domingo, 28 de setembro de 2008

E a quietude chegou ao fim da noite...


Não era bonita na verdadeira acepção da palavra, mas a presença altiva e o bom gosto no vestir acumulavam o bastante para se tornar deslumbrante à vista. Ele, com aparência desleixada e cultivada a rigor, desenvolvera aquela pose distante que as mulheres identificavam como prenúncio de mistérios por desvendar e os relacionamentos surgiam mais por insistência delas do que por entusiasmo do próprio.

Após um namoro fastidioso, casaram numa ermida branca no cimo da serra, ela considerando que o casamento se resumia ao enamoramento sem ter em conta as exigências da vida em comum e ele com a esperança que garantiria o sentido da vida pelo simples facto de dividir a renda com um vizinho íntimo. Mas, pouco tempo depois, ao chegar a casa à noite, atormentado pela descompostura constante de alunos tumultuosos e encontrar a casa numa confusão de roupas e louças de várias cores e o frigorífico vazio, começou a suspeitar da bondade da opção feita. Ambos detestavam a cozinha e a ementa diária limitava-se a sanduíches e a encomendas no restaurante da esquina. E ele e o pobre do cão, esquecido o dia inteiro, apesar de ter sido adoptado por capricho dela, saíam sob candeeiros mortiços e ruas vazias até se aliviarem das prisões diárias.

Numa noite de insónias, um rebate de consciência retirou-o do marasmo e concluiu definitivamente que o casamento fora um erro infantil. Saiu de casa deixando um simples bilhete em cima da cómoda da entrada “foi tudo um equívoco, não posso prolongá-lo por mais tempo. Desejo-te o melhor”. No dia seguinte ela releu e com umas lágrimas deixou-o ir sem mais delongas. Foi com alguma amargura pelo fracasso, mas liberto de constrangimentos, que regressou à rotina diária de professor e à esplanada nos fins de tarde, para espairecer dos dias bolorentos. Ela refugiou-se na casa paterna, procurando abrigo para a melancolia de uma vida sem rumo. Após uns meses perdida, ouvindo recriminações constantes do pai pela atitude imatura e irresponsável, decidiu uma mudança radical de vida, encontrar emprego e viver sozinha. Na família ninguém levou a sério as advertências, pois mimada pela mãe e por avós afogados em náuseas e fastios, dificilmente tomaria nos seus ombros o caminho da autonomia.

Passou o tempo necessário à resolução dos impasses mútuos. Ele regressou à vida de casado com uma colega que fora colocada na sua escola e se encontrava desenraizada na ilha tal como ele. Mas a situação alterara-se. Refeições à hora, casa arrumada e perfumada, o cão com melhor tratamento que ele próprio, as finanças domésticas geridas com mão de ferro. Quanto a ela, contra todos os maus agouros, cumpriu promessas de mudança. Aceitou um emprego como secretária de uma empresa e aos poucos, as regras transformaram-na numa pessoa cheia de planos, mais simpática e prestável. Passou por algumas relações que terminaram sem consequência, e num pequeno apartamento inventou o seu canto, decorou-o de forma simples mas harmoniosa, eliminando as intenções da família de a ter debaixo de olho e por controlo remoto.

Entretanto, mais alguns anos passaram. Ambos saíram da Ilha por razões bem diferentes. Após mais um divórcio concorreu para uma escola do Continente, e ela partiu para a Guiné-Bissau como auxiliar de enfermagem, a convite dos Médicos sem Fronteiras. Soube mais tarde que a família muito preocupada ainda lhe pediu que reconsiderasse, oferecendo-lhe casa e uma renda sem quaisquer contrapartidas. Mas ela recusou.

Como por milagre, num final de um dia invernoso, reencontraram-se num Centro Comercial, em Lisboa. Numa livraria, reparou numa mulher sorridente que o fitava com insistência. Atento a um cortejo demasiado insinuante, desvendou por trás do sorriso a mulher com quem casara dezassete anos antes. Do embaraço saiu um olá tímido, ela bastante mais franca e com gestos mais afectuosos, e, após cumprimentos formais, convidou-a para um café. Notava nela uma estranha força que nunca lhe reconhecera e um entusiasmo interior que ocupara o lugar do tédio e ausência de objectivos de outros tempos. Falou-lhe longamente dos projectos na área social e na intenção de regressar a África, proximamente, para prosseguir o trabalho de assistência médica. Com muitos pormenores contou-lhe os pesadelos que enfrentou, desde a falta crónica de electricidade e de pão, a humidade e os mosquitos, um internamento devido ao paludismo, mas também a alegria imensa que sentiu ao serviço em prol dos mais desesperados. As palavras saíam serenas como chuva miudinha e ele embalado sorria, como se o seu papel se reduzisse a um mero espectador de um filme. A certa altura, o passado veio à baila, ela pediu desculpa por aquele tempo atrapalhado de imberbe irresponsável e ele com a cabeça fazia meneios de concordância, mas desvalorizando o assunto com gestos de encolha dos ombros.

