terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Esquecimento...acho eu.

No mercado, ao amanhecer, encontrei quatro bocas negras tão frescas que ainda se julgavam em alto mar e uns imperadores solenes na pose e vermelhos de raiva pela expulsão, à força, do reino. Sardinhas nem vê-las. Ainda tentei manobras radicais de pesquisa e rastejei por baixo das bancas, para surpresa dos vendedores e dos próprios peixes, mas não encontrei nenhum exemplar para logo à noite. Apenas encarei com umas tripas maduras de um rufia qualquer, uma lula da silva que se fazia de morta, um peixão armado em parvo e umas lapas coladas ao chão como é habitual. Desisti. Cheguei à empresa com um odor estranho e umas nódoas na gravata e na sessão diária de cumprimentos aos executivos e beijos em todas as funcionárias reparei que na maioria surgia escarrapachada a surpresa de tocarem ao de leve um ser marinho, já fora de água há vários dias. Perguntei qualquer coisa circunstancial " têm por aí sal e coentros?" e fitaram-me com trejeitos mal-humorados de quem se envolvera em pesadelos nocturnos. Quanto ao polícia, que com afinco confirmava a honestidade das matrículas dos automóveis estacionados nos corredores, ao apertar-me a mão, num gesto representativo de grandes saudades devido ao feriado no meio, disparou: "ouça lá, que eu saiba, todos nós aqui temos exclusividade!" e rematou com galhofa própria de um ser com autoridade e arma ao cinto. Nada comentei e jurei em silêncio comprar uma cana de pesca à hora do almoço.

Por falhanço na pescaria, comeremos febras e entremeada de porco em fatias debruçadas sobre brasas e se alguém protestar abrimos umas latas de atum e penduramos um bacalhau desmaiado na soleira da porta, numa maresia envolta em odores de óleo alimentar, mas perfeitamente conciliável com produtos semelhantes, despejados por petroleiros e outros compagnons de route, e principal razão de engorda da fauna. Quando hoje se discute a falta de qualidade nos produtos ingeridos, desde os antibióticos na água da torneira, prozacs e ansiolíticos nas carnes e peixes (devido aos distúrbios mentais vividos pela generalidade dos indivíduos de várias espécies), julgo que nos esquecemos da badalhuquice de antigamente, numa sociedade sem frigoríficos e com tantas moscas varejeiras a esvoaçarem como lagartas a multiplicarem-se dentro do que era comestível. E vivia-se, pá, e hoje é o que se vê! Se bem, digo-te, detesto os talhos e as peixarias onde o próprio cortador recebe o dinheiro e dá o troco num gigantesco intercâmbio, rico em proteínas e micróbios de espécies raras e ainda desconhecidas da ciência, promovendo troca de odores, sabores e bactérias de carteira para carteira e bolso para bolso. Nada deve haver de tão complexo na natureza como alimentos de espécies variadas em orgias diárias com metais nobres e alguns menos nobres em troca de mãos!

Somos, deste modo, exemplos magníficos de criaturas vitoriosas, com tantas defesas e estratégias de sobrevivência ganhas ao longo dos milénios que não há porcaria que nos deite abaixo. Mais rápido trememos das canetas devido à porrada psicológica, daquela que não deixa marcas físicas mas que magoa bem fundo. Sentimentais e sensíveis como madalenas arrependidas, com dificuldade em receber críticas e reparos, mesmo aqueles que nos garantem que são úteis para o crescimento individual e aprendizagem futura. Sabemos de cor os direitos individuais e não admitimos palmadas paternas, castigos dos professores, críticas dos chefes, avisos das autoridades policiais, pedidos de silêncio dos animadores das conferências. Temos direitos inalienáveis, como o direito à palavra, o direito à asneira, o direito à reputação, o direito ao equilíbrio saudável de uma cabeça sem traumas. O problema é que o equilíbrio é cada vez mais precário.

E por tudo vamos divertir-nos antes do jantar. A malta é adepta ferrenha das touradas, à corda e sem corda, com cavalos e a pé para os mais modestos e actua no redondel o grande João Mourisco, o tipo mais célebre nestas coisas das investidas. Aliás, há membros do grupo do churrasco que já fizeram grandes pegas, enfrascados, claro, mas com esses actos de bravura no curriculum. Outros pegaram ao furcão com a energia de quem defende a honra dos cornos limpos, outros ainda seguraram na corda da vida e aplacaram cornadas a eles e aos próximos que brincavam com o fogo. Mas vamos vingar-nos, ai isso vamos! Brindaremos à vida como quem não tem mais nenhuma e vamos rir tanto que nos rebolaremos no chão, em piruetas desengonçadas à espera de uma redenção qualquer. A do esquecimento… acho eu.

1 comentário:

Anónimo disse...

Viva a nossa sociedade que, com tantas mariquices, peca nas coisas mais elementares.

Quanto tempo vai levar para mudarmos todos para melhor? Quanto tempo vai levar até sermos coerentes?


Beijo*