segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A crueldade feminina


Desligou o motor e manteve-se dentro do automóvel com o rádio ligado. Nestas alturas de maior intranquilidade de espírito arrependia-se sempre de ter deixado de fumar há anos atrás. Lá fora os arbustos que povoavam o declive vergavam-se ao sopro do vento, mas naquele princípio de noite não havia qualquer sinal de gente nas redondezas. Permaneceria ali de bom grado até que os problemas se resolvessem por si mesmos. Mas o problema era dele, teria de ser ele a resolvê-lo.

Respirou fundo, abriu a porta do automóvel com ímpeto, depois o portão do prédio, a porta do elevador, contou interiormente os números dos andares que se sucediam no visor vermelho e por fim abriu a porta de casa. Invadiu-o o cheiro de comida acabada de fazer e quando colocava a mala no móvel de entrada sentiu os braços do pequenino a rodearem-lhe as costas. Abraçou-o tão forte que até teve medo de o magoar. Depois surgiu a mulher com gestos apressados de quem tem a vida toda para arrumar e com a segurança de quem domina o espaço e o tempo, e, após o beijo ligeiro, virou-lhe as costas, como era hábito. Seguidamente, como se tivesse lembrado de algo importante, voltou-se

- Vieste mais tarde.
- Pois foi, tive uma reunião. Respondeu, enquanto se curvava para se descalçar.
Examinou-o.
- Estás com péssimo aspecto. Aconteceu alguma coisa?
- Não, gaguejou. Entrou no quarto por rotina de se despir das fardas diárias e vestir algo confortável. Depois regressou à cozinha. Foi o último a sentar-se, a sopa já estava nos pratos, e o miúdo com as mãos no peito a olhar para o prato dele com olhar desalentado. Virá agora a sessão de advertências, colheradas à pressão até se esgotar o parentesco, parabéns efusivos quando a tortura terminar, pensou. Seguir-se-á , invariavelmente, a biografia diária exaustiva do filho, o dia escolar, trabalhos de casa, tal como uma acta rigorosa de reunião. Depois, o miúdo pediu licença para sair, olharam-se com sintomas de fatalismo e acenam-lhe afirmativamente.

O silêncio envolveu-os enquanto ela descascava uma maçã. Ele, dissimuladamente, observava-a. Era o momento oportuno, com a certeza de que o seu passado se extinguiria e que o futuro seria tão diferente que não o conseguia antecipar.

“Nem sei como te hei-de dizer, não tenho qualquer desculpa. Mas tenho outra pessoa na minha vida…”, estava ela naquele preciso momento com os talheres na mão e orientou o seu olhar na direcção dele. Os olhos encontraram-se sem se desviarem naquele jogo do empurra que há muito não jogava. As feições dela alteraram-se ligeiramente, os lábios tornavam-se mais finos. Recolocou os talheres na mesa e as mãos em cima das costas da cadeira como para se proteger. Sabia que os olhos dela pousavam mortalmente nele, ganhara o jogo e agora ele explorava a toalha de mesa como se quisesse encontrar um abrigo para a tempestade. A voz saía inalterada, como sempre, um trabalho de mestre em apaziguar a voz na altura das crises.

“Se o confessas é porque já sabes o que queres fazer da tua vida e eu nada tenho que ver com isso. Estou na minha casa, no meu recanto, não quero ir para lado nenhum. Apenas haveria uma remota hipótese de vivermos os quatro juntos - conseguira fazer o tom mais corrosivo que lhe ouvira em doze anos - como julgo que não a colocarás, então o jogo está feito e a conversa terminada. A partir de agora é tudo uma questão de legalidade e sairmos desta comédia com o máximo de civilidade."

Saiu da cozinha deixando tudo como estava. Os pratos, uns em cima dos outros e com restos acumulados, cascas de fruta compondo cornucópias e outros desenhos sem nome, copos com líquidos de várias cores pousados no fundo e a cesta do pão. Apanhara-o de surpresa. Talvez estivesse à espera desta conjuntura, ou então revelava um sangue frio que não lhe reconhecia. Ouvia-a ao longe falar com o miúdo enquanto ele via na televisão um episódio de banda desenhada. O seu tom de voz era semelhante a todos os dias, como se nada de relevante tivesse acontecido. Sentia-se estranho na sua casa, sem local seguro para deambular. Ouviu-os agora na casa de banho, depois uma ordem seca “vai dar um beijinho ao pai” e o pequenito surgiu a correr para dentro dos seus braços e apertou-o outra vez, emocionou-se, mas apenas lhe desejou boa noite com um beijo audível. O menino saiu a correr, a porta do quarto fechou-se.

Um silêncio percorreu toda a casa como uma sombra, enquanto ele se mantinha inerte na mesma cadeira a olhar como que hipnotizado pelos milhares de pontos de luz que se estendiam sem limites para lá da janela. Uma relação de doze anos implodira e no final apenas a necessidade de clarificação, limpar qualquer mancha de dúvida em relação ao futuro. Seriam simples adversários. Levantou-se, arrumou a louça na máquina de lavar, entrou no escritório pé ante pé e pesquisou-o como se quisesse guardar todos os pormenores. Retirou das estantes meia dúzia de livros, quatro cd’s de Keith Jarrett, juntou tudo ao computador portátil e sentou-se no sofá. Mais tempo depois do que habitual, ela apareceu, ignorando-o, ligou a televisão, aninhou-se a um dos cantos do sofá e mudava canais sem qualquer emoção na face. Ele com vontade de esclarecimento.

“Esperei-te só para dizer que lamento. A vida prega partidas, aconteceu tudo sem prévio aviso e já não conseguia viver na mentira. Não foi o que prometemos no dia do casamento? Não exigimos sempre a verdade? Pois aqui está. Mas parece que tu não a queres para nada. A verdade apenas te serve como consolo para me colocares fora da tua vida.”

O silêncio ostensivo e gestos bruscos de não querer continuar a conversa, obrigaram-no a levantar-se, recolheu o material que seleccionara e saiu. Entrou no automóvel, a música era semelhante à que ouvira antes do início da história. Por um momento imaginou que ainda não chegara a casa, encontraria tudo como dantes e a verdade ficaria para depois, talvez quando o pequenino fosse maior de idade. Mas ao seu lado os livros, os cd’s e o portátil eram a prova de nada poderia fazer para recuperar a vida anterior. Mas havia algo que não batia certo. Ela não chorara e as lágrimas compõem as coisas ou, pelo menos, amenizam efeitos. Também não falou do filho e do vazio que iria sentir pela ausência do pai, e talvez nessa altura se poderiam cumprir promessas de reencontros. Sentiu-se defraudado.

Arrancou entrando na noite como quem procura uma referência num espaço infinito, circundou a rotunda e parou no cruzamento sem saber a direcção a tomar. Uns sinais de máximos intermitentes obrigaram-no arrancar sem destino.

3 comentários:

Unknown disse...

Não há dúvida de que é uma forma de crueldade... crueldadezinha, digamos. Porque, meu amigo,crueldade feminina , à séria, não é isto!
Mas nem queiras saber!

Gostei da novela, pelo adensar das trevas que se abatem sobre duas pessoas que se tornaram outras. Sem vestígios das que foram.

Anónimo disse...

A verdadeira crueldade feminina está reservada para as concorrentes. Para os homens há apenas uma greves de zelo e umas vampirizações em pensões de alimentos.

Anónimo disse...

O comentário anónimo reduz as mulheres a uma condição de mesquinhez entre elas, capazes de se matarem, mas preservando os machos das suas investidas. Não concordo