Depois refugiaram-se num bar na Avenida 24 de Julho e a noite passou apressada, contando-se histórias, em vez de horas. Arrumaram tudo como querendo limpar os pecados, numa espécie de redenção final. Saíram para a rua já o movimento do trânsito anunciava o acordar próximo da cidade. Continuava a chover de forma compacta e, sem qualquer resguardo, correram para o automóvel. No interior, sacudiram com as mãos a água concentrada nas roupas e perceberam os evidentes sinais de que o cansaço se apoderara deles como um embrulho. Em silêncio, embrenhou-se no cinzento escuro da cidade, enquanto ela se aconchegava no banco como querendo adormecer. Com o ruído do pára-brisas em movimento acelerado em pano de fundo, sentia-se encharcado, atordoado por horas de ruído e de luzes e com um vazio tão forte que julgou que iria vomitar. Não se lembrava de nenhum projecto luminoso que tivesse integrado e concluiu que todas as opções da sua vida tinham o fracasso como único roteiro. Quando parou o automóvel, de imediato, viu sobre si os olhos ensonados e escuros dela. Ela aprumou-se e com um beijo leve selou as despedidas. Já com a porta entreaberta, perguntou-lhe se podia ficar com o contacto e ela sem responder escreveu o número num talão de estacionamento que descobriu em cima do tablier.
Saiu sem pressa. Abriu o vidro, ela voltou-se para trás com a chuva a ensopar-lhe o cabelo e com um leve sorriso, enquanto ele quase gritava que há muito não se sentia tão vivo como naquela noite. Fez-lhe um leve aceno, hesitando, regressou ao carro que deitava fumo cinzento pelo escape. Aproximou-se tanto que ele reconheceu odores fechados há muito em baús e com uma calma adocicada pelo dormitar breve da viagem segredou-lhe: ouve, não me telefones, por favor. Temos de acatar uma regra básica da vida. Nunca, mas nunca devemos regressar onde fomos infelizes. E retomou o caminho debaixo daquela chuva obstinada e dura até desaparecer dentro do automóvel.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

No Fundo...



Acabou mesmo agora de entrar. Fiz de conta que não ouvi a chave a rodar na fechadura e permaneci imóvel na cozinha. Chamou o meu nome e mantive-me expectante e só. Olhei lá para fora e reconheci perfeitamente pormenores de um horizonte gasto por tanto uso, a serra esventrada por telhados vermelhos, mais perto a escola dos miúdos barulhentos, além a desordem de casas, ruas e chãos secos. As coisas não andam bem cá em casa. Não porque algum de nós tenha qualquer culpa. Andam mal porque a vida nos infesta a morada de enfermidades e falta o fármaco para nos tornarmos imunes ao caos. Andava tudo bem até há pouco tempo, se querem saber. Tínhamos tantos projectos como um gabinete de arquitectura e tudo caminhava como se o tempo fosse um carril e a família um vagão de comboio com paragens premeditadas. Sabíamos o que queríamos fazer daqui a três, quatro ou mais anos, os destinos das viagens traçados com a rigidez de uma equação matemática, os filhos loirinhos já com os nomes e tudo. Agora não, perdemos o futuro como quem perde as chaves de casa e teremos de encontrar uma nova fechadura que nos dê acesso a uma nova realidade.

Não se pense que tenho qualquer responsabilidade no assunto. Aliás, tentei sempre desdramatizar a situação. Reafirmo diariamente a nossa capacidade para construirmos um futuro liberto desta náusea que nos vai consumindo, assegurando que reencontraremos o caminho. Mas ele faz de conta que não ouve. A esperança só tem sentido quando já temos na mão parte da solução. Até agora não temos coisa alguma. E devido à espera em frente da televisão e com as mãos alisando os cabelos, envelheceu tanto em poucos meses que parece que ficou para trás. Estupidamente, recordei a história dos gémeos de Einstein. O que ficava na estação do comboio envelhecia, ao contrário daquele que se metia na geringonça e, à velocidade da luz, dava reviravoltas ao universo. Ele deixou-se ficar na estação. Sem ter culpa, claro.

Os problemas começaram há cerca de seis meses, quando ficou desempregado. Nos primeiros dias, após o choque, decorreu um período envolto numa jovialidade quase constrangedora. Parecia que andávamos em festa, tal era a quebra do ritmo, a leveza dos horários e o tempo que sobejava para tudo, para nós. Não sei se era uma estratégia inconsciente para nos esquecermos do infortúnio, se julgámos mesmo que era o início de um tempo novo liberto de qualquer plano que nos limitasse os movimentos e os sonhos. Mas a sucessão dos dias rapidamente mostrou que esse clima engalanado pelo entusiasmo tinha sido uma ilusão. E julgo que nenhuma família está preparada para se reequilibrar quando um dos membros se encontra no fio da navalha. Não há remédio para uma angústia que se vai amontoando como o lixo nos caixotes. A certa altura os sacos já são colocados no exterior porque já não cabem lá dentro.

