segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

O Medo do Escuro

Agora que o tempo da festa terminou, cercam-se os touros nos cerrados, apanham-se as canas e guardam-se as rendas, as coroas e os estandartes em sacristias cheias de silêncio. Que alívio! Andava farto de alarido e das faces entusiasmadas pelo feérico som das actividades lúdicas e recreativas. Prefiro a depressão atmosférica às altas pressões, o Inverno ao Verão, a chuva ao sol. Sou depressivo, quase sinistro. O outro lado, lúgubre, cinzento. Um filme a preto e branco. Nada me entusiasma, nada ambiciono, desejo apenas não ser incomodado. E envolto no tempo comum, sem estalidos e sempre com os olhos postos no Inverno que não tarda, espero andar bem até ao Natal. Nessa altura, face às lamúrias de todos quantos gostam de gente, tomo uns sonoríferos e busco paciência até desaparecerem os ecos do Ano Novo. Depois consolo-me com o céu cinzento, a chuva miudinha e o desconforto do corpo perante o mal-estar atmosférico.

Os afectos são simples estratégias de domínio, ferretes de pertença e compromissos de troca em ocasiões propícias. Eu até tenho pruridos de fazer festas a um cão pela resposta receptiva e comunicativa, de rabo a abanar por todos os lados. Não desejo afagos, detesto que se lembrem do meu aniversário, não quero receber convites para qualquer evento social e odeio casamentos. Sou uma personagem com falta de alma, uma sombra de mim próprio. Tão pouco comunicativo que não reconheço a família que me resta, não tenho amigos, toda a gente me detesta pelo mau feitio e falta de tacto em lidar com os outros. E têm razão. Nunca aprendi o prazer de conviver, limito-me ao essencial, a relacionamentos que não comprometam mais do que o estritamente necessário. Já não me lembro de me sentir feliz com alguém perto, ou melhor, já não me lembro quando fui feliz…

O humor é uma faceta ausente da minha personalidade. Na memória não guardo a última gargalhada, nunca ambicionei ter graça e deprime-me o espírito recreativo que reina em todos os estratos sociais e em todos os quadrantes. Parece que o objectivo último da maioria das pessoas é ser jovial, sempre envolvidas em ambiente de comédia, como se o facto fosse suficiente para se ser feliz. E mais deprimente ainda, constatei que, em variadíssimas ocasiões, sou motivo de troça de alguns. Talvez seja a minha forma de vestir, ou expressões sociais nada conformes com expectativas. A verdade é que me sinto o bobo da festa. E não é nada gratificante reconhecer que zombam de nós quando a nossa intenção é passar despercebidos. Para quem procura motivos para se isolar, razões para odiar os outros e fugir deles, não é difícil, basta caminhar na rua e espreitar pela televisão. Através dessas janelas tenho imagens de um mundo que só é meu porque vivo nele, mas não lhe pertenço, nem me atrai. Notícias cheias de crueldades e assassínios e na rua reconheço que a grande maioria não confia em ninguém pelo facto de não se poder confiar em ninguém.

Vivo sozinho numa casa de quatro assoalhadas. Como o espaço mobilado é mínimo, a largueza permite-me caminhar da cozinha para a sala, de lá para os quartos e entrar no corredor onde faço grande parte do trajecto. Quarenta minutos de um hábito antigo que faço às escuras por identificar de forma nítida a presença de todos os obstáculos. Vivo há tanto tempo no silêncio que me é muito difícil suportar ambientes ruidosos e iluminados. Mas se há quem julgue que a solidão é um desaire pessoal, quando imagino o que será viver em grupo julgo ter a melhor parte. Por qualquer gratificação retirada por se viver em conjunto eu poderia dar dez por estar só. Mas não é simples e só é possível à custa de estratégias ferozmente cumpridas. Ter regras rígidas e dominar a situação, são as fundamentais. Ainda antes do sol nascer, limpo a casa de uma ponta a outra para precaver bactérias, meticulosamente recoloco as coisas no seu devido lugar, tomo um pequeno almoço sóbrio de flocos de cereais e vinco as calças e a camisa antes de sair para o escritório. Almoço em casa por desconfiança dos restaurantes e, frequentemente, compro comida macrobiótica por ser mais saudável. O jantar é sóbrio para precaver pesadelos e não bebo álcool, nem cometo excessos seja de que tipo for. Durmo oito horas por dia e por razão alguma perturbaria esta rotina que me alivia de contrariedades físicas.

