sexta-feira, 2 de maio de 2008

E a morte aqui. Tão perto...

- Estou, António?
- Sim?!
- Desculpa, já é muito tarde. Estavas deitado?
- Sim. Mas quem fala?
- M., estás a ver quem é?
- (silêncio) Não. Do outro lado do fio uns soluços presos, como se saíssem de uma torneira quase bloqueada.
- Lembras-te, há três anos, do festival do Ramo Grande? Fazíamos parte daquela mesa divertida, mesmo perto do palco, com o médico? Foi tão engraçado…
- Ah, sim, é claro! Foram três noites óptimas. Peço-te desculpa, mas já havia tanto tempo que…
- Não te justifiques! Deves achar absurda a surpresa, a estas horas da madrugada! Sabes, estou aqui tão sozinha e não sabia a quem ligar…
- Onde estás?
- No Hospital de Coimbra. Já andava a sentir-me em baixo há bastante tempo. Diagnosticaram-me um cancro na cabeça. Hoje. Em estado já muito avançado e é maligno. Resta-me muito pouco tempo de vida.

Uma pausa. Do lado de lá um choro miudinho como quem se embala nele. Deste lado uma ausência de palavras como se qualquer uma que se encontre não se adaptasse de forma afável à situação. Logo nestas alturas em que precisamos delas para mostrar desconforto.

-Tem calma. És ainda tão nova e há tratamentos cada vez mais eficazes. É necessário que encontres em ti o máximo de energia para lutar contra isto.
- Julgo que não sou capaz. Nestes últimos meses a minha vida tem sido um inferno. Parece que caí num abismo e, por muito que me tente segurar, há forças que me atiram ainda mais para baixo. Não sei se sabes, divorciei-me, as coisas com o meu ex-marido não têm sido nada fáceis. Com ele, com a família dele, com os filhos… E agora isto.
- Lamento muito. Não fazia a mínima ideia…
- Olha, vai dormir. Obrigado por me teres ouvido. Reza por mim, se souberes.

Desligou sem me dar oportunidade para lhe desejar boa sorte ou mostrar disponibilidade em ouvi-la sempre que quisesse desabafar. Fiquei com o auscultador na mão sem saber bem o que fazer com ele. A noite ia já longa e não conseguiria dormir. O mar bem perto da janela começava a clarificar-se nas suas nervuras que desaguavam na Prainha e o céu nublado encostava-se à terra ainda meio adormecido. Após confidências, onde a tristeza escorre por canais que desaguam na alma, ficamos com o corpo mais pesado, como se o sofrimento tivesse densidade que acusasse em balanças. Mas nessa madrugada ainda não poderia saber que M. faleceria poucas semanas depois, após uma luta renhida contra a doença e já acomodada aos afectos que julgava ter perdido nos meandros de noites mal-dormidas. Comigo, foi a sua última conversa.

4 comentários:

V. disse...

Tão triste... :(

*

Anónimo disse...

...

http://uk.youtube.com/watch?v=iuTNdHadwbk

Anónimo disse...

Quem tem medo da morte nunca vive verdadeiramente.

::::: disse...

Durante a nossa vida:
Conhecemos pessoas que
vêm e que ficam;
Outras que vêm e passam.
Existem aquelas que vêm, ficam e depois de algum tempo se vão embora.
Mas existem aquelas que vêm e se vão embora com uma enorme vontade de ficar...


(Charles Chaplin)