O som do meu nome vinha agora do corredor. Sim, estou na cozinha, respondi. E ao entrar, desculpa, não te ouvi, menti. Entrou, a barba por fazer, mais cabelos brancos que ontem, pelo menos pareceu-me. Toca-me no braço como um pequeno afago e senta-se à minha frente com as mãos na testa. Mantenho-me imóvel e muda. Parece que chora ou pelo menos emite uns sons misteriosos. A certa altura, retira as mãos do rosto, fixa-me nos olhos durante uns segundos como procurando palavras, ou sentidos, ou simplesmente compreensão: - ando tão perdido que mesmo ao chegar a casa, algo no meu íntimo impele-me para que continue a andar, sempre em frente, até encontrar o meu lugar.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

O Homem-Gelo



Desde que foste embora não me lembro de sorrir. Mesmo com as patifarias do Ernesto, aquele gato manhoso que trouxeste no Natal, não consigo reproduzir o movimento ligeiro e silencioso da boca e dos olhos que represente contentamento. No entanto, apesar da estranheza da tua partida, e após um tempo impreciso de mágoa, encontro-me agora naquele estado indolor, talvez o mais próximo da ventura budista: não sofro porque nada desejo, nada procuro, nada quero. Não me sinto infeliz, sinto-me vazio. Ao saíres de casa levaste contigo aquela parte de mim que se preocupava com os outros, que se sentia enquadrado no mundo, que tinha projectos. Hoje vivo encarcerado em mim sem pretender inventar bengalas exteriores que me amparem na caminhada.

Soube que tens alguém novo na tua vida que te completa e te faz feliz. E se não me surpreende o teu novo estado de espírito, a ideia de complemento faz-me alguma confusão porque comigo sempre procuraste as semelhanças. Como és melhor em todos os domínios, aquilo que te poderia oferecer já o tinhas em abundância e eu surgia tão pouco interessante, mesmo vulgar. Mas não julgues que este bilhete é um ajuste de contas, mas um simples reparo. Ao te afastares, aquelas lágrimas não me comoveram porque percebi que lamentavas a decisão por ti e não por mim. Iria obrigar-te a alterar passos, a aconchegares-te à vida de uma forma matreira, zelo que nunca foi reivindicado na nossa vida em comum. Vivias comigo com tal segurança e naturalidade que exibires a tua realidade garantia, desde logo, o êxito e o afago. Percebo que não seja tarefa fácil moldar a tua imagem para que te julguem digna de admiração e afecto. Agora percebes que ser feliz dá um trabalhão enorme! Pela parte que me toca, pelo contrário, vivo a ressaca do esforço dispendido para encontrar o melhor de mim para te dar, o lado mais fotogénico, o mais adequado. Mas neste momento, como recuso qualquer fardo na minha relação com os outros, reproduzo apenas aquela trivialidade que me faz transparente.

Por isso, se os amigos comuns continuarem a manifestar preocupação pelo meu estado de espírito que apelidam de depressivo e aberrante, podes dizer-lhe que estou num bom momento e que volvam a sua atenção para a sua vida comezinha e medíocre. Uma inquietação que nasce, naturalmente, quando alguém é abandonado. Se for homem, transforma-se num ser ridículo, objecto de compaixão e zombaria. A mulher tem sempre fortes razões para largar o companheiro, enquanto os homens têm no seu mau carácter ou na sua fraqueza a origem dos desenlaces. Mas esta simbologia do “largar”, como quem liberta uma ave de rapina mantida em cativeiro, no meu caso é no mínimo estranho, porque eu fiquei. Estou no meu ninho. Foste tu quem saltou da escarpa em busca do vale verdejante que se estende até onde a vista alcança. Tenho a certeza que encontrarás o que procuras, com a mesma de certeza que eu nada preciso de procurar, porque tenho tudo o que preciso.

sábado, 20 de setembro de 2008

Filhos da luz...



É difícil entender a maldade. Mais difícil ainda é entender a loucura. A loucura que enferniza a vida aos próximos, que os engole na sua névoa, lhes impõe trâmites e exige réplicas canónicas. Se todos temos um fundo escuro que nunca o exteriorizamos no seu esplendor, a loucura significa ausência de amortecimento de efeitos e, nesse caso, esse lado misterioso extravasa-se em consequências trágicas para os demais.

Um amigo, daqueles que se prendem a nós sem se perceber as razões e vão connosco para todo o lado, desde garoto suportou uma relação turbulenta com a mãe e as sequelas desse processo são ainda visíveis e insanáveis. Talvez não haja culpas para distribuir, ou então os intervenientes vão sobrevivendo às transgressões, sem terem a certeza se foram eles a sua causa ou simples consequência.

