Pela janela entrava um manto negro com pequenas frestas que faziam adivinhar um imenso céu azul. Piscas intermitentes no cimo da serra, provindas das torres eólicas, acrescentavam ao cenário um tom misterioso, semelhante a um genérico de um filme de marcianos, prestes a invadir território humano. Ao sinal de mensagem do telemóvel olhou maquinalmente o mostrador, à espera de encontrar as banalidades do costume: " estou atrasado para o jantar", "compra pão!" "liga à minha mãe" e outras com intuito comezinho de resolução dos problemas diários. Primeiro começou a ler e só uns momentos depois é que reconheceu a estranheza.
" Querida Lena. Após reflexão, é com mágoa que reconheço que a nossa relação sem futuro também deixou de ter presente. Não consigo conviver mais com a mentira, e cresce em mim o receio de que a minha mulher saiba da nossa história. O nosso caso de anos trouxe luz à minha vida, transformei-me em melhor pessoa. Vou guardar-te no coração. Mas os sinais são demasiado fortes e lá em casa a desconfiança anda a destruir tudo o aquilo que sempre quis preservar. Nunca te dei falsas expectativas. Juntos jurámos que a nossa relação nunca interferiria na nossa outra vida. Beijos, felicidades."
Releu. Ainda outra vez . O autor pensara seriamente no assunto, medira as palavras para sair airosamente da situação. Apesar do pouco senso em utilizar um telemóvel para as despedidas, desconheciam-se as urgências por trás de tal decisão abrupta! Ela com o telemóvel junto à face e com o semblante carregado, como se contemplasse as lágrimas bastas nos olhos de Lena e desespero nos gestos do amante. O certo é que nem ela se chamava Lena nem tinha amante! Naquela extensa tarde, enquanto esperava pelas horas de trazer o filho do colégio, efabulou com prazer sobre a possibilidade de uma aventura que valesse a pena. Um fulano com um físico escorreito, afável e carinhoso, tempo vago, sinais de afecto e sexo tórrido. Talvez não exista um disponível com essas potencialidades mas nada se perde em sonhar...
Nessa noite, ao jantar, o marido chegou bem mais tarde do que a hora marcada. A regra, instituída após o nascimento do João, determinava que o jantar era o espaço de comunicação por excelência e nada poderia impedir a presença de nenhum dos três. Regra quebrada uma vez por outra, mas que ele tentava cumprir à risca. O pequenito já tinha jantado e andava aos saltos no sofá da sala, frente à televisão, eles comiam, silenciosamente, vendo o telejornal, como sempre, cheio de terramotos e mortes. - É estranho como a morte se transformou numa vizinha tão cómoda que nem nos tira já o apetite! A observação dela não mereceu resposta, apenas um som de assentimento. Agora o tema era o desporto. Confusões com clubes e jogadores, transferências, árbitros e dirigentes, numa amálgama demente e estranha que ela não entendia patavina.
Quando todas as notícias se esgotaram e a emissão se preparava com grande frenesim para a telenovela da noite, estavam já na sobremesa, ela contou-lhe a peripécia da mensagem do telemóvel.
- Nem sabes o que me aconteceu! Recebi uma mensagem estranha! Com grande surpresa minha, tive um amante vários anos e hoje comunicou-me a rompimento, sem apelo nem agravo, com o argumento, pouco dignificante, mesquinho até, do receio de poder ser apanhado pela mulher! Como calculas estou destroçada com a situação! Espero que tenhas isso em conta, hoje e nos próximos dias...
E ria-se, ao mesmo tempo que lhe dava para as mãos o telemóvel com o texto no mostrador. Leu, com olhar surpreendido. Comentou qualquer coisa do género " que texto ridículo para terminar um relacionamento de anos!". Ela mudou de conversa.
- Sabes, ao longo da tarde, por causa desse engano, pensei que não me repugnava ter um amante! Naturalmente, um tipo asseado, escorreito, bom na cama! A nossa vida, ultimamente tem sido tão sensaborona...
Ele continuava a olhar para o mostrador do telemóvel, encarou-a sem nada dizer.
- A sério, julgo que nos iria fazer muito bem repartirmo-nos com dois estranhos que nos aguentassem metade das neuras, metade das angústias, metade dos medos! - repetia ela, sempre com um gozo no olhar e em tom de galhofa. Agora ria-se com vontade, com o telemóvel na mão e olhar fugidio pelas paredes da cozinha. Parecia que estudava uma solução. Ela não sabia se em relação ao conteúdo da mensagem, se em relação ao conteúdo das suas próprias afirmações.
