segunda-feira, 30 de junho de 2008

O quase-amigo

Podíamos ter sido amigos. Ficámos quase-amigos. O tempo foi escasso para reconhecimentos e as sombras que iam e vinham recusaram esclarecimentos aprofundados, tal como as nuvens que viajam depressa tapam e destapam o sol em dias de vento. Cumprimos só algumas etapas, jogámos às escondidas algumas vezes, esbarrámos em evidências noutras e quando demos por ela pouco tínhamos ou quase nada.

Há algum tempo noto que temos algo. Um pouco que foi crescendo, mas nunca ultrapassando a fasquia do pouco. A convivência banal pouco acrescenta ao pouco existente. E agora não podemos desembaraçarmo-nos do restante. Quero guardá-lo. Fico mais vazio sem ele. Mesmo sendo pouco.

Pode ser que tu prefiras o nada. Nunca te perguntei e não sei qual seria a tua resposta. Não te perguntei porque sempre tive medo da tua resposta. Ficar com menos que pouco é um nada que não quero. Agora que vais embora, o pouco tem todas as razões para permanecer; se fosse muito, o mais provável é que nada restasse pouco tempo depois. Mas o pouco que restou poderá continuar, porque o pouco nunca impede o pouco ou muito que vier.

É pouco, sim, mas é mais do que nada. Se recusares o pouco, ambos ficaremos a perder. Despirmo-nos do pouco que resta neste mundo de nadas seria um desperdício. Algo fica. Pouco, mas muito face à possibilidade do nada.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

a caminhada

Vou indo para baixo, procuro a sombra fresca das árvores, mas não sei para onde vou. Não ouço os passos mas consigo ouvir-me baixinho. O funcionamento contínuo do pensamento, como um rádio barulhento, é muito cansativo. Gostava apenas de olhar a luz e as cores, sentir o vento, e continuar a andar, mas sem ter de fazer comentários. Distraído, a voz continua a sussurar. Passado, presente, juízos sobre gente que passa, o que aconteceu hoje, ontem, há vinte anos, tudo se mistura como se os encadeamentos se sucedessem por alçapões invisíveis que se vão abrindo e fechando, enquanto caminho. Não há paciência para tantos juízos, tantas apreciações estéticas, tantos pormenores mesquinhos de quem se atravessa nesta caminhada! Não sinto os passos sinto-me a mim que ando.

Canso-me menos quando falo com outros. Esqueço-me de quem sou, aquele ser chato que tem sempre algo para dizer. Que pensa. Ficaria louco se apenas me ouvisse a mim mesmo, sem paragens, sem bloqueios durante a eternidade. Quando os outros falam e sorriem, sinto o prazer de estar sem nada ter para dizer. Afinal, o inferno não são os outros. O inferno está dentro de nós, escondido, envergonhado, com labaredas que nos transtornam. O inferno é aturarmo-nos, escutar aquela voz que se parece connosco, que nos massacra com pormenores e curiosidades que identificamos como fazendo parte da nossa história.

Quase por acaso, entro no velório do vizinho que morreu depressa, como se não quisesse saber a razão. Um dia apenas bastou para que sucumbisse, sem haver histórias de doença no seu curriculum. Após dar os sentimentos à família, em frente à urna, num cenário quebrado por entradas e saídas de pessoas desconhecidas, não me apetecia ouvir-me, naquele discurso monótono e deprimente de quem entrou, de quem saiu, sobre a sua tristeza ou apenas a vontade de olhar a face do morto. Sempre naquele questionamento existencialista sobre a valência da vida e da morte sem qualquer mensagem prévia. E encostei-me a uma conversa de duas senhoras de idade. Uma delas comentava,

- Incrível, apenas com cinquenta anos e morreu. Morreu de quê?
- Dizem que foi a doença dos ratos. Mas não há certezas.
- Então, e tu tiraste as cataratas?
- As cataratas? – pergunta a outra surpreendida. – Tenho é um diploma.
- Um diploma? Não percebo. Responde a vizinha.
-Eu fui fazer apenas um exame aos olhos.
-Ah! ….

Não percebi mas saí de mim. Vagueei pelos outros tanto tempo que até me tinha esquecido qual a razão de estar ali no meio de tanta gente desconhecida. Depois lembrei-me.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

o estranho caso de um ponto que deixou o final para se metamorfosear em reticências...