Tudo começou quando a mãe, na tentativa de identificar o conteúdo dos livros de psicologia como a solução mais elementar para as dúvidas surgidas na relação com os outros, encontrou nos filhos as cobaias ideais. Um processo desastroso, porque se era evidente que os filhos espelhavam os textos, aquilo que não encaixava teria de ser acertado nos parâmetros, ou então analisado como moléstia tratada com receituário médico. E o garoto era demasiado irrequieto, uma vivacidade interior tão forte que arrasava tudo à sua frente, tal como uma enxurrada num dia invernoso. Mas naquele tempo não se falava em hiperactividade e a norma transparecia nos colegas de escola, atentos e sossegados como os anjinhos das igrejas. Então, após consultas a vários médicos, um deles confiou nos sintomas, possivelmente esticando as suas certezas para se encaixar nas certezas dela, e diagnosticou-lhe epilepsia, uma disfunção no sistema nervoso, caracterizada por convulsões e problemas de atenção. Enquanto isso, paralelamente, a luta do pai era bem diferente, certificando a normalidade do filho e recusando diminui-lo à custa de medicamentos. A mãe acusava-o de apenas ter vergonha de uma anomalia no filho, o pai acusava-a de importar para a vida familiar de forma imprudente uns livros que ela devorava de sol a sol. As trapalhadas amontoaram-se sem remédio, desencadeando rupturas que adviriam bastante mais tarde.

Mas a mãe ganhou a guerra e toda a energia que encontrou nas entranhas direccionou-a para a salvação do filho, transformando-a num instrumento metódico e inflexível de regeneração do corpo e da alma. Desenhou deveres com a rigidez de um militar de carreira, metodologias, tempos e actividades. O fundamental era a ocupação desportiva sistémica, decretando, além das actividades normais da escola, natação várias vezes por semana, corridas diárias em volta da casa, enquanto ela supervisionava o esforço e o tempo, completando o tratamento com a norma implacável de se deitar às sete da tarde. Tudo com o objectivo de expulsar o mal pelo esforço e a fadiga extremos, primeiro, atenuaria os efeitos e, aos poucos, descobriria o ritmo certo da normalidade.

Hoje, ele não se lembra se corria com lágrimas nos olhos e se dormia as horas prescritas, pois apenas tem na memória o calor de África que impedia o sono solto e os sonhos calmos. Mas os tempos foram difíceis, pois as crianças preferem encontrar um tempo escorregadio e não um tempo determinado por regras severas. Preferem o afago do que uma disciplina férrea que esconde o sorriso. No entanto, a inocência não é culpabilizadora e, se o é, revira para si mesma culpas alheias.

Em complemento, até ao fim da adolescência, ele tomou sem qualquer escusa, fortes doses de medicamentos. Até que a maturidade, perante as dúvidas que sempre pairaram e confessadas em território inimigo, determinou a interrupção do tratamento. Três anos após essa tomada de força, através de novos exames médicos solicitados por ele, foi-lhe garantido que nunca teve epilepsia e que teria sido um erro clínico do seu colega, quinze anos atrás.

É claro que desacertos todos os cometemos e há erros trágicos que tiveram na sua origem o sentimento de procura do certo e do bem-fazer. Educar tem riscos, pois nunca saberemos se o que propomos é o caminho mais certo para quem está nas nossas mãos. Mas quando o nosso lado obscuro extravasa, as consequências são tão desastrosas que a vida não chega para as expiar.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O dia e a noite...



Choras durante o sono, sabes? Um choro prolongado, profundo, rouco, que causa calafrios só de ouvir. Podes ostentar esse flanco superficial, coquete, desprendido, mas à noite, quando o silêncio pinta a casa de negro, irrompe um pranto como o de uma criança a quem lhe retiraram tudo o que a fazia feliz. Um choro incapaz de parar porque não há ninguém que seja dono de algo tão espesso como aquilo que pedes. Uma fragilidade que nunca vais admitir porque preferes apresentar esse teu lado imperial, de mulher que não precisa de ninguém. Que não precisa essencialmente de mim.

Então levanto-me, ando pela casa com as mãos pressionando os ouvidos, cantando canções de embalar. Mostro o rosto envolto em mágoa, pelas razões que bem conheces, mas essa mágoa é superficial, sara, recupera com o tempo. Mas a tua mágoa é difícil de curar. Faz parte de ti. És infeliz no âmago, não és infeliz na derme. Só a verdade te poderia salvar. Uma atitude em que assumisses os teus medos, a tua guerra interior, os fantasmas do passado. Terias de chorar muito enquanto desperta, porque as lágrimas vertidas no sono salvam-te da vida, mas não te salvam de ti mesma.

Mas não, preferes o show off, a peça da mulher feliz que convive perfeitamente consigo mesma. E eu sofro ao teu lado, por vezes pego em ti enquanto dormes e aninhas-te no meu colo tão desprotegida como uma criança errante. Gostava de conseguir preencher esse vazio tão forte e tão denso, mas não sou capaz, porque me julgas incapaz. Preferes alimentar a esperança vã de que, mais cedo ou mais tarde, por um passo de mágica, alguém transformará o teu lado negro no lago dos cisnes. Desculpa se não acredito…

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Noites perdidas...