Não pretendo alimentar intimidades. Ao analisar as pessoas, não encontro razões para as conhecer melhor. Só me trariam problemas e botas sujas em casa. Prefiro assim. Quando preciso de ouvir uma voz, discuto os assuntos do dia-a-dia, - sou sincero, às vezes não é fácil discutir comigo mesmo, - comento as notícias, sempre sob a altivez de um estranho a esta sociedade imperfeita. Como não gosto de futebol ou programas recreativos, a televisão não é um espaço cómodo para sossegar o espírito. Na maioria do tempo afasto as cortinas das janelas, abrigado de molde a ninguém me apanhar desprevenido, e, perseguindo nuvens ou fios de chuva, fantasio com vidas alternativas de viagens longas sem regressos marcados, ou de horizontes iluminados por montanhas tão altas que a neve eterna seja o aconchego do meu desvario. Mas, mesmo nas fantasias, sobram-me sempre motivos para conservar as opções tomadas há muitos anos atrás.

Cumpro todos os meus deveres fiscais, pago as minhas contas e não devo nada a ninguém. Não me lembro de alguma vez ter defraudado alguém ou o Estado em meu benefício. Também não tenho nem procuro relações sexuais. Reconheço a presença do instinto mas a força e a dignidade do homem provém da sua recusa e assumpção plena da racionalidade. Pelo contrário, a grande maioria vê no sexo o Grande Elemento, como se o sentido da vida dependesse de uma simples aritmética de parceiros e cópulas cumpridas. Coitados, quando descobrirem realmente o que poderia ser determinante para alcançar algum vínculo na sua curta vida vão ficar tão decepcionados! Mas a grande depravação moral e de costumes, origem de epidemias, é fácil de constatar. Tal como na empresa onde trabalho, todos aqueles olhares lânguidos e conversas cheias de segundos sentidos não são sinais de cortesia ou estima, mas revelam a perversão reinante.

Quanto à religião não sou crente nem tenho especial enlevo perante qualquer instituição religiosa. O meu humanismo não tolera a existência de qualquer Deus, entidade plena de bondade e sabedoria. Um Deus bom e sábio teria arquitectado um mundo bem diferente e construídos os homens à sua imagem e semelhança. Ora, na humanidade nada existe de divino, mas concentra o que há de mais vil na natureza: mesquinhez, crueldade, vingança e traição. O deus vivente, enquanto ficção da mente humana, não é mais do que a ideia de um ser perfeito por oposição a esta humanidade decadente.

Só há uma privação que me causa dor e saudade. É a ausência de crianças à minha beira. Custa-me admitir, mas só fui feliz lá no fundo do poço que é o meu passado, quando envolto no pó das ruas, corria diariamente atrás de sonhos, de bolas e de fantasias. E as crianças eram tão honestas, tão genuínas, tão fortes nos afectos, tão directas nas opiniões, tão meigas nos sorrisos, tão puras de coração, tão ricas de mensagens. Mas com a minha idade imaginem lá o que diriam se me vissem brincar com elas. Este mundo é muito mau…

2 comentários:

::::: disse...

Não Sei Quantas Almas Tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu?"
Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa
..................
Mais um belo momento deste "cantinho".

Anónimo disse...

Que venha o sol, depois da tempestade.

***

Não fazia ideia que o meu professor de Filosofia escrevia! =|

Aqui fica mais uma leitora.

Beijo*