quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O teatro e a vida...


Tenho quase a certeza que sabias que ao passar por ti o meu coração acelerava como um louco e que ao ver-te compunha uma personagem com gestos ríspidos como se tivesse uma doença nervosa. Tenho quase a certeza que no teu íntimo tinhas pena de mim quando arriscava uma conversa séria e inteligente e me escapavam apenas banalidades e recapitulações, prova evidente da minha infantilidade. Sabias que, mais cedo ou mais tarde, teria de expulsar aquele monstro que me corroía por dentro e saberias o que dizer por teres imaginado a cena, pincelada por pincelada.

Já sem forças para resguardar tanta energia desperdiçada em futilidades e viagens sem nexo, abordei-te naquele Domingo e abri a alma de uma forma tão crua que, em vez de testemunhar um afecto doce e acolhedor, parecia estar a despejar um fardo para cima de camioneta vazia. Falava da paixão como se fosse um cancro, algo tão disforme que ninguém poderia aceitar de mão beijada. É estranho, mas ao comentarmos o amor por alguém é como um mal que nos possuiu. Algo que preferíamos não ter e nos ameaça… Deixaste-me falar e repetias em voz baixa aquilo que ia dizendo como se adivinhasses palavra por palavra o meu monólogo, ao som da chuva que se abatia em cima do abrigo que eu segurava com as mãos geladas e olhavas para mim com a pena que já sentiras muito antes da conversa acontecer. Depois de um curto silêncio, - para não ser tão evidente a cena trabalhada e ensaiada - fizeste um belo discurso cadenciado, artifício que me fez lembrar os truques dos ilusionistas. Estiveste bem. Não me achincalhaste, nem feriste o meu orgulho, apenas aquele desprezo bem medido que não deixa margem de dúvida, mas numa linguagem meiga e sem rancor. Revelaste, mentindo, que tinhas sido apanhada de surpresa - logo eu, um tipo simpático que podia ter outras - e até cometeste inconfidência de saberes de uma pessoa que sonhava e que sofria por mim, tal como eu acabara de revelar sofrer por ti. A certa altura julguei que me irias aconselhar trocar de paixão como quem troca de carro usado, mas apenas ficaste no início do raciocínio sem tirares as devidas consequências. Achei bem. E no fim do que poderia ter sido apenas um simples não, ou um não com desculpas, atestaste o orgulho de seres o meu objecto de desejo, apesar de não ser a altura certa, não ser o tempo certo para nós.

E assim foi. Não repeti razões nem implorei reflexões mais cuidadas e caminhei ruela acima com os pés encharcados no meio da água que continuava a cair como nos pesadelos. Lembro-me que desisti de me abrigar na protecção que apenas preservava uma parte mínima de mim e envolvi-me na chuva como quem mergulha no rio. Em casa, à entrada, despi-me para não encharcar o corredor. O frio que rodeava a minha nudez fez-me sentir só como uma criança abandonada e tomei um duche longo e quente que causou um nevoeiro tão denso na casa de banho que no espelho não me reencontrei, apenas uma névoa espessa que não deixava antever qualquer realidade e permitia escrever com o dedo textos vazios de esperança. Deitei-me embrulhado em cobertores de lã ouvindo a chuva que lá fora continuava a tombar, levando consigo palavras, lágrimas e passos dados e ouvi o sino a dar as horas através de badaladas que iam aumentando na medida que a noite se ausentava devagarinho.

De manhã, senti-me livre como uma gaivota. Ao afastar-me de qualquer percurso teu, amadureci mais do que em todo o tempo que já tinha passado. A dor que sentia já não tinha origem na tua recusa de mim, mas na vida que dá e tira, a seu bel-prazer, aquilo que nos poderia fazer feliz. Percebi que nada poderemos esperar, apenas limitar-nos àquilo que emerge da vida e através dele começar, começar, recomeçar e tentar não desistir. Assim, soube que não era a tua falta que me fazia infeliz, mas o meu próprio vazio que nunca poderia preencher. Julgarmos que temos a felicidade logo ali à mão, tão perto como se fosse uma coisa, matéria quente que se pode comprar com um pequeno esforço, é tão cruel como de imediato percebermos que não é senão uma miragem criada pela nossa ânsia em trocar as voltas à banalidade da própria vida.

Após tantos anos, hoje fui procurar aquela noite e, de novo, sentei-me em frente do espelho embaciado pelo nevoeiro. Amontoaram-se memórias porque te encontrei, sem te procurar. Tudo aconteceu após um corredor comprido, sombrio, uma porta aberta, tal como uma boca de cena, e logo fui envolvido num cenário iluminado por meia dúzia de janelas, uns sofás cor de carmim espalhados como num bar nocturno e uns vasos espaçados com buganvílias, umas róseas, outras vermelhas e ainda outras alaranjadas. No meio de outros actores, encontrei os teus olhos em diálogo e pesquisando intrusos. Eu. E o teu semblante amanhecido pelo sorriso veio dar-me a mão e abrigaste-te debaixo da minha sombra como naquela noite de chuva medonha e desfizeste culpas e histórias mal alinhavadas pelo nosso andar errante. Concluí que nada do passado restou em nós, nenhum rancor, nenhuma culpa, porque os dois compreendemos que a felicidade não poderia ser consequência de uma noite de tempestade em que se representaram peças de fingimento bem alinhavadas. Apenas gostei de te ver, sem qualquer mágoa por não te ter tido. Limitei-me ao prazer de te olhar e sentir um brilho vindo de ti. Não falámos do passado, nem do futuro, apenas trocámos uns textos escrevinhados em folhas A4 para decorar e representar na próxima vez que os nossos olhos se encontrem, quando uma porta aberta invente cenários e um sorriso transforme o presente num dom que se procura.

1 comentário:

Anónimo disse...

ola Ilheu,
I hope I am translating correctly...I enjoy your writings..and your conclusion,I think you say "once we learn to like and care for ourselves properly, we find our inner core ...and can then look out beyond ourselves to others in a better and different way?"...methinks the answer to many of our ills....Take care now
(moongirl)