Perdi mais uma noite à tua procura. Subi todas as escadarias por onde nos escapávamos em direcção à luz, entrei nos bares que frequentávamos até ao raiar do dia, encostei-me à tua casa onde a claridade nunca mais entrou e no fim regressei, já a silhueta do sol era visível. Entrei tão cansado em casa que preferia que o amanhã não existisse, mas apenas um mundo uma semana depois. Não percebo porque continuo a procurar-te se já não existes. É como se buscasse um espectro no meio de uma cidade iluminada, sabendo à partida que não te posso encontrar porque já não és como eu te procuro. Talvez já te tenha descoberto sem saber que eras tu que retomavas o caminho dos vivos…

Mesmo assim, às vezes, gosto de pensar que ainda te lembras do meu nome e que não o riscaste como se apaga um contacto do telemóvel. É estranho como a quebra de laços causa mossas ao amor-próprio, como se fossemos feitos de afectos e qualquer perda significasse menor realidade. Também nunca percebi a estratégia de fugir ao amor pela ausência no sentido geográfico, tal como tu. Julgo que a solução mais óbvia seria ficar perto, demasiado perto, e aos poucos comprometer a espera e o aceno. Tempos depois seríamos tão invisíveis como o são os companheiros de viagem numa carruagem de metro.

Mas a distância, pelo contrário, conserva as coisas como eram. Uma espécie de frigorífico dos afectos e de corpos que não deixa apodrecer os rostos e os sorrisos. Aliás, a distância torna mais luminoso o passado, porque a memória apenas selecciona o que garante a continuidade do bem-querer. Por isso, vinte anos depois, uma face alterada pelas desilusões do tempo e da vida, resta mais rejuvenescida, recauchutada pela saudade. Alguém que se ausenta não se corrompe porque permanece como uma fotografia numa moldura, mesmo sabendo-se que foi subvertida pelo funil do tempo, por aquela oxidação que enferruja os ossos, a pele e os próprios medos.

Desse modo, queria ver-te. Não para te mostrar a minha face decepada por sulcos onde se arrastaram as lágrimas vertidas, apenas para te olhar como hoje és, na distância, como um detective privado que tira fotos da amante do marido traiçoeiro. Sem que tu me olhasses naquela frieza assassina que trata o passado como um chão minado. E assim, um instante valeria por vinte anos de atraso e a memória não ficaria retida nos alicerces de tudo o que aconteceu entre nós.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Sobreviventes

Todos nós, de uma maneira ou de outra, somos sobreviventes. Fui náufrago durante várias horas no mar alto e salvo in extremis por um barco que passava por puro acaso. Por razões de amnésia insanável, não disponho de todos os pormenores que expliquem cabalmente a estranheza de me encontrar em pleno mar, com um colete de salvação e próximo da hipotermia. Mesmo após o salvamento, grande parte de mim ficou por lá a boiar, com o medo estampado no rosto e a angústia perante um silêncio tão denso que se podia cortar em pedaços. Depois da longa permanência no hospital, sem reencontrar a memória, concluí que o passado era um dom desprezável pelo trabalho que daria em recuperá-lo. O esforço despendido em o reconstruir seria mais proveitoso se o utilizasse para reerguer-me. No fim, por tudo o que passei e pelo que desconheço, analiso a vida como um sucedâneo de histórias estranhas que nos encaminham para desfechos que nos iludem face às suas próprias razões.

Sobrevivemos apenas. Não tenho da vida a noção de um caminho estreito com pequenas margens para o erro. É mais um espaço indefinido cujo traçado que nós desenhamos lembra os labirintos gregos que necessitavam de fios de Ariadna para encontrarmos o caminho de volta. Vamos em frente sem saber para onde e quando olhamos para trás não encontramos dados fiáveis que nos guiem até ao início do túnel.

Gostamos de nos pensar argutos e suficientemente razoáveis para julgarmos que a nossa história individual foi gerada pelo bom senso e pela frieza do raciocínio, mas quando nos vemos envolvidos pelo tremor de uma situação limite, questionamos com sobressalto o que permitiu vivermos aquela conjuntura trágica e ridícula na sua essência. E transparece um emaranhado de decisões, de coincidências de vontades, de rasuras, de vazios, de buracos negros na linha causal. No final, resta um enigma que nos vai ocupando os dias, os anos, a vida...

Após o naufrágio, como o passado permaneceu para sempre naquele limbo com sabor a ácido, sinto a estranheza de começar tudo de novo sempre que acordo. Deixei de ter medo, porque não existe passado; deixei de me preocupar com o amanhã porque aprendi que o agora, por vezes, é um osso tão duro de roer que ninguém pode ter a certeza de o poder domar. Quem viveu como eu a expectativa do instante final e acordou muito tempo depois, sem se lembrar quem era ou de onde veio, nada lhe garante que o amanhã seja uma inevitabilidade. Talvez nem o agora seja. Talvez tudo não passe de uma fantasia de um deus maldoso e cínico.

