quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A morte ficava-lhe tão bem...


Não estou seguro se naquela tarde tudo aconteceu tal como guardo na memória. Fosse como fosse, pela primeira vez, contactei intimamente com a morte. Tinha sete anos. Não me lembro da sua cara, da sua estatura, da cor dos seus cabelos. Nem o seu nome consigo apanhar no nevoeiro do tempo. Emergem duas situações onde estivemos juntos, com vagas referências dos lugares. A primeira, mais enegrecida, junto a um regato que serpenteava um pomar de macieiras, onde me ensinava a colocar costilhos, armadilhas para apanhar pássaros. A segunda, mais forte e mais real, quando num Domingo o acompanhei ao rio. No caminho de Santa Eufémia, em tarde quente de final de Primavera, mimosas floridas descansavam alguns ramos sobre a estrada. O grupo em algazarra e eu com as pernas bem abertas para não empancar nos raios da bicicleta. Depois, tarde fora, os mais velhos, nus, nadando divertidos, fazendo palhaçadas na água, encharcando os que ficaram nas margens. O final da viagem regressa, cruamente. Uma valente tareia do meu pai por ter saltado sem autorização para o trilho dos adultos arruaceiros e mal comportados. A única verdadeira surra do meu pai.

Exceptuando estes pequenos resíduos pouco mais resta daquele que eu considerei sempre o único amigo adulto da minha infância. Teria uns dezassete anos, o pai, dono de um talho, era conhecido pelo Zé Carniceiro, de porte enorme e bigode farfalhudo e viviam numa casa branca que se alongava num patamar, onde uma latada sustentava videiras e trepadeiras coloridas. Um dia, um alarido enorme foi juntando toda a vizinhança, as pessoas saíam de casa apressadas, fazia lembrar os momentos de frenesim após os terramotos, e no meio do alvoroço compreendi que o meu amigo estava entre a vida e a morte, devido a um acidente de mota nas curvas perigosas do Mondego. Ao fim da tarde confirmou-se o falecimento. Contavam-se várias versões, algumas misteriosas de poderes maléficos e fugas criminosas, mas todas concordavam na velocidade excessiva da moto. Viveu demasiado depressa e morreu à mesma velocidade, opinião escutada nesse dia e em muitas ocasiões posteriores quando o seu nome veio a propósito.

Era de poucas falas. Ao ensinar-me a caçar pássaros com costilhos escuros fê-lo mais com gestos do que com palavras. Não me recordo dele a falar, apenas de ser atencioso e paciente. Mas na época era um rebelde, não encaixava no género de rapaz bem comportado. Não ia à Missa, não frequentava os locais saudáveis da freguesia e durante temporadas desaparecia para lugares incógnitos. Ou talvez seja ficção minha, querendo engalanar a realidade com atributos imaginários. Não sei. Mas a zanga do meu pai por o ter seguido naquela tarde, foi sempre um sinal de que a sua companhia não seria a mais adequada para um garoto ingénuo e educado nas boas práticas e melhores maneiras.

No dia seguinte, logo de manhã, regressei a casa do Zé Carniceiro, já cheia de gente e de prantos. Afinal, também era dono dos meus fantasmas e tinha mágoas para consertar. Com um pano de fundo negro, vultos enegrecidos mais baixos do que no passado, como se o peso do mundo fosse suportado pelas suas cabeças, passavam por mim e nem me reconheciam. Não haveria velório em família, pois o estado desmembrado do corpo desaconselhava cerimónias fúnebres caseiras, ainda mais quando a autópsia interferira na harmonia do corpo. Histórias que percorriam as bocas secas. Entorpecido, avançava indolente pelos corredores, aterrorizado pela visão de um amigo esquartejado.

Às três da tarde missa de corpo presente. Chovia torrencialmente e a igreja abarrotava de gente e de lamentações. Entrei por uma das portas laterais. O caixão no centro da coxia e homens munidos de ferramentas abriam-no sem qualquer emoção especial na face. Aproximei-me vagarosamente, tremia das pernas, mas com a necessidade de olhar. Com vontade tremenda de fugir. Cada vez mais perto. Lá estava, mais bonito, com uma camisa branca, barbeado, numa pose serena e a face sem um único arranhão. Com as mãos postas, parecia um anjo. Afinal, a morte não desfigurava o rosto, pelo contrário, garantia a harmonia, o poiso e o sossego que ele nunca tinha experimentado em vida.

Mas algo não batia certo. No pescoço, por baixo do colarinho, um rego profundo indiciando consequências da autópsia, tal como ouvira em casa dos familiares. No tronco e nas pernas outros traços por onde se encostava o pano em pregas. Caí em mim. Lembrei-me das histórias dos lobos com pele de cordeiro e de fantasmas sem cabeça, ou de cabeças sem corpo que esvoaçavam perdidas sobre cemitérios. Senti-me mal na minha insignificância. Como era possível ter pensado que aquela serenidade correspondia a um sinal benfazejo da morte e não ao tapume do horror que já se propagava pelo corpo todo, artificialmente criado até terminarem as cerimónias fúnebres. Subi o corredor estreito e sentei-me junto ao altar, no lugar das crianças. Com olhar assustado. Nunca mais perdi esse olhar.

Do exterior, ao cessarem as ladainhas, vinham ecos da chuva. A caminho do cemitério, uma multidão em redor do caixão num silêncio abrasador. Lá estava no alto da colina, rodeado de cedros esguios, com escadas íngremes a anteciparem um enorme portão de ferro. Mas não entrei, ao chegar ao portão desci as escadas duas a duas e regressei a casa a correr. E a minha infância alterou-se a partir dessa tarde, desconfiado face ao silêncio e às sombras que povoavam a escuridão e, com a luz apagada, continuei a vê-lo por muito tempo, desmembrado, mas amistoso e paciente.

8 comentários:

Anónimo disse...

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Anónimo disse...

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♥ Guida disse...

Felizmente, só fui a dois funerais. Não vi as pessoas que me eram queridas dentro de um caixão, não tive coragem. E não acredito que a morte lhes ficasse bem, porque fazem muita falta aqui. Fazem muita falta quando me lembro dos sorrisos, das cantigas, dos abraços, das lições, de tudo.

Vi uma pessoa muito importante morrer à minha frente, há quase um ano, e não gostei do que vi.

A morte não fica bem a ninguém.

Beijo*

♥ Guida disse...

Se calhar, deveria ter dito que infelizmente já fui a dois funerais. A morte é tão pesada que não nos permite falar em Felicidade.

Anónimo disse...

Ilheu, try to be at peace...I read exactly of the things you speak yesterday in this global village. It is not ghosts that are haunting you but just some very badly adjusted nasty and evil human beings. You have found in yourself lately something very special, which perhaps has you seeing more than just anyone else...and a greater love of human kind. That is a very special gift. Go to the one that you know in the church, thats God, and tell him all about it...he will give you the strength to feel calm and strong...And when you feel challenged, find him again, and again..you are a good man, and you will get through, to continue that love of the land and the sea and the sky..It's God's world, it does not belong to anyone in human form....Be at peace my friend..

Anónimo disse...

ena, este post colou-me do início ao fim! Eu cá nunca fui a nenhum funeral. Já poderia ter ido, faz-me imensa curiosidade, mas estar ali a ver alguém que já fez tanto mas agora não faz nada... Enfim

[belo título!]