Subo a serra a passo firme. O sol governa o horizonte sem qualquer estorvo, as plantas faíscam raios de luz com o movimento das folhas e, pela primeira vez em muitos meses, recebo o seu calor como uma carícia prolongada. Algumas espécies vegetais vão ficando para trás como se não conseguissem suportar o peso da caminhada. Agora, apenas gramíneas me acompanham, rasteiras e inertes. Do lado esquerdo, a imensidão do vale, montes de um lado e do outro, simétricos e de linhas perfeitas como uma grande valeira de um rio misterioso, do lado direito a escuridão do pasto após uma queimada de Outono, com o cheiro da cinza a trazer memórias de lareiras de infância. O solo e ramos negros como se o mal tivesse pintado a encosta de tons nostálgicos e estéreis…
Depois de passar o moinho abandonado, invadido por silvas, guardiãs armadas que espreitam à porta, a subida acentua-se e cada vez mais sinto o vento a rodear-me, como lobos a escoltarem a presa. Deixei de ouvir os meus passos e ouço apenas os silvos que levantam a poeira onde tropeço. Por vezes, deixo de ver o trilho, escondido por baixo da vegetação, mas sei que o cimo da montanha continua por cima da minha cabeça, pendurado no ar. Com maior ou menor dificuldade chegarei ao cume. Parece tão perto…
A solidão arranha-me a alma da mesma forma que o vento me arranca a pele. Não há tortura física que me liberte deste mal que me reduz à minha insignificância metafísica. Posso esquecê-la, mas não consigo expulsá-la. Resolvê-la. Mesmo que um ruído ensurdecedor a esconda em meia-luz, virá ao cimo sempre que sonho com aquilo que sou. É nestes momentos de um isolamento extremo, quando o meu íntimo se torna barulhento - o ritmo acelerado da respiração e o eco profundo das palavras - que tenho a certeza de que não pertenço aqui, a este chão arenoso e seco, esventrado por estrias profundas de chuvas de outros Invernos. Sou incapaz de criar vínculos suficientemente fortes para forjar a minha pertença à terra. Vivo e morrerei fora de chão familiar.
Na aldeia da minha infância apenas resistem fantasmas de pessoas que outrora por lá andaram e as cidades transformaram-se num mar de gente sem nome, tropeçando uns nos outros, em movimentos pendulares como as ondas, perdidos e adormecidos. No final, morre-se tão incógnito como se foi em vida. Os cemitérios comungam do cimento espalhado por todas as clareiras, despercebidos na paisagem, colados a outros muros do mesmo tamanho que preservam poderes terrenos, e as fragrâncias dos corpos cremados indiferenciam-se dos fumos dos escapes e vapores expulsos pelas chaminés. A morte e a vida deambulam por locais estranhos, impessoais, sem comunicação com qualquer estreiteza. Levar os mortos para o lugar dos antepassados é o esforço simbólico para que o atilho perdido renasça com o cruzamento de seivas familiares, pela proximidade dos ossos que comungam de histórias longas de séculos. Mas a verdade é que não há lugar onde se repouse porque somos todos estrangeiros. Não sei de onde vimos, a vida é curta demais para ter acesso a todos os segredos.
Mas a escalada fornece vestígios dessa minha não-pertença, porque quanto mais me aproximo do cume menos vontade tenho de regressar. Por isso, meu amor, acomodas-me e sem ti não saberia o que fazer com a minha própria dissolução. Apesar de não ser a melhor razão, é uma boa razão para amar. Sem ti, seria impossível sobreviver a este espaço desguarnecido, seria inconcebível o peso das noites cavadas por silvos do vento que agora tentam amarrar-me ao cimo da montanha. Sem ti, o frio que me faz ter pesadelos e tossir a noite inteira forjaria uma aridez no tempo semelhante à vegetação rasteira e pobre do alto desta serrania.
1 comentário:
"(...) a vida é curta demais para ter acesso a todos os segredos."
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Lindo...
Distante, mas não ausente!
Beijo
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