E sinto-me, desde aí, um náufrago. Alguém que anseia ser salvo. Alguém que não tem os pés presos a nada firme. Alguém a quem basta um copo de água potável e qualquer coisa quente no estômago. Alguém a quem a felicidade é uma miragem sem qualquer sustentação. Alguém a quem a pressa não é mais do que desespero sem sentido. Alguém que reconhece a necessidade da racionalidade nas decisões e o dever de resguardar as forças para os grandes embates. Alguém que aprendeu que qualquer esforço inútil poderá significar a morte prematura.

Ás vezes acordo mergulhado em suor salgado e pressinto que continuo a ser salvo diariamente por navios fantasmas que atravessam o oceano, estranhos que me levam para cemitérios povoados de gente de bata branca que ajeitam os mortos antes de os enviar para o crematório. E depois reinicio a vida já sem medo porque o temor nasce do perigo de nos perdermos de nós e nos esquecermos do que é essencial. Já passei por essa prova e já nada tenho a perder. Como náufrago é-me indiferente onde vou. Vou em frente. Senti já o vazio debaixo dos pés, adormeci a pensar que não voltaria a olhar o céu e agora quando o observo nunca tenho a certeza se não é o mesmo sonho que fruí dentro de água até o barco me ter, literalmente, pescado. Um sonho de areia quente e dourada que me envolve o corpo, ao mesmo tempo que o sol me aconchega e me esvaece, transformando-me numa pequena nuvem melancólica que se move ao sabor do vento.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Cenários de guerra


Ontem fui visitar uma velha amiga que habita uma cave numa zona periférica da cidade. Por entre caixotes do lixo e paredes repletas de grafites de todas as formas e cores, tentava encontrar sinaléticas que me encaixassem no trilho. Prédios devolutos ou em risco de derrocada, horizonte que fazia lembrar uma zona de guerra onde os combatentes entrincheirados aguardam o inimigo incauto. Estilhaços eram visíveis por todo o lado, bem como janelas fortalecidas por grades estreitas. Descubro o portão verde e enferrujado encimando três escadas de um mármore escuro. Ao entrar no átrio vazio sou envolvido por um odor forte de incenso ressequido. Desci os degraus no meio da penumbra e bati à porta, várias vezes. Quase desistia quando ouvi uma voz estremunhada a perguntar quem é e, após certificar o nome num eco que envolveu o prédio todo, um intervalo silencioso até a chave rodar por diversas vezes. Ela debruçou-se por entre a porta entreaberta e olhou-me com algum desconforto:

- Não tens vindo, acusa-me, ao mesmo tempo que me vira as costas e caminha devagar pelo corredor.
- Pois não, desculpo-me. Ultimamente, tenho andado ocupado com muitas coisas e não tenho tempo para tristezas.
- Isso não é nada bom, responde com visível enfado. Quando nos esquecemos dos problemas, não os resolvemos, apenas nos esquecemos deles.

Não era bem-vindo e teria que aturar-lhe o mau feitio, famoso desde o tempo em que nos conhecemos. Foi no fim da década de oitenta, numa Escola Secundária e, desde aí, muitas vezes me perguntei porque mantinha uma relação condenada desde o início. Era possessiva, rezingona, rígida, pouco dada a gestos descontraídos e recusava-se a fazer cedências à sociedade hedonista. Lia compulsivamente os clássicos, era uma conhecedora profunda da filosofia alemã e da literatura russa, e conservara hábitos parcos, a roupa simples e a alimentação vegetariana. Se no início lhe achava graça e lhe elogiava a cultura e o humor corrosivo, fui-me afastando à medida que o tempo se encarregava de alterar andamentos e passavam meses sem que soubéssemos um do outro. Enquanto ela permanecera fiel a si mesma, eu fui-me alterando ao sabor do vento.

- Detestas ver os teus amigos minimamente felizes, não é? Questionei-a de forma cruel.

Sem responder, entrámos na sala com poucos móveis baços e abandonados, como que colocados lá por puro acaso, e montanhas de livros que se alongavam em pirâmides como obras de uma criança irrequieta. A decoração reduzida a pequenas serigrafias desamparadas numa parede com marcas de salitre. Com um sinal seco ordenou-me que me sentasse num sofá tão desgastado que encontrei as molas. Depois, sem qualquer explicação, saiu da sala e deixou-me sozinho. A escassez de luz natural e as grades interiores nas janelas tornavam o ambiente irrespirável. Minutos passados regressou com um álbum de fotografias na mão. Sentou-se à minha frente, abriu o álbum e foi folheando com os olhos concentrados nas fotos que se pegavam umas às outras como páginas de um livro. Depois parou e apontou uma delas e com um gesto incitou-me a levantar-me para a examinar. O tom sépia e o esbatimento dificultavam a interpretação, mas reconheci-me noutras eras, com cabelos compridos e com a dor espelhada no rosto.

