segunda-feira, 23 de junho de 2008

Tratado sobre uma paixão

É insuportável viver sem beleza. Da mesma forma, ninguém consegue viver sem amor. Quando o amor existe, a beleza é um complemento; se falta, transforma-se numa obsessão. A beleza sem paixão é uma frivolidade, dispensada sem qualquer dor na primeira oportunidade. Mas a paixão resistirá à ausência da beleza?

Nos meus tempos de juventude, através de um amigo comum, conheci um fulano casado com a mulher mais desprovida de atributos físicos que eu conhecera. O casal era proprietário de um bar onde nos encontrávamos nos finais de dias monótonos, eles com o ar mais apaixonado do mundo, servindo a clientela e protestando contra demoras extras dos bebedores compulsivos ou daqueles que iam bebericando sem querer ver o fundo ao copo. Fechavam às dez da noite quando o bar ainda se atazanava de gente ávida de álcool e companhia, mas era óbvio que para eles o lucro era um pormenor insignificante e as demoras significavam tempo a menos para eles próprios. Perante o cenário, imaginam os nossos comentários.

Reconheço a maldade. Dois inspectores de destinos alheios sem nada de relevante, companheiros de desventuras e solidão, julgando que qualquer afecto que lhes caísse na rede era apenas o prelúdio de qualquer coisa em grande, abrigada em limbos gelados para melhor oportunidade. Como as noites forneciam horas tão desmedidas como os anos que nunca mais chegavam ao seu termo, permitiam-nos, após o jantar, deambular em conversas sem rumo. Apesar do tédio, jurávamos preferir estar sós a ficar com o ar de idiotas como aqueles dois, escarrapachados nos olhares de todos os outros que encontravam qualquer coisa de esquisito numa união tão desproporcionada.

O Verão estava no pino. Vagueava pela noite um calor tão forte que não deixava o sossego escorregar pelos corpos. Acompanhados de cerveja, espiávamos a retaguarda do balcão como que anestesiados por delírios vagantes que uniram aqueles dois seres tão diferentes, união que fez rebentar costuras familiares. Nas confusões resultantes da desistência da Universidade e do casamento com aquele ser sem graça e sem fortuna, exigira a parte dele do testamento – por morte do pai - e compraram aquele espaço que decoraram de forma sóbria mas com bom gosto. Mas o entusiasmo de proprietários foi breve pela obrigação de aturar seres sem alma de amantes, tais como nós, que passavam por ali para se perderem de tempo. De poucas conversas, mas acenos cúmplices, encostos prolongados ao cruzarem-se no espaço exíguo por trás do balcão, eram sinais óbvios do entusiasmo reinante. Apontávamos os pormenores como polícias à paisana, como transgressões ao nosso olhar infectado por mulheres belas que sabíamos existir algures.

Na verdade, de bela nada tinha. Um nariz irritante, pequeno e ameaçador, dos que não permitem sorrisos, com narinas que se meneiavam como guelras de peixes aflitos. Lábios rigorosos, finos e de uma dimensão pequena, quase misteriosa. Os olhos negros, magros e nervosos, tão inexpressivos que não consentiam apreciar ternura ou emoção. No resto do corpo, ausência de pormenores pela corpulência desmedida. Um todo inabarcável. Ao andar, movia-se com funcionalidade mas sem graça, tal como um carro de assalto. Era profundamente eficaz. A eficácia era o atributo que melhor a definia: atingia os objectivos mas sem graciosidade. E ele com aquela pose submissa e olheiras profundas, tão negras como pinturas de guerra. O seu aspecto de intelectual de finais dos anos setenta, com barba rala escura pendurada na face, um sorriso calmo, próximo da fotografia de Che Guevara que todos tínhamos no quarto nessa década. A sua reverência perante a deusa que o abonava com as suas bênçãos era irritante.

Mas qual a origem da paixão? O que fará despoletar o início do seu jogo? Não serão detalhes? A paixão é cega ao geral, apenas tem presente linhas estreitas, razões para a adoração. Na paixão o todo é um elemento supérfluo, bastam-lhe particularidades abonatórios. (No amor é ao contrário: ama-se o todo, mesmo reconhecendo razões de críticas em minudências.)

