Não era bonita na verdadeira acepção da palavra, mas a presença altiva e o bom gosto no vestir acumulavam o bastante para se tornar deslumbrante à vista. Ele, com aparência desleixada e cultivada a rigor, desenvolvera aquela pose distante que as mulheres identificavam como prenúncio de mistérios por desvendar e os relacionamentos surgiam mais por insistência delas do que por entusiasmo do próprio.
Após um namoro fastidioso, casaram numa ermida branca no cimo da serra, ela considerando que o casamento se resumia ao enamoramento sem ter em conta as exigências da vida em comum e ele com a esperança que garantiria o sentido da vida pelo simples facto de dividir a renda com um vizinho íntimo. Mas, pouco tempo depois, ao chegar a casa à noite, atormentado pela descompostura constante de alunos tumultuosos e encontrar a casa numa confusão de roupas e louças de várias cores e o frigorífico vazio, começou a suspeitar da bondade da opção feita. Ambos detestavam a cozinha e a ementa diária limitava-se a sanduíches e a encomendas no restaurante da esquina. E ele e o pobre do cão, esquecido o dia inteiro, apesar de ter sido adoptado por capricho dela, saíam sob candeeiros mortiços e ruas vazias até se aliviarem das prisões diárias.
Numa noite de insónias, um rebate de consciência retirou-o do marasmo e concluiu definitivamente que o casamento fora um erro infantil. Saiu de casa deixando um simples bilhete em cima da cómoda da entrada “foi tudo um equívoco, não posso prolongá-lo por mais tempo. Desejo-te o melhor”. No dia seguinte ela releu e com umas lágrimas deixou-o ir sem mais delongas. Foi com alguma amargura pelo fracasso, mas liberto de constrangimentos, que regressou à rotina diária de professor e à esplanada nos fins de tarde, para espairecer dos dias bolorentos. Ela refugiou-se na casa paterna, procurando abrigo para a melancolia de uma vida sem rumo. Após uns meses perdida, ouvindo recriminações constantes do pai pela atitude imatura e irresponsável, decidiu uma mudança radical de vida, encontrar emprego e viver sozinha. Na família ninguém levou a sério as advertências, pois mimada pela mãe e por avós afogados em náuseas e fastios, dificilmente tomaria nos seus ombros o caminho da autonomia.
Passou o tempo necessário à resolução dos impasses mútuos. Ele regressou à vida de casado com uma colega que fora colocada na sua escola e se encontrava desenraizada na ilha tal como ele. Mas a situação alterara-se. Refeições à hora, casa arrumada e perfumada, o cão com melhor tratamento que ele próprio, as finanças domésticas geridas com mão de ferro. Quanto a ela, contra todos os maus agouros, cumpriu promessas de mudança. Aceitou um emprego como secretária de uma empresa e aos poucos, as regras transformaram-na numa pessoa cheia de planos, mais simpática e prestável. Passou por algumas relações que terminaram sem consequência, e num pequeno apartamento inventou o seu canto, decorou-o de forma simples mas harmoniosa, eliminando as intenções da família de a ter debaixo de olho e por controlo remoto.
Entretanto, mais alguns anos passaram. Ambos saíram da Ilha por razões bem diferentes. Após mais um divórcio concorreu para uma escola do Continente, e ela partiu para a Guiné-Bissau como auxiliar de enfermagem, a convite dos Médicos sem Fronteiras. Soube mais tarde que a família muito preocupada ainda lhe pediu que reconsiderasse, oferecendo-lhe casa e uma renda sem quaisquer contrapartidas. Mas ela recusou.
Como por milagre, num final de um dia invernoso, reencontraram-se num Centro Comercial, em Lisboa. Numa livraria, reparou numa mulher sorridente que o fitava com insistência. Atento a um cortejo demasiado insinuante, desvendou por trás do sorriso a mulher com quem casara dezassete anos antes. Do embaraço saiu um olá tímido, ela bastante mais franca e com gestos mais afectuosos, e, após cumprimentos formais, convidou-a para um café. Notava nela uma estranha força que nunca lhe reconhecera e um entusiasmo interior que ocupara o lugar do tédio e ausência de objectivos de outros tempos. Falou-lhe longamente dos projectos na área social e na intenção de regressar a África, proximamente, para prosseguir o trabalho de assistência médica. Com muitos pormenores contou-lhe os pesadelos que enfrentou, desde a falta crónica de electricidade e de pão, a humidade e os mosquitos, um internamento devido ao paludismo, mas também a alegria imensa que sentiu ao serviço em prol dos mais desesperados. As palavras saíam serenas como chuva miudinha e ele embalado sorria, como se o seu papel se reduzisse a um mero espectador de um filme. A certa altura, o passado veio à baila, ela pediu desculpa por aquele tempo atrapalhado de imberbe irresponsável e ele com a cabeça fazia meneios de concordância, mas desvalorizando o assunto com gestos de encolha dos ombros.