- Estás a reconhecer-te, não estás? Afirmou como se eu devesse retirar uma lição qualquer.
- Sim, mas qual a finalidade deste regresso ao passado? Perguntei ainda aborrecido pela recepção pouco calorosa e amigável.
- Era só para te relembrar que quando nos esquecemos quem somos, podemos apresentar uma pose mais adocicada, mas lá no fundo continuamos os mesmos. Tristes, sem futuro e sem esperança. Recordas-te? Agora julgas-te imune porque tens resposta para a maioria das questões que colocavas na tua juventude, mas as perguntas mais importantes ficaram por responder. As que amenizaram a tua vida são circunstanciais e não o cerne da vida. O melhor é preparares-te convenientemente para o que aí vem. E fitou o vazio, com ar grave.
- Mas explica-me, interrompi-lhe a concentração. Porque é que não consegues descontrair-te e ser menos cáustica pelo menos uma vez? Sabes porque não venho mais vezes? Porque contigo não consigo encontrar o prazer de estar junto, o falar por falar, a fluência de uma cavaqueira sem qualquer direcção nem objectivo. Preferes filosofar, ser interessante, profunda, intensa. Sei onde queres chegar com essa foto, lembro-me muito bem como era e quem sou. Mas agora prefiro encontrar suportes de esperança do que acrescentar e reforçar atitudes de desconforto perante a vida. Escusas de tentar atirar-me novamente para o beco. Prefiro andar cá em cima, nem que seja à custa de paliativos, como tu lhe chamas.
- Eu, pelo contrário, não tenho paciência para sensaborias e futilidades. Se queres ser jovial e ter conversas agradáveis não deves vir. Já não temos idade para nos comportarmos como jovens imaturos. Olha para ti! Vestes roupas que não se coadunam com a tua idade! Ou esqueces?
- Não me esqueço. Mas fui aprendendo que nada tem sentido se recusarmos a alegria, a loucura, a inconsciência, o sonho, a viagem…

E de forma impetuosa respondeu à provocação.
-Sempre fui velha demais para jogar com os mesmos dados. A vida pode não ter sentido, mas teremos de ser coerentes e vivê-la como se um fardo se tratasse. E ser coerente também significa recusar amizades que não pactuam com esse rumo.

E emudeceu tão profundamente que percebi ser a deixa para eu me ausentar. Não era a primeira vez que nos afastávamos por não termos descoberto pontes entre nós. Saí para a rua deserta e com snipers esbatidos pela sombra dos vidros. Caminhei rápido espiando o céu cinzento que se arrastava sorrateiramente junto aos telhados e ameaçava despenhar-se em chuva. A vida vista dali era uma sucessão de imagens cruéis e sem graça. Um horizonte que fortalecia o espírito de guerra em que há muito se transfigurara. A alma tem tendência a assemelhar-se ao bairro onde se habita e vai-se adaptando tanto à leveza como à crueza dos lugares. Se há jardins habitados por crianças ruidosas com bicicletas e pequenas lojas silenciosas com fruta fresca a colorir as fachadas é bem possível que encontremos em nós maior margem de tolerância e simplicidade.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O voo nocturno

À noite é mais fácil vaguear pelo céu. Desembrulho a asa de parapente arrumada na despensa e, quando as meninas se enclausuram no sonho, salto da varanda em direcção aos cedros do cemitério, encaminho-me para norte guiado pela Ursa Maior, transponho o rio e flutuo de um lado para o outro no barlavento da serra até que o sono me traz de volta a casa. Depois, arrumo com cuidado os instrumentos de voo e, passo a passo, entro no quarto para não as acordar.

Na manhã seguinte, a mulher-a-dias recrimina as pegadas de terra fresca que saem da varanda e pintalgam toda a casa e garanto-lhe que seria impossível sair das margens do rio e entrar numa varanda do décimo andar. Mas ela não me parece convencida porque as sinaléticas são tão claras como pegadas em neve fresca e garante-me que, não existindo fantasmas, a origem das coisas e dos factos desprezíveis apenas têm como explicação a fragilidade da natureza humana que é mais falsa que a pequena brisa que antecede as tempestades tropicais. Ao olhar o mundo pelo periscópio de gente austera e sem manhas, qualquer brincadeira é apenas um empurrão da má índole que acompanha a alma enquanto vai derrapando por este mundo.

Vem isto a propósito dos sonhos. Enlouquecíamos sem eles, pois seria como se nos enterrássemos vivos neste corpo baço, lento e pesado que nos enquista à terra e nos obriga a um porte de cabeça baixa. O sonho é um mecanismo de auto-defesa que nos transporta para o alto e nos limpa da impureza da vida, seja ela o tédio ou a melancolia, seja a enfermidade e a fragilidade do corpo. Mesmo quando nos esquecemos do seu rasto, peregrinamos após o sono nos fechar os olhos a cadeado e voamos mais alto do que parapentes.

É por seu intermédio que reconhecemos lugares onde antes não tínhamos estado, revemos com saudade pessoas que não tínhamos encontrado em lado algum, sabores e odores, tudo assimilado nessas viagens espaciais, após adormecermos com vontade de esquecer a vida cheia de realidade. É nesse universo onírico que encontramos o que nos faz feliz, onde aprendemos a gostar de gostar e a gostar de gente, de comida, de sensações, aquilo que vamos reconhecendo nos pequenos momentos em que nos sentimos afortunados quando acordados.

