sexta-feira, 20 de junho de 2008

uma dúvida com oitenta anos

A vida num dia a ferver atravessa encenações diferenciadas como num teatro dramático clássico, mas transforma invariavelmente as tardes em cenários irreais. Depois de almoço, costumo deitar-me no sofá com uma música sombria e, pouco depois, o sono invade-me como um vírus. Mas, por azar, hoje a empregada doméstica alterou rotinas por razões desconhecidas e lembrou-se de vaguear pela casa como uma alienada furiosa, munida do aspirador como arma de arremesso, procurando desesperadamente fantasmas esquivos. Via a sua sombra através dos vidros da porta da sala, numas vezes parecia que puxava o aspirador, noutras parecia-me que era puxada por ele. Cheguei a temer que o aspirador ganhasse vida própria e saltasse a varanda com ela atrás. A certa altura, o som estridente finou-se e a casa foi envolvida de imediato de um clima propício à bonança.

A minha empregada doméstica é uma senhora simpática, de idade indefinida e que raramente expõe qualquer ponto de vista. Anda na sua vida como se nós não existíssemos e nós respeitamos essa privacidade como território sagrado. Faz o que acha que deve, nós acostumámo-nos a julgar que acerta na maioria das vezes. Estranhamente, hoje alterou-se. Foi em tom sério que me confidenciou a razão de vir a horas discrepantes. Após hora e meia à espera do autocarro devido a um acidente na zona, desistiu e optou pelo período da tarde. Fiz-lhe um sinal de concordância e que fizesse de conta que eu não estava ali. E quando julgava o assunto encerrado, voltou-se, em tom de confidência, como se quisesse desprender-se de um fardo. Durante o tempo de espera do autocarro, uma velha de oitenta anos contou-lhe a vida tintim por tintim, desde uma infância de maus tratos, uma adolescência cheia de interdições, até à vida adulta com um casamento triste e uns filhos burros. Uma catástrofe, mas com algumas nuances e alegrias íntimas, naturalmente.

Percurso que agora se concluíra na relação crítica com a filha solteirona que nas últimas noites a arrumara a dormir nas escadas do prédio e na estranha relação com um magala que diariamente descia a rua, rente à sua janela. Andava intrigada com os sinais diários que este lhe fazia, sinais amistosos e de sentido indefinido que poderiam ser apenas uns simpáticos gestos para uma idosa fechada em casa com todo o tédio do mundo, mas que poderiam transportar outras intenções menos cavalheirescas. Será que aquela cabeça fresca de vinte anos pretende mais alguma coisa de mim? O que acha? Perguntou-me a empregada pela boca da velha de oitenta anos. Eu fitava-a com o assombro por me dirigir a pergunta e ela estranhava o meu silêncio como se a resposta fosse óbvia. Mas qual resposta? Será que ela julga que devo ter qualquer opinião sobre o facto de uma velha de oitenta anos estar cheia de dúvidas se um magala redondo a possa ver como objecto de desejo? Medo ou esperança da velha? Será que há histórias destas provindas das profundezas ardentes de uma velha de oitenta anos? Será que há magalas que sonham eroticamente com velhas gastas que dormem em escadas por maldade dos filhos? Será verdade o questionamento da minha empregada doméstica sobre um dilema dramático como este?!

Pedi-lhe desculpa por não a poder ajudar. Ela virou-me as costas, ligou de novo o aspirador e pareceu abanar a cabeça como se a minha ignorância sobre o assunto me transformasse num ser pior do que já era. Nestas tardes quentes de uma Primavera defunta, preferia que as tardes infindas se estendessem pelas paredes vazias e por uma música que depressa esquecemos, como esquecemos tudo o resto...

6 comentários:

Anónimo disse...

A empregada doméstica teve ciúmes! Ou então a TV lá de casa avariou e ela não consegue ver as novelas.

Anónimo disse...

A prostituta mais pretendida da Praça da Figueira já é avó. É procurada pelos mais jovens clientes. Toda a gente sabe isso. A explicação é simples...

Anónimo disse...

Essa dúvida tem milhares de anos.

Anónimo disse...

Essa história da Praça da Figueira é mesmo verdade. A polícia chegou a ser chamada por causa das agressões das colegas mais novas iradas porque a velhota lhes roubava o negócio.

::::: disse...

Ai... e como é bom esquecer tudo o resto...

Beijo

Anónimo disse...

Tabelas de verdade amanhã de manhã?