Joaquim era um ponto. Poderia ser um ponto de rebuçado, um ponto adiante ou um ponto atrás, um ponto de fusão ou um ponto cardeal, um ponto de partida ou um ponto de vista, um ponto de apoio ou um ponto morto. Mas era simplesmente um ponto. Vivia na esperança de um parágrafo ou final de período, tal como um professor recebe com alívio as férias escolares. Só que os períodos e os parágrafos são como os rios: há pequenos, tão pequenos que escorrem em gotas por falésias, magros como cães de rua, e outros tão largos como continentes e demoram anos a passar. Mas ambos, em meses de barriga grande, engrossam os seus caudais, e os pequenos tornam-se tão grandes como horizontes elásticos e os maiores, em mares de perder de vista.

Mas quando chegavam, uns e outros, era uma festa! Joaquim adorava ser feitor de pausas significativas, libertador de ritmos, obreiro de personagens. Estava sempre a postos como uma sentinela. Vamos Joaquim! A intimidade com as palavras era tal que não podia viver sem elas. “No meio das palavras é que se está bem, sinto-me real!” testemunhava para o ponto de exclamação, um parente esguio como um pau de vassoura. Aliás, a sua existência dependia absolutamente delas. “O que seria de um ponto isolado no meio de uma página em branco? Que sentido teria um final se nada tivesse começado?” Perguntava a um ponto de interrogação, um ser sorumbático com um nariz arqueado.

Mas, da mesma forma, as palavras sem pontuação não poderiam constituir textos. É necessária ordem e não há ordem sem quebra de ritmos, sem um cerco provisório à liberdade absoluta de sua disposição. As palavras, em si mesmo, não traduzem sentidos e pouco se importam com a barafunda. Podem até aparecer na sua máxima extensão, tal como num dicionário aberto. Mas o sentido, a poesia, a prosa, exigem a exclusão, o emparcelamento de vidas que percorrem os textos.

Joaquim sentia orgulho nessa actividade de ordenador. “Uma espécie de demiurgo de sentidos cruzados”, afirmava ufano. Todo empertigado, apresentava-se no final dos períodos com aquela segurança de quem tinha autoridade de pôr fim à brincadeira. Ou no fim dos parágrafos, sobre um abismo, segurando-se para não cair, criando uma fronteira ao vazio. E fechava sempre o texto, como uma tranca na porta, uma prerrogativa de dono da casa das palavras. Por isso, sentia-se importante e exigia o devido respeito. A palavra que o seguia tinha o dever de se vestir com roupa de festa – ou dito de outra forma, de maiúscula – e detestava ser mal utilizado por escritores imberbes. Não gostava de uma certa escrita contemporânea, onde se esqueciam com facilidade dele próprio, com desmesurados corredores de termos sem eira nem beira e com dificuldades colocadas aos leitores menos atentos. Aliás, gostava mais dos clássicos, que dominavam os casos como os artesãos dominam as artes.

Por vezes fazia-se acompanhar da prima, no estatuto de ponto e vírgula, mas não gostava desse papel. Tarefa complicada para destrinçar a sua utilidade, de uso difícil e pouco eficaz. Por isso era raro reduzir-se a esse estatuto, numa companhia pouco recomendável e, ainda por cima, tão juntos que pareciam amantes. Aliás, nunca mostrou grande estima pela sua familiar. Achava-a atrevida e pouco educada. “Uma doidivana, com tendência a utilizações desregradas, isso é o que ela é!”

Mas, um dia, Joaquim cansou-se de ser quem era. Fartou-se de protagonismo, imaginou-se reformado e sem a árdua tarefa de ser o grande obreiro dos sentidos do texto. Não queria retirar-se das lides, mas pretendia ter um papel mais pudico. Por coincidência, conheceu um ponto feminino que o surpreendeu na inteligência e recato, e depois de um namoro rápido, casou numa folha A4 mais branca que a neve e passou a dois pontos. Foi então que, por obra e graça de um escrevedor, nasceu-lhe um filho e se transformou em reticências. Ao misturar-se perdeu identidade, mas ganhou sabedoria. As reticências permitem interromper o texto antes de ter esgotado o pensamento, mas deixando sugerir o que se omite. Ora, esta é uma potencialidade que fortalece a fantasia, um lugar de poesia, um incentivo ao engenho.

Solto da sua rigidez de ponto, encontrou serenidade na tolerância. E quando o futuro reserva uma brecha, há sempre permissão na escolha. E sabem como é …

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Tratado sobre uma paixão

É insuportável viver sem beleza. Da mesma forma, ninguém consegue viver sem amor. Quando o amor existe, a beleza é um complemento; se falta, transforma-se numa obsessão. A beleza sem paixão é uma frivolidade, dispensada sem qualquer dor na primeira oportunidade. Mas a paixão resistirá à ausência da beleza?

