sexta-feira, 27 de junho de 2008

a caminhada

Vou indo para baixo, procuro a sombra fresca das árvores, mas não sei para onde vou. Não ouço os passos mas consigo ouvir-me baixinho. O funcionamento contínuo do pensamento, como um rádio barulhento, é muito cansativo. Gostava apenas de olhar a luz e as cores, sentir o vento, e continuar a andar, mas sem ter de fazer comentários. Distraído, a voz continua a sussurar. Passado, presente, juízos sobre gente que passa, o que aconteceu hoje, ontem, há vinte anos, tudo se mistura como se os encadeamentos se sucedessem por alçapões invisíveis que se vão abrindo e fechando, enquanto caminho. Não há paciência para tantos juízos, tantas apreciações estéticas, tantos pormenores mesquinhos de quem se atravessa nesta caminhada! Não sinto os passos sinto-me a mim que ando.

Canso-me menos quando falo com outros. Esqueço-me de quem sou, aquele ser chato que tem sempre algo para dizer. Que pensa. Ficaria louco se apenas me ouvisse a mim mesmo, sem paragens, sem bloqueios durante a eternidade. Quando os outros falam e sorriem, sinto o prazer de estar sem nada ter para dizer. Afinal, o inferno não são os outros. O inferno está dentro de nós, escondido, envergonhado, com labaredas que nos transtornam. O inferno é aturarmo-nos, escutar aquela voz que se parece connosco, que nos massacra com pormenores e curiosidades que identificamos como fazendo parte da nossa história.

Quase por acaso, entro no velório do vizinho que morreu depressa, como se não quisesse saber a razão. Um dia apenas bastou para que sucumbisse, sem haver histórias de doença no seu curriculum. Após dar os sentimentos à família, em frente à urna, num cenário quebrado por entradas e saídas de pessoas desconhecidas, não me apetecia ouvir-me, naquele discurso monótono e deprimente de quem entrou, de quem saiu, sobre a sua tristeza ou apenas a vontade de olhar a face do morto. Sempre naquele questionamento existencialista sobre a valência da vida e da morte sem qualquer mensagem prévia. E encostei-me a uma conversa de duas senhoras de idade. Uma delas comentava,

- Incrível, apenas com cinquenta anos e morreu. Morreu de quê?
- Dizem que foi a doença dos ratos. Mas não há certezas.
- Então, e tu tiraste as cataratas?
- As cataratas? – pergunta a outra surpreendida. – Tenho é um diploma.
- Um diploma? Não percebo. Responde a vizinha.
-Eu fui fazer apenas um exame aos olhos.
-Ah! ….

Não percebi mas saí de mim. Vagueei pelos outros tanto tempo que até me tinha esquecido qual a razão de estar ali no meio de tanta gente desconhecida. Depois lembrei-me.

10 comentários:

Anónimo disse...

As senhoras mais velhotas têm muitos diplomas desses. Pessoas letradas. Sabem das maleitas todas.

Beijo

Anónimo disse...

Pois claro, o meu primo Diogo!

FLY disse...

"Canso-me menos quando falo com outros." (...) Apesar de ainda estar em recuperação (aquele vinho e aquelas entradas matam!) lá voltaremos a outro almoço de "despedida" da T. :))
Foi giro! Hei, Maria? :)

Abraço

ilhéu disse...

É isso, hei Maria? Todos sentimos a tua falta. Onde andas?

Unknown disse...

Olá, estou de volta!

Nem imaginam a sobrecarga da minha agenda social! Uma loucura só comparável à da "nossa" (porque nacionalizada) Lili Caneças!
Tenho de fazer isto mais vezes para me sentir assim, com os meus amigos cheios de saudades.
Quanto ao texto, concordo que somos o nosso próprio inferno. Mas continuo a concordar também com o Sartre, quantas vezes o inferno são os outros! Isto é, para onde quer que nos viremos, as chamas estão lá, prontinhas a devorar-nos. Cabe-nos a nós, fugirmos a sete pés, e encontrarmos um oásis onde descansemos de vez em quando.

Beijinhos

::::: disse...

Quando os outros falam e sorriem, sinto o prazer de estar sem nada ter para dizer.
......................
Uma boa frase para a minha caminhada.
Este texto diz-me muito.
Talvez porque gosto de caminhadas,
com a brisa a acompanhar os passos.
Ou porque tenho uma "vozinha" destas...

Beijo
......................
Sim, outro almoço daqueles! ;)
E Maria, vai ter de usar um "martelinho"...
É... libertador. Não acham Fly e Ilhéu?

ilhéu disse...

Outro almoço, concordo em absoluto. Já tenho saudade da farinheira de entrada, apesar de nos matar! Já agora, Maria, a dificuldade é sair do inferno...ah, ainda bem que voltaste! tal como a letra do Sérgio Godinho...

FLY disse...

Adoro aquele restaurante. Acho muita piada ao espaço, aos quadros, ao dono, às entradas, ao vinho, ao pão regional, à "biblioteca", à cozinheira, a três ou quatro pratos, aos martelos, às nozes, ao preço...e a vocês :))
O pior é depois! :))) Mas tudo se resolve com...uma caminhada! :))

Abraço

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Ah, pois, sair do inferno é que é mesmo difícil, mas nada que uns almoços com amigos não resolvam, que ,esses sim, são uma bela caminhada , levando ao paraíso.
Por isso, que é uma simples farinheira, enchido dos diabos, ao pé desse eden redentor?

Quanto às marteladas, lamento, mas nozes e afins não são o meu forte. Aquela sanha assassina que vos vi usar contra frutozinhos indefesos, guardo-a eu para o inferno.

Beijinhos