No entanto, podemos pensar que a fealdade exterior esconde uma interioridade deslumbrante. Mas nem uma interioridade vazia está sempre disfarçada pela harmonia de formas, como uma interioridade opulenta tem como reverso uma fealdade exterior. A questão não está na relação inversamente proporcional entre a beleza e o discernimento, mas apenas que na falta de um busca-se a optimização no que se encontra disponível. Daí que quem se sente bonito queira demonstrar que é igualmente inteligente, os feios querem fazer crer que são proprietários da beleza interior que ameniza a falta.

Tudo mentiras. Pelo menos neste caso. Ao fim de um Verão de pesquisas – uma investigação sem plano, apenas com a conivência de acasos e momentos – chegámos à triste conclusão que além de feia tinha mau fundo. Gostava de ser olhada, bajulada por frequentadores da casa, mesmo por aqueles que sozinhos em mesas despejavam a vida em copos sucessivos. Por várias vezes obrigou o marido a pedir explicações aos mais atrevidos e ria-se perante a perturbação das vítimas que negavam vícios, maldade ou falta de respeito, no meio de rubores e suores frios. O marido, vexado naquela função de defensor da virtude da mulher, como se isso fosse necessário, não podia discutir ordens de sua alteza… E tratava-o mal como se a paixão dele precisasse de ser continuamente testada.

Entretanto, o Inverno chegou e os passos alteraram-se com a chegada da chuva. Eles desfizeram-se do estabelecimento, tal como ameaçavam e saíram da circulação. Meses depois calcorreava um centro comercial quando os vi sentados numa esplanada. Fiquei curioso. Ele mais magro, parecia que diminuíra em tamanho. Bebia uma água e olhava para o copo com tal distracção como se nele observasse o seu futuro. Ela, vaporosa, mastigava um gelado de tamanho gigante, fazendo gestos dengosos com o pescoço como para esticar o cabelo comprido. Não diziam palavra. Pouco tempo depois levantaram-se, ela na frente em passo firme fazia ondular perigosamente o vestido comprido, ele parecia em dificuldade em manter-se na peugada. Não me parecia feliz.

(Mas, como sabem, a felicidade não decorre da paixão. Nem sequer do amor. A paixão exige a presença do outro como uma necessidade vital, mesmo que essa presença seja fonte de sofrimento.

O jogo da paixão determina adoração e submissão. No amor há partilha e complementaridade. A paixão queima, recusa o tédio, a serenidade, a vivência amordaçada pelo esquematismo. Paixão e tranquilidade não são compatíveis. A discussão e a guerra são estratégias para testar continuamente a eficácia da submissão e adoração mútua. A acalmia numa paixão é apenas acomodação ao todo social.)

Regressemos aos dois. Não faço a mínima ideia como tudo evoluiu. Mas no meio das memórias ouço-os a vociferar numa qualquer noite de Verão, onde corpos resignados adormecem em cadeiras de esplanada: ” Quem sois vós senão funcionários das paixões que ritmam a alma por pequenos sinais de desejo, como se a vida se resolvesse por alaridos esgotados?!! Vós que tendes um coração frágil, não sentireis mais do que pequenos burgueses que compram tudo menos o que tem valor. Ficareis retidos em qualquer paragem sem o prazer da viagem por margens turbulentas. Azar o vosso.”

4 comentários:

V. disse...

como se costuma dizer:

beauty is in the eye of the beholder... :)

beijinho*

Anónimo disse...

Quem feio ama, bonito lhe parece! E penso que sim, talvez a paixão seja essencial para que o amor não nos deixe ver os defeitos do outro. Para que, num todo, consigamos encontrar os pormenores que tornam bela a pessoa amada! Mesmo que sejamos só nós a vê-los. Mesmo que todas as outras pessoas só vejam defeitos naqueles de quem gostamos.

::::: disse...

Se a realidade nos alimenta com lixo, a mente pode nos alimentar com flores.

(Caio Fernando Abreu)
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... se é que me faço entender...

Beijo

Anónimo disse...

Parece simples de perceber. A chave é o bar. Sem o bar nada disso seria possível. Com o bar tudo é possível. Sendo-se dono de um bar a vida é uma festa.