- Vamos ligar-lhe! - disse ele eufórico. - Vai ficar mesmo à rasca!
- Não faças isso. Vai ser muito constrangedor para o homem!
- Azar o dele. Tivesse mais cuidado em guardar o seu próprio segredo. Aliás, quem termina uma relação de anos com uma mensagem SMS não merece outra coisa...
Passados uns segundos, com o telemóvel junto ao ouvido.
- Está? Estou a falar da parte da Lena...
- Hum... -
- Sim, julgo que foi o senhor que lhe enviou hoje a mensagem com uma infeliz notícia e quero dizer-lhe que tanto ela como eu estamos destroçados. Claro está, por motivos bem diferentes....
Depois de um silêncio, ela a tentar estancar o riso, o ar sério dele.
- Meu caro senhor, na vida temos de arcar com as responsabilidades. Depois de anos a dormir com a minha mulher, fazendo contas, talvez já seja mais sua do que minha. Por isso venho dizer-lhe que também terminei o meu relacionamento com a Lena, mas com maior ombridade, pois comuniquei-lhe o facto de olhos nos olhos...
- Mas quem fala?! perguntava o outro com voz cada vez mais aflita. Do lado de cá um silêncio. - Foi um engano, pelo qual peço desculpa. Mas, que eu saiba, a Lena não tem marido! Depois de enviar a mensagem percebi que tinha havido um equívoco. Engano estúpido, mas nada havia a fazer. Peço desculpa.
E aqui mudou o tom. Já ía longo o castigo!
-Tem razão, é uma brincadeira! Mas no futuro, deve ter cuidado com o que faz com o seu telemóvel senão ainda acontece alguma desgraça...
- Mereci a chacota! Aprendi a lição. Na próxima, vai em carta registada!
E já ia a desligar, quando o marido lhe perguntou:
- Já agora, perdoe-me a indiscrição, mas a Lena, como mulher, valia a pena? Era gira? Era boa?!!
- Já foi, já foi... - no meio de uma sonora gargalhada do outro lado do telefone.
Com gestos lentos, desligou e colocou o telemóvel na mesa, enquanto ela do outro lado o olhava de forma enigmática. De rompante fitou-a, por breves segundos, e com voz carregada perguntou: - Não és a Lena, pois não?!...
- Já foi, já foi... - no meio de uma sonora gargalhada do outro lado do telefone.
Com gestos lentos, desligou e colocou o telemóvel na mesa, enquanto ela do outro lado o olhava de forma enigmática. De rompante fitou-a, por breves segundos, e com voz carregada perguntou: - Não és a Lena, pois não?!...
7 comentários:
Estou sem palavras e partida a rir!
Este post é digno de ser uma anedota de alentejanos, estes casais, o marido é mau, mau, mau! Não terá ido a mulher a correr atrás dele com a colher de pau nos momentos seguintes?
Estas pessoas têm um humor dos diabos... :D
lamento decepcionar-te, charlie the sinner, apesar de não ter a certeza, julgo que a pergunta do marido tem como única resposta o "sim" dela. Desculpa, sim? bjos.
meu deus... que enredo...
Deixou-me um bocadinho stressada este teu conto, tão misterioso e, por isso, tão desafiador da nossa criatividade.
Da nossa, simples leitores teus. Porque desconfio que tu sabes a resposta! Ou não? Será que é mais um caso daqueles em que as personagens se emancipam e tomam a dianteira ao narrador?
Quanto a mim, penso que a Lena é mesmo aquela mãe de família, simultaneamente recatada e escandalosa, dedicada e voluptuosa... Não aguentando guardar para si aquela enormidade repentina de afectos transviados, resolve levantar a ponta do véu.
E consegue instalar a dúvida naquele marido rotineiro e previsível.
O que se seguiu deverá ser objecto
de continuação do autor, para nós assistirmos ao desenlace da história...
Belíssima história, aliás!
Ah! e já agora, este é o tal "segredo" da senhora...
Se a Lena soubesse os ganhos que teria ao "trabalhar/instalar" semelhante dúvida no seu marido, seguramente ela seria hoje uma mulher com um enorme sorriso nos seus lábios!!!...(daqueles de orelha a orelha - não sei se estão ver) e mais não digo !!! ooppsss !
av
Bolas, como é que consegues?
Como é que consegues escrever algo tão belo?
Diz lá... qual é o segredo desta inspiração?
Beijo
Belamente hilariante, MESMO.
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