A reunião comemorava qualquer coisa importante. Sem gravatas e pose domingueira, enquanto o chefe ia fazendo os salamaleques habituais nestas situações, colocou-se, estrategicamente, num pequeno grupo de conhecidos que vagabundeava pelo redondel, todos com pedaços de carne de vaca presos a fatias de broa de milho. O líder desse grupo era uma personagem política muito popular, não só pela simpatia pessoal como pela sua corpolência, dono de uma barriga tão redonda e saliente que não parecia verdadeira. A conversa banal decorrente justificava a comida e a roda feita. Era o importante que tomava as rédias da conversa até que a cerveja, de rompante, lhe entrou no goto, uns momentos de impasse numa tentiva de não fazer estragos, até que um jacto proporcional à sua corpulência é expelido para diante sem tempo para pedir desculpa nem precauções aos membros do grupo. O repuxo atingiu-o a ele com a violência de mangueiras da polícia de choque. Sentiu cerveja quente na cabeça, depois na testa e nos óculos. Pelo andar da carruagem depressa atingiria o corpo todo.
Enquanto o autor do descuido pedia desculpas sinceras, na vítima era nítido o estado de choque. Inerte, resignara a inventar-se dentro de um pesadelo e o que se passava à sua volta não seria mais do que uma situação quimérica. Mas as manchas sobre a indumentária cresciam à medida que o líquido ensopava os tecidos, movendo-se como um animal com vontade própria. Penalizou-se por não encontrar lenços nos bolsos e os excessos na face retirava-os com a palma da mão, como se tratasse de um simples gesto de descontracção. A situação tornava-se insuportável. Agora que uma gota enorme, sorrateira, viajava na lente esquerda e transformava o cenário em campo de nevoeiro cerrado. A conversa decorria e mesmo sem ver o protagonista e ter perdido o fio à meada, mantinha a concordância através de sinaléticas da cabeça. Reconhecia-se numa ratoeira, incapaz de se soltar. No futuro de todos os presentes, em conversas que celebram o ridículo como ponto alto da convivência humana, ficaria para sempre lembrado como aquele que fora afogado num arroto de cerveja. Desprezariam o seu valor. Seria engolido por uma circunstância, ridícula na sua essência.
Aos poucos, a artificialidade da conversa fracassou. Já não era um simples olhar, mas vários, arrogantes, desafiadores, gozando com a prostração dele, com o seu aspecto lastimoso, trágico. O esforço até à exaustão para manter a normalidade e a atenção se concentrasse em algo exterior voltava-se contra o próprio. Todos, inclusive ele, o reconheciam. Os sorrisos deixaram de ser lamentos e passaram a ironia. Já não o consideravam vítima mas um palhaço tristonho, envolvido em manto de pilhérias. Apesar de alguns ainda o analisarem com subtileza cruel, os outros, abertamente, com evidente repugnância. Um do círculo imperfeito tomou a iniciativa e ofereceu-lhe o lenço azul bébé. Ele recebeu-o com nítido acanhamento. Foi o começo do fim. O riso absurdo, o próprio agente do descuido era também agora autor e actor de comédia, qual conversa qual quê! A vítima, vermelho até às orelhas, ria que nem um perdido para não acicatar mais o ridículo sobre ele. (imagine-se a mesma situação tentando chamar a atenção do grupo para gravidade da situação!) Até que esgotada a graça em gargalhadas, ganhou coragem e saiu sem explicar para onde.
