Era uma vez uma corda de sisal esquecida numa obscura loja de quinquilharias. Encontrava-se adormecida havia anos, no meio de uma confusão de prateleiras repletas de chocalhos, balanças, parafusos, martelos de todos os feitios, bacalhau miúdo, rações para gado e alguidares de plástico azuis e amarelos. Mas a calma de uma corda de sisal é maior do que a de um indivíduo prostrado por drogas sonolentas. Não protesta, mesmo sendo injustamente trocada por plásticos manhosos, onde os laços aderem mal em piso tão escorregadio…
Ora, um dia, entrou um boi, percorreu com o olhar as prateleiras vezes sem conta, até que em jeito de desistência perguntou ao paquistanês, dono do bazar: “não tem por acaso uma corda de sisal para fazer embrulhos?” O proprietário, há tanto tempo sem ver clientes, julgou ser uma alucinação. Esfregou os olhos, fitou o animal com o mesmo vigor de um toureiro profissional e com lances de capote que fez gritar “olé!” o periquito amarelo que voava do seu ombro para a cabeça e vice-versa, respondeu-lhe em tom cerimonial:
Ora, um dia, entrou um boi, percorreu com o olhar as prateleiras vezes sem conta, até que em jeito de desistência perguntou ao paquistanês, dono do bazar: “não tem por acaso uma corda de sisal para fazer embrulhos?” O proprietário, há tanto tempo sem ver clientes, julgou ser uma alucinação. Esfregou os olhos, fitou o animal com o mesmo vigor de um toureiro profissional e com lances de capote que fez gritar “olé!” o periquito amarelo que voava do seu ombro para a cabeça e vice-versa, respondeu-lhe em tom cerimonial:
- Ouça, senhor boi, temos a mais perfeita corda do mercado, material originário das grandes planícies africanas. Poderá utilizá-la, segundo os melhores parâmetros, na construção civil, em touradas de rua, baloiços para todas as idades, acomodação de feno em palheiros e levantamento de bandejas de prata, se assim lhe aprouver… O boi sem perceber esta última finalidade ficou com uma tromba revirada durante segundos que pareceram horas, até que o vendedor o alertou,
- Acorda para a realidade e toca nela, toca, toca!… E o boi ao de leve passou a corda nos cornos e gostou da delicadeza do toque.
- Está bem, eu levo – disse.
- Toda? - questionou o lojista com satisfação no olhar.
- Não, apenas o suficiente para embrulhar o Mundo.
O paquistanês olhou-o à matador e comentou com ar desalentado:
- Para esse fim talvez não tenha o suficiente! Mas, sem querer ser indiscreto, para que quer embrulhar o Mundo?
- Sabe, senhor paquistanês, neste amontoado de seres isolados e tristes que é o mundo, quero construir laços suficientes para abraçar toda a humanidade e, com a mensagem, contribuir para agregar pessoas que se sentem sós. Tal como eu.
O paquistanês, devido à sua cultura oriental, não compreendeu a metáfora e as razões que levariam um boi a preocupar-se com o individualismo humano. Mas mesmo assim prometeu ajudá-lo. Com alguma sorte o novelo existente na loja daria para o efeito. Levaram dois anos e três dias a medir, metro por metro, até atingir o tamanho exacto, já contando com os excedentes necessários. A montanha de corda era já tão alto que não cabia na Terra e lembraram-se que o melhor seria arrumá-la no exterior. Colocaram uma extremidade no bico do piriquito amarelo que voou primeiro para o telhado, depois para uma nuvem branca e continuou céu acima até sair da atmosfera, iniciando a volta ao Mundo, numa viagem que demorou um ano e dois dias. Na Terra, o boi e o paquistanês sentados à porta do bazar que ninguém visitava pela desarrumação, alinhavam a corda para que não surgissem atilhos fora do sítio programado.
