império de pato metamorfoseado em galo. Tinha o raro dom de ganhar dinheiro e ela sabia gastá-lo como ninguém.
Quando adulto, na idade já permitida a confidências, os mais velhos da família confiaram-me todos os segredos. Verdades transmitidas de geração em geração, manchadas por esquecimentos e algum facciosismo, mas tão verdades como quaisquer outras. Foi nessa altura que desvendei que a família da referida já há muito pertencia à classe das aves e que além dela havia na aldeia uma catrefada de bichos com aparência humana, desde os mais comuns, os burros, por falta de inteligência, alguns cavalos pela escassez de jeito em lidar com o social, ratos e ratazanas por deitarem a mão ao alheio, cobras pela sua língua bifurcada e viperina, doninhas fedorentas por razões óbvias, porcos, macacos, lobos e cordeiros, por requisitos vários.
Na boca sábia dos antigos nada escapa e tudo tem nome. Qualquer acto encaixa num figurino e, no fundo, poucos são humanos como eles próprios. O seu conhecimento profundo da animalidade dava-lhes tipologias de comportamentos que assentavam como uma luva na conduta dos vizinhos, desvendando por baixo dos tapumes um autêntico jardim zoológico em plena aldeia. E, se quase todos eram falsas aparências, perguntei se aos nossos olhos – da família – mais alguém seria humano como nós. Claro que sim! Relações sem mácula, solidariedade centenária entre famílias mais chegadas, motivos para se confiar que a espécie não estava em perigo de extinção.
Mas desde aí pairaram sempre dúvidas da minha humanidade aos olhos dos outros. Na certeza porém de que aquela galinha que depenicava couves, engolia milho, soltava ovos brancos com gemas mais amarelas que girassóis e fugia espavorida sempre que me via tinha uma pancada só admissível nos humanos…
4 comentários:
Obrigada.
Assim, sinto-me mais humana...
Beijo*
Mural da história:
Dantes as modelos eram mais rechonchudas.
afinal o texto voltou. :)
Não percebo por que razão recolheste o texto ao covil!É engraçadíssimo, estimulante...
Já agora, por covil, que animal isto implicará? Se fosses um, eras certamente o mocho sapiente, mas esse não tem covil.
Beijinhos, estou cheia de trabalho
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