A minha mulher-a-dias, pelo contrário, julga que a vida não passa de uma carga de trabalhos. Tudo o que não é trabalho e esforço é um presságio dos ricos a que o pobre não deve ter acesso por lhe causar mossas na mioleira. E quando eu lhe tento explicar que quando o pensamento vagueia para tão longe como um veleiro que acompanha o vento aí podemos ser tudo o que quisermos, ela responde-me que se não temos dinheiro não devemos ter vícios e tudo o que está para além das nossas capacidades não nos faz falta nenhuma. Mas eu não ligo. À noite, espero que elas se aconcheguem na indolência e, quando o silêncio é bom conselheiro, vou à despensa, desenrolo com cuidado a Frantic Plus, estico os fios e retiro os nós, espero que a asa inche com o vento norte e descolo em direcção aos cedros do cemitério. Em seguida, atravesso o rio até encontrar um vento ascendente que me sustente na encosta da montanha.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Espelho meu, espelho meu...

Talvez não conheçam a outra versão do espelho mágico, personagem da Branca de Neve e os Sete Anões. A rainha malvada ao perguntar ao seu fiel espelho se haveria alguém mais bela do que ela, após silêncio embaraçoso, respondeu: “sei lá, petulante rainha, pergunta-me apenas como estás hoje. E pelo teu aspecto não é só da Branca de Neve que deves ter ciúmes, pois mesmo alguns anões não são de desaproveitar!”. O desgraçado terminou em migalhas no chão de pedra, morrendo em defesa de uma verdade: as imagens nunca são absolutas.

Todos os espelhos falam, como sabemos. Respondem a dilemas tão fundamentais como vida ou morte, segurança ou fragilidade, sair de casa ou regressar à cama. Mas diferem uns dos outros tais como as próprias imagens que reflectem. Quando somos nós os seres reflectidos poderemos esquematizar essa diversidade em três tipos: os que nos favorecem, esbatendo anomalias e transformando-nos em seres com alguma graça; outros que não nos absolvem, revelando as noites mal dormidas, rugas e falhas de cabelo e esforçando-se por diminuir os ecos de euforia; e uns terceiros, talvez mais honestos, que nos descrevem “assim-assim”, nem muito favorecidos nem muito escavacados, sendo de bom senso acreditar ser mais correcta a sua manifestação.

Da relatividade da imagem reflectida resulta parte da nossa insegurança social. Qual a medida justa? Possivelmente, permaneceremos para sempre prisioneiros da natureza deformadora dos reflectores, tal como acontece quando nos submetemos ao olhar dos outros. Se perguntarmos a alguém a opinião sobre uma determinada pessoa e segundo vários aspectos, as respostas reflectem a contingência da representação oferecida por cada olhar. Raramente alguém obtém a unanimidade sobre o seu carácter, as suas potencialidades e até a sua figura. Existe sempre uma margem de confronto, de esbatimentos, de diferentes pontos de vista, de pormenores que sobressaem e fazem esquecer o conjunto. E é por isso que há quem nos adule, quem nos deteste, os indiferentes e os amigos. Naturalmente, a imagem reflectida pelos últimos será a mais fiável, pois tanto nos louvam as qualidades como nos criticam as tropelias e os sinais de mau carácter. Os outros fazem sobressair de tal forma as qualidades ou os defeitos que, ou criam monstros de virtudes ou criminosos de guerra e, desta forma, pouco ou nada acrescentam ao conhecimento de nós mesmos.

O maior problema deste conluio é que, em geral, todos procuramos os espelhos mais benevolentes. Em situações de maior insegurança sabemos onde se encontra aquele que, sendo menos criterioso, nos transfigura de simples humanos, pequenos e frágeis em figuras típicas de filmes, cinderelas com prazos exíguos. Se, pelo contrário, pretendemos reparar erros ou fazer juízos mais sóbrios sobre opções futuras, aproximamo-nos daqueles que, sendo frontais, não nos escondem críticas e nos descrevem com um semblante mais humano e mais quebradiço.

Por último e aparentemente, os espelhos menos sujeitos a embustes e que nos descrevem com maior rigor somos nós mesmos. Todavia, por estranho que pareça, nem sempre a imagem recolhida no silêncio de nós é imparcial e justa. Muitas vezes fechamos os olhos a evidências e continuamos a redimir culpas próprias atribuindo-as a segundos e a terceiros, para não beliscarmos a nossa carapaça, ou então somos tão severos e culpabilizadores que o nosso amor-próprio baixa a níveis suicidários. Teremos de aprender a ser superfícies mais polidas para que a imagem reflectida seja a mais próxima, limpa de narcisismos balofos e sentimentos auto-destrutivos. É um trabalho árduo e contínuo de reconhecimento, quer através da expiação de pecados antigos quer pela coragem de assumir optimismo perante as nossas qualidades.