A vida tem aquela vantagem metafísica de exigir sempre aos seus membros caminhos de redenção. Como nunca dá de mão beijada a felicidade, exceptuando aos loucos, obriga a todos os intervenientes o caminho da angústia para a encontrar. Tal como acontece com os protagonistas desta história. O boi por ser sonhador, o paquistanês pela sua bondade, o piriquito pela generosidade. O sonho, a bondade e a generosidade não acompanham o ritmo do tempo e, com base neles, não se consegue obter o que a maioria identifica como sucesso e bem-aventurança. Ora, enquanto o periquito transportava a corda à volta ao Mundo e o boi e o paquistanês permaneciam à porta do bazar a olhar para o céu, num silêncio tão forte que apenas ouviam o barulho dos seus próprios pensamentos, os três concluíram ao mesmo tempo que o projecto, pelo menos, permitira cimentar amizade entre eles.
Mas a tarefa foi mais complicada do que o previsto. Com enorme dificuldade o periquito amarelo remava contra os ventos, desviava-se de satélites e detritos perdidos no espaço, dos tiros de caçadeira e projécteis de armas de todos os feitios, disparadas de pontos tão distantes que parecia haver guerras em todo o lado. Quanto ao boi e ao paquistanês, o trabalho meticuloso de não deixar enriçar a corda, olhando-a a subir lentamente, originou em ambos dores agudas no pescoço e, a certa altura, um tédio tão forte que desejaram morrer. De bom grado trocariam de funções com o pássaro, pela oportunidade de vislumbrar as cores as paisagens do Mundo, mas sem asas teriam de ficar com os pés assentes na Terra e suportar o tédio da espera.
Quando a corda chegou a todos os pontos, comentou o paquistanês,
- A corda já está colocada, falta dar os nós nos sítios certos, mas onde está o papel de embrulho?
- Não é necessário, não vês este azul lindíssimo, misturado com manchas cinzentas. – o boi apontava para o céu.
- Mas são as nuvens… - retorquiu o paquistanês.
- Assim irá ficar. Procurei outras cores e texturas mas não encontrei nenhumas mais belas.
Os três concordaram. Por determinação precisa do boi, o periquito amarelo deu nós górdios no polo Ártico e no Antártico, laços sobre os Continentes e no final o Mundo parecia uma prenda. Os três, abraçados, riam-se divertidos pelo êxito da empreitada, com a óbvia mensagem da necessidade em encontrar caminhos mais fraternos e solidários.
O problema é que o projecto passou completamente despercebido. Como se perdeu o hábito de olhar o céu e os radares não identificaram a corda que ligava todos os pontos da Terra, ninguém acreditou na história contada pelo paquistanês. Desiludido, fechou a loja e saiu sem destino na companhia dos novos amigos. Quanto à corda, após o embrulho se rasgar – devido a tempestade medonha – desprendeu-se, iniciando a viagem pelo universo com a calma de uma corda de sisal.
4 comentários:
Andamos em voltas rectas
Na mesma esfera,
Onde ao menos nos vemos
Porque o fumo passou.
A chuva no chão revela,
Os olhos por trás.
Há que levar o que restou
E o que o tempo queimou.
Tens fios de mais
a prender-te as cordas,
Mas podes vir amanha,
Acreditar no mesmo Deus
Tens riscos demais,
A estragar-te o quadro.
Se queres vir amanha,
Acreditar no mesmo Deus
Devolve-me os laços.
(Laços, Toranja)
................
Inspirador...
Bjs
As pessoas andam demasiado distraídas (ou preocupadas?) com os pontos negros do universo para se darem ao luxo de repararem em "acessórios". Essas coisas da fantasia, do sonho, da quimera, da utopia não têm lugar nas suas vidas.
Além disso, dá trabalho ser inteligente. Daí a boçalidade ter tomado conta disto.
"Se do céu vem esta chuvinha fininha, um dia pode vir um rio inteiro?"
"Da Terra, não. É pequena. Do Universo, não sei. Não lhe sei o tamanho."
Abraço
Que inveja tenho do periquito amarelo.
Eles tentaram, e amarraram-se os três :)
Se calhar, sobrou alguma corda e um dia destes andamos embrulhados com qualquer outra Terra distante.
Beijo*
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