Depois refugiaram-se num bar na Avenida 24 de Julho e a noite passou apressada, contando-se histórias, em vez de horas. Arrumaram tudo como querendo limpar os pecados, numa espécie de redenção final. Saíram para a rua já o movimento do trânsito anunciava o acordar próximo da cidade. Continuava a chover de forma compacta e, sem qualquer resguardo, correram para o automóvel. No interior, sacudiram com as mãos a água concentrada nas roupas e perceberam os evidentes sinais de que o cansaço se apoderara deles como um embrulho. Em silêncio, embrenhou-se no cinzento escuro da cidade, enquanto ela se aconchegava no banco como querendo adormecer. Com o ruído do pára-brisas em movimento acelerado em pano de fundo, sentia-se encharcado, atordoado por horas de ruído e de luzes e com um vazio tão forte que julgou que iria vomitar. Não se lembrava de nenhum projecto luminoso que tivesse integrado e concluiu que todas as opções da sua vida tinham o fracasso como único roteiro. Quando parou o automóvel, de imediato, viu sobre si os olhos ensonados e escuros dela. Ela aprumou-se e com um beijo leve selou as despedidas. Já com a porta entreaberta, perguntou-lhe se podia ficar com o contacto e ela sem responder escreveu o número num talão de estacionamento que descobriu em cima do tablier. Saiu sem pressa. Abriu o vidro, ela voltou-se para trás com a chuva a ensopar-lhe o cabelo e com um leve sorriso, enquanto ele quase gritava que há muito não se sentia tão vivo como naquela noite. Fez-lhe um leve aceno, hesitando, regressou ao carro que deitava fumo cinzento pelo escape. Aproximou-se tanto que ele reconheceu odores fechados há muito em baús e com uma calma adocicada pelo dormitar breve da viagem segredou-lhe: ouve, não me telefones, por favor. Temos de acatar uma regra básica da vida. Nunca, mas nunca devemos regressar onde fomos infelizes. E retomou o caminho debaixo daquela chuva obstinada e dura até desaparecer dentro do automóvel.
Após um namoro fastidioso, casaram numa ermida branca no cimo da serra, ela considerando que o casamento se resumia ao enamoramento sem ter em conta as exigências da vida em comum e ele com a esperança que garantiria o sentido da vida pelo simples facto de dividir a renda com um vizinho íntimo. Mas, pouco tempo depois, ao chegar a casa à noite, atormentado pela descompostura constante de alunos tumultuosos e encontrar a casa numa confusão de roupas e louças de várias cores e o frigorífico vazio, começou a suspeitar da bondade da opção feita. Ambos detestavam a cozinha e a ementa diária limitava-se a sanduíches e a encomendas no restaurante da esquina. E ele e o pobre do cão, esquecido o dia inteiro, apesar de ter sido adoptado por capricho dela, saíam sob candeeiros mortiços e ruas vazias até se aliviarem das prisões diárias.
Numa noite de insónias, um rebate de consciência retirou-o do marasmo e concluiu definitivamente que o casamento fora um erro infantil. Saiu de casa deixando um simples bilhete em cima da cómoda da entrada “foi tudo um equívoco, não posso prolongá-lo por mais tempo. Desejo-te o melhor”. No dia seguinte ela releu e com umas lágrimas deixou-o ir sem mais delongas. Foi com alguma amargura pelo fracasso, mas liberto de constrangimentos, que regressou à rotina diária de professor e à esplanada nos fins de tarde, para espairecer dos dias bolorentos. Ela refugiou-se na casa paterna, procurando abrigo para a melancolia de uma vida sem rumo. Após uns meses perdida, ouvindo recriminações constantes do pai pela atitude imatura e irresponsável, decidiu uma mudança radical de vida, encontrar emprego e viver sozinha. Na família ninguém levou a sério as advertências, pois mimada pela mãe e por avós afogados em náuseas e fastios, dificilmente tomaria nos seus ombros o caminho da autonomia.