Nos meus tempos de juventude, através de um amigo comum, conheci um fulano casado com a mulher mais desprovida de atributos físicos que eu conhecera. O casal era proprietário de um bar onde nos encontrávamos nos finais de dias monótonos, eles com o ar mais apaixonado do mundo, servindo a clientela e protestando contra demoras extras dos bebedores compulsivos ou daqueles que iam bebericando sem querer ver o fundo ao copo. Fechavam às dez da noite quando o bar ainda se atazanava de gente ávida de álcool e companhia, mas era óbvio que para eles o lucro era um pormenor insignificante e as demoras significavam tempo a menos para eles próprios. Perante o cenário, imaginam os nossos comentários.

Reconheço a maldade. Dois inspectores de destinos alheios sem nada de relevante, companheiros de desventuras e solidão, julgando que qualquer afecto que lhes caísse na rede era apenas o prelúdio de qualquer coisa em grande, abrigada em limbos gelados para melhor oportunidade. Como as noites forneciam horas tão desmedidas como os anos que nunca mais chegavam ao seu termo, permitiam-nos, após o jantar, deambular em conversas sem rumo. Apesar do tédio, jurávamos preferir estar sós a ficar com o ar de idiotas como aqueles dois, escarrapachados nos olhares de todos os outros que encontravam qualquer coisa de esquisito numa união tão desproporcionada.

O Verão estava no pino. Vagueava pela noite um calor tão forte que não deixava o sossego escorregar pelos corpos. Acompanhados de cerveja, espiávamos a retaguarda do balcão como que anestesiados por delírios vagantes que uniram aqueles dois seres tão diferentes, união que fez rebentar costuras familiares. Nas confusões resultantes da desistência da Universidade e do casamento com aquele ser sem graça e sem fortuna, exigira a parte dele do testamento – por morte do pai - e compraram aquele espaço que decoraram de forma sóbria mas com bom gosto. Mas o entusiasmo de proprietários foi breve pela obrigação de aturar seres sem alma de amantes, tais como nós, que passavam por ali para se perderem de tempo. De poucas conversas, mas acenos cúmplices, encostos prolongados ao cruzarem-se no espaço exíguo por trás do balcão, eram sinais óbvios do entusiasmo reinante. Apontávamos os pormenores como polícias à paisana, como transgressões ao nosso olhar infectado por mulheres belas que sabíamos existir algures.

Na verdade, de bela nada tinha. Um nariz irritante, pequeno e ameaçador, dos que não permitem sorrisos, com narinas que se meneiavam como guelras de peixes aflitos. Lábios rigorosos, finos e de uma dimensão pequena, quase misteriosa. Os olhos negros, magros e nervosos, tão inexpressivos que não consentiam apreciar ternura ou emoção. No resto do corpo, ausência de pormenores pela corpulência desmedida. Um todo inabarcável. Ao andar, movia-se com funcionalidade mas sem graça, tal como um carro de assalto. Era profundamente eficaz. A eficácia era o atributo que melhor a definia: atingia os objectivos mas sem graciosidade. E ele com aquela pose submissa e olheiras profundas, tão negras como pinturas de guerra. O seu aspecto de intelectual de finais dos anos setenta, com barba rala escura pendurada na face, um sorriso calmo, próximo da fotografia de Che Guevara que todos tínhamos no quarto nessa década. A sua reverência perante a deusa que o abonava com as suas bênçãos era irritante.

Mas qual a origem da paixão? O que fará despoletar o início do seu jogo? Não serão detalhes? A paixão é cega ao geral, apenas tem presente linhas estreitas, razões para a adoração. Na paixão o todo é um elemento supérfluo, bastam-lhe particularidades abonatórios. (No amor é ao contrário: ama-se o todo, mesmo reconhecendo razões de críticas em minudências.)

No entanto, podemos pensar que a fealdade exterior esconde uma interioridade deslumbrante. Mas nem uma interioridade vazia está sempre disfarçada pela harmonia de formas, como uma interioridade opulenta tem como reverso uma fealdade exterior. A questão não está na relação inversamente proporcional entre a beleza e o discernimento, mas apenas que na falta de um busca-se a optimização no que se encontra disponível. Daí que quem se sente bonito queira demonstrar que é igualmente inteligente, os feios querem fazer crer que são proprietários da beleza interior que ameniza a falta.