Enquanto o autor do descuido pedia desculpas sinceras, na vítima era nítido o estado de choque. Inerte, resignara a inventar-se dentro de um pesadelo e o que se passava à sua volta não seria mais do que uma situação quimérica. Mas as manchas sobre a indumentária cresciam à medida que o líquido ensopava os tecidos, movendo-se como um animal com vontade própria. Penalizou-se por não encontrar lenços nos bolsos e os excessos na face retirava-os com a palma da mão, como se tratasse de um simples gesto de descontracção. A situação tornava-se insuportável. Agora que uma gota enorme, sorrateira, viajava na lente esquerda e transformava o cenário em campo de nevoeiro cerrado. A conversa decorria e mesmo sem ver o protagonista e ter perdido o fio à meada, mantinha a concordância através de sinaléticas da cabeça. Reconhecia-se numa ratoeira, incapaz de se soltar. No futuro de todos os presentes, em conversas que celebram o ridículo como ponto alto da convivência humana, ficaria para sempre lembrado como aquele que fora afogado num arroto de cerveja. Desprezariam o seu valor. Seria engolido por uma circunstância, ridícula na sua essência.
Aos poucos, a artificialidade da conversa fracassou. Já não era um simples olhar, mas vários, arrogantes, desafiadores, gozando com a prostração dele, com o seu aspecto lastimoso, trágico. O esforço até à exaustão para manter a normalidade e a atenção se concentrasse em algo exterior voltava-se contra o próprio. Todos, inclusive ele, o reconheciam. Os sorrisos deixaram de ser lamentos e passaram a ironia. Já não o consideravam vítima mas um palhaço tristonho, envolvido em manto de pilhérias. Apesar de alguns ainda o analisarem com subtileza cruel, os outros, abertamente, com evidente repugnância. Um do círculo imperfeito tomou a iniciativa e ofereceu-lhe o lenço azul bébé. Ele recebeu-o com nítido acanhamento. Foi o começo do fim. O riso absurdo, o próprio agente do descuido era também agora autor e actor de comédia, qual conversa qual quê! A vítima, vermelho até às orelhas, ria que nem um perdido para não acicatar mais o ridículo sobre ele. (imagine-se a mesma situação tentando chamar a atenção do grupo para gravidade da situação!) Até que esgotada a graça em gargalhadas, ganhou coragem e saiu sem explicar para onde.
6 comentários:
Pois, o mundo pode de repente tornar-se muito cruel. Deus nos livre de atrairmos o ridículo! o pior é que ele pode abater-se sobre nós quando menos se espera, como o teu texto bem ilustra... não há nada a fazer, é sair de mansinho, como fez a "vítima", solução acertada para quem se expôs aos olhos do mundo da maneira mais involuntária.
O problema é que o sentido do ridículo anda sempre numas paragens do mundo a que não acedemos, e bastas vezes o espicaçamos sem percebermos sequer que esse monstro informe já nos apanhou!
Pela minha parte só peço uma coisa simples: que aos oitenta anos não me dê vontade de pôr uma esplêndida mini-saia!
Sabes que o meu receio é idêntico ao teu, excepto a mini-saia, claro: ser um velho gaiteiro que olhe a vida como um eterno adolescente. Nessa altura, chega-me!
Não tenhais medo. Se pensais assim é porque já sois, sem o saber, muito velhos. Se, pelo contrário, fordes capazes de manter a líbido nunca envelhacareis e, consequentemente, todas as irreverências vos continuarão a ser permitidas.
PSI
Não tenhais medo. Se pensais assim é porque já sois, sem o saber, muito velhos. Se, pelo contrário, fordes capazes de manter a líbido nunca envelhacareis e, consequentemente, todas as irreverências vos continuarão a ser permitidas.
PSI
Não gosto de anonimatos... e muito menos de receber conselhos de anónimos. O texto não admitia comentários desse lado, ok?
E PSI significa o que estou a pensar? Obrigada, mas não preciso que me analise! Quando o quiser fazer, escolho o sofá que me agradar...
Quero aqui referir que o autor está a ser verdadeiro na forma como apresentou a situação caricata pela qual passou. A sorte dele é que por perto existia um amigo com um lenço azul bebé que prontamente o socorreu, caso em contrário ainda hoje estaria molhado de cerveja borrifada por uma boca "política e gorda"... Os Amigos estão sempre por perto...
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