quinta-feira, 15 de maio de 2008

O Problema dos Contos com Final Feliz...

Eram simples colegas de curso na faculdade. Naquele dia, apressado e sem qualquer explicação prévia, entregou-lhe um subscrito à saída de uma aula. Após a surpresa, escondeu o papel no bolso das calças e à noite, fechada no quarto, leu-o, ao mesmo tempo que o espanto a invadia.

Apesar do receio de ser inconveniente e patético, a audácia foi mais forte. Venci este demónio do acanhamento que, de forma vil, me atrapalha e dificulta a saída para fora de mim. Reconheço que tu, mesmo que o tentasses, dificilmente reconstruías o meu rosto, enquanto eu sei de cor o teu corpo, o teu sorriso, os teus jeitos que, aos poucos, fui acrescentando através de observações minuciosas. Desculpa-me a indiscrição, mas a desconsideração do facto poderá ser amenizada pela bondade dos meus bons propósitos.

Do amor nada sei. Limito-me a inventá-lo, de forma a não ser apanhado desprevenido! E por mais que tente não o consigo definir, determinar nas suas nuances, apenas concluí que para amar só é necessário alguém que se ajuste, que se presenteie como objecto de amor. Encontrei em ti esse alguém. Mas não te assustes, pois o amor não exige a anuência do outro, basta que ele exista. E tu existes, tenho a certeza. Sinto-te, mesmo quando tu não estás presente.

Andei tanto tempo por aí, ouvindo a solidão no ar, doente de abandono… Mas a vida ofereceu-me um bom remédio. Renasci ao ganhar coragem de ter um tecto, de ter alma. Conquistei a segurança pela consideração ganha ao dizer que gosto de alguém. O que ficou para trás, por lá ficou, adormecido. Apenas me acompanham réstias frouxas de um tempo extinto que ainda me magoa, mas que já não tem o peso hediondo que me obrigava a esconder-me no silêncio. Sou feliz, graças a ti.

Releu a carta vezes sem conta. Até essa data nunca lhe despertara qualquer interesse especial. Reconhecia-lhe a inteligência nas intervenções e discussões em volta de trabalhos de grupo, mas sem qualquer magia a envolvê-lo. No dia seguinte, encontrou-o no átrio da faculdade, mas fortalecida pela promessa feita a si mesmo, entregou-lhe apenas um olá distante. No quarto não conseguira restaurar o seu rosto, tal como ele pressentira, e agora queria acumular matéria suficiente para o ajustar, caso necessário. Enquanto a aula decorria, ia recolhendo dados que lhe garantiriam uma representação aproximada do original. Os cabelos eram claros, o olhar inteligente, a ansiedade à flor da pele. A certa altura, no meio da pesquisa, encontrou um olhar, o dele, ao mesmo tempo assustado e brilhante, e ruborizou-se por ter sido surpreendida. Após esse dia, seguiram-se as peripécias naturais e os desenlaces.

Como proprietário único deste conto, colocou-se, nesta altura, a urgência em lhe garantir um final feliz. Um rapaz tímido e meio desengonçado, que consegue namorar com a rapariga mais bonita da turma e, no final do curso, casam-se e são razoavelmente felizes! Mas, infelizmente, não foi isso o que aconteceu. Com o argumento que não estava preparada para assumir compromissos sérios, seguiram caminhos divergentes e após a universidade nunca mais se reencontraram.

Mas qual a razão desta tendência natural para desejar desenlaces felizes? Por breve análise, reconhecemos que a vida é mais um campo minado e trágico do que um lugar de agasalho; nós somos mais parecidos com um grupo de veteranos de guerra, cheios de mazelas e amputações do que um rancho de gente jovial, com sorriso no rosto e sonhos cumpridos. O problema, julgo, radica na convivência demorada e reiterada com relações tristes e se pudermos acompanhar uma envolta em esperança ela garante-nos o conforto espiritual que nos aconchega à vida.

O mais paradoxal é que a grande maioria daqueles que vivem diariamente as histórias felizes da TV são os que exibem maior estoicismo perante a adversidade, sem luta e sem capacidade de reacção para inverter a sua história. Derrotados, magoados, sem nada esperar, confortam-se com pequenas migalhas que saltam da mesa dos ricos! Faz lembrar uma travessia de pântanos, onde apenas uns raios de sol, uns fios dourados, conseguem penetrar por entre árvores espessas, cujos ramos assentam em águas estagnadas…

8 comentários:

V. disse...

:)

e não é que concordo?

(gosto tanto desta foto! :p)

beijinhos*

Anónimo disse...

Está interessante,como sempre,embora a construção me pareça que tem algo de novo. Andaste a ler o LD?
Beijinhos

ilhéu disse...

A sério, o que é o LD?!

::::: disse...

Terror de te amar num sítio tao frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeiçao
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.


(Sophia de Mello Breyner Andresen)
.................
E o que é um final feliz? ...

Anónimo disse...

love is desire to learn the other one. love is attention. attention means giving. and not everybody is ready to give, to concentrate on someone different from oneself. and even to concentrate on oneself seems like hard work:)


happy ends? ends of what:)?

Anónimo disse...

As coisas só têm piada quando requerem algum esforço da nossa parte! E a piada reside na recompensa, no fim da luta!


De facto, nesta vida há mais buracos do que caminhos planos e seguros. Andamos sempre magoados e de pernas partidas, mas as feridas curam-se. Será que as coisas podiam ter piada se a vida fosse uma facilidade?

Beijo.

Unknown disse...

O protagonista diz: "Do amor nada sei." ... E, afinal, sabia tanto!
Porque a dádiva é a sua essência. Basta-lhe isso.
E foi também isso que bastou para ele cumprir o seu sentimento, desnudo e sagrado.

Eu acho que , nesse sentido, houve um final feliz. Não daqueles clássicos, dos tais que se esperam.
Mas no sentido da construção do ser que adquire uma dignidade fascinante, quase comovente, que lhe é conferida pela força do amor.

Gostei muito, como sempre.

Beijinhos

nOgS disse...

Um conto com final...

no fundo nunca é totalmente feliz.

Está muito bem tecido e com uma imagem magnífica.

Beijos