Passou o tempo necessário à resolução dos impasses mútuos. Ele regressou à vida de casado com uma colega que fora colocada na sua escola e se encontrava desenraizada na ilha tal como ele. Mas a situação alterara-se. Refeições à hora, casa arrumada e perfumada, o cão com melhor tratamento que ele próprio, as finanças domésticas geridas com mão de ferro. Quanto a ela, contra todos os maus agouros, cumpriu promessas de mudança. Aceitou um emprego como secretária de uma empresa e aos poucos, as regras transformaram-na numa pessoa cheia de planos, mais simpática e prestável. Passou por algumas relações que terminaram sem consequência, e num pequeno apartamento inventou o seu canto, decorou-o de forma simples mas harmoniosa, eliminando as intenções da família de a ter debaixo de olho e por controlo remoto.
Entretanto, mais alguns anos passaram. Ambos saíram da Ilha por razões bem diferentes. Após mais um divórcio concorreu para uma escola do Continente, e ela partiu para a Guiné-Bissau como auxiliar de enfermagem, a convite dos Médicos sem Fronteiras. Soube mais tarde que a família muito preocupada ainda lhe pediu que reconsiderasse, oferecendo-lhe casa e uma renda sem quaisquer contrapartidas. Mas ela recusou.
Como por milagre, num final de um dia invernoso, reencontraram-se num Centro Comercial, em Lisboa. Numa livraria, reparou numa mulher sorridente que o fitava com insistência. Atento a um cortejo demasiado insinuante, desvendou por trás do sorriso a mulher com quem casara dezassete anos antes. Do embaraço saiu um olá tímido, ela bastante mais franca e com gestos mais afectuosos, e, após cumprimentos formais, convidou-a para um café. Notava nela uma estranha força que nunca lhe reconhecera e um entusiasmo interior que ocupara o lugar do tédio e ausência de objectivos de outros tempos. Falou-lhe longamente dos projectos na área social e na intenção de regressar a África, proximamente, para prosseguir o trabalho de assistência médica. Com muitos pormenores contou-lhe os pesadelos que enfrentou, desde a falta crónica de electricidade e de pão, a humidade e os mosquitos, um internamento devido ao paludismo, mas também a alegria imensa que sentiu ao serviço em prol dos mais desesperados. As palavras saíam serenas como chuva miudinha e ele embalado sorria, como se o seu papel se reduzisse a um mero espectador de um filme. A certa altura, o passado veio à baila, ela pediu desculpa por aquele tempo atrapalhado de imberbe irresponsável e ele com a cabeça fazia meneios de concordância, mas desvalorizando o assunto com gestos de encolha dos ombros.
Depois refugiaram-se num bar na Avenida 24 de Julho e a noite passou apressada, contando-se histórias, em vez de horas. Arrumaram tudo como querendo limpar os pecados, numa espécie de redenção final. Saíram para a rua já o movimento do trânsito anunciava o acordar próximo da cidade. Continuava a chover de forma compacta e, sem qualquer resguardo, correram para o automóvel. No interior, sacudiram com as mãos a água concentrada nas roupas e perceberam os evidentes sinais de que o cansaço se apoderara deles como um embrulho. Em silêncio, embrenhou-se no cinzento escuro da cidade, enquanto ela se aconchegava no banco como querendo adormecer. Com o ruído do pára-brisas em movimento acelerado em pano de fundo, sentia-se encharcado, atordoado por horas de ruído e de luzes e com um vazio tão forte que julgou que iria vomitar. Não se lembrava de nenhum projecto luminoso que tivesse integrado e concluiu que todas as opções da sua vida tinham o fracasso como único roteiro. Quando parou o automóvel, de imediato, viu sobre si os olhos ensonados e escuros dela. Ela aprumou-se e com um beijo leve selou as despedidas. Já com a porta entreaberta, perguntou-lhe se podia ficar com o contacto e ela sem responder escreveu o número num talão de estacionamento que descobriu em cima do tablier. Saiu sem pressa. Abriu o vidro, ela voltou-se para trás com a chuva a ensopar-lhe o cabelo e com um leve sorriso, enquanto ele quase gritava que há muito não se sentia tão vivo como naquela noite. Fez-lhe um leve aceno, hesitando, regressou ao carro que deitava fumo cinzento pelo escape. Aproximou-se tanto que ele reconheceu odores fechados há muito em baús e com uma calma adocicada pelo dormitar breve da viagem segredou-lhe: ouve, não me telefones, por favor. Temos de acatar uma regra básica da vida. Nunca, mas nunca devemos regressar onde fomos infelizes. E retomou o caminho debaixo daquela chuva obstinada e dura até desaparecer dentro do automóvel.