Tudo mentiras. Pelo menos neste caso. Ao fim de um Verão de pesquisas – uma investigação sem plano, apenas com a conivência de acasos e momentos – chegámos à triste conclusão que além de feia tinha mau fundo. Gostava de ser olhada, bajulada por frequentadores da casa, mesmo por aqueles que sozinhos em mesas despejavam a vida em copos sucessivos. Por várias vezes obrigou o marido a pedir explicações aos mais atrevidos e ria-se perante a perturbação das vítimas que negavam vícios, maldade ou falta de respeito, no meio de rubores e suores frios. O marido, vexado naquela função de defensor da virtude da mulher, como se isso fosse necessário, não podia discutir ordens de sua alteza… E tratava-o mal como se a paixão dele precisasse de ser continuamente testada.

Entretanto, o Inverno chegou e os passos alteraram-se com a chegada da chuva. Eles desfizeram-se do estabelecimento, tal como ameaçavam e saíram da circulação. Meses depois calcorreava um centro comercial quando os vi sentados numa esplanada. Fiquei curioso. Ele mais magro, parecia que diminuíra em tamanho. Bebia uma água e olhava para o copo com tal distracção como se nele observasse o seu futuro. Ela, vaporosa, mastigava um gelado de tamanho gigante, fazendo gestos dengosos com o pescoço como para esticar o cabelo comprido. Não diziam palavra. Pouco tempo depois levantaram-se, ela na frente em passo firme fazia ondular perigosamente o vestido comprido, ele parecia em dificuldade em manter-se na peugada. Não me parecia feliz.

(Mas, como sabem, a felicidade não decorre da paixão. Nem sequer do amor. A paixão exige a presença do outro como uma necessidade vital, mesmo que essa presença seja fonte de sofrimento.

O jogo da paixão determina adoração e submissão. No amor há partilha e complementaridade. A paixão queima, recusa o tédio, a serenidade, a vivência amordaçada pelo esquematismo. Paixão e tranquilidade não são compatíveis. A discussão e a guerra são estratégias para testar continuamente a eficácia da submissão e adoração mútua. A acalmia numa paixão é apenas acomodação ao todo social.)

Regressemos aos dois. Não faço a mínima ideia como tudo evoluiu. Mas no meio das memórias ouço-os a vociferar numa qualquer noite de Verão, onde corpos resignados adormecem em cadeiras de esplanada: ” Quem sois vós senão funcionários das paixões que ritmam a alma por pequenos sinais de desejo, como se a vida se resolvesse por alaridos esgotados?!! Vós que tendes um coração frágil, não sentireis mais do que pequenos burgueses que compram tudo menos o que tem valor. Ficareis retidos em qualquer paragem sem o prazer da viagem por margens turbulentas. Azar o vosso.”

sexta-feira, 20 de junho de 2008

uma dúvida com oitenta anos

A vida num dia a ferver atravessa encenações diferenciadas como num teatro dramático clássico, mas transforma invariavelmente as tardes em cenários irreais. Depois de almoço, costumo deitar-me no sofá com uma música sombria e, pouco depois, o sono invade-me como um vírus. Mas, por azar, hoje a empregada doméstica alterou rotinas por razões desconhecidas e lembrou-se de vaguear pela casa como uma alienada furiosa, munida do aspirador como arma de arremesso, procurando desesperadamente fantasmas esquivos. Via a sua sombra através dos vidros da porta da sala, numas vezes parecia que puxava o aspirador, noutras parecia-me que era puxada por ele. Cheguei a temer que o aspirador ganhasse vida própria e saltasse a varanda com ela atrás. A certa altura, o som estridente finou-se e a casa foi envolvida de imediato de um clima propício à bonança.

A minha empregada doméstica é uma senhora simpática, de idade indefinida e que raramente expõe qualquer ponto de vista. Anda na sua vida como se nós não existíssemos e nós respeitamos essa privacidade como território sagrado. Faz o que acha que deve, nós acostumámo-nos a julgar que acerta na maioria das vezes. Estranhamente, hoje alterou-se. Foi em tom sério que me confidenciou a razão de vir a horas discrepantes. Após hora e meia à espera do autocarro devido a um acidente na zona, desistiu e optou pelo período da tarde. Fiz-lhe um sinal de concordância e que fizesse de conta que eu não estava ali. E quando julgava o assunto encerrado, voltou-se, em tom de confidência, como se quisesse desprender-se de um fardo. Durante o tempo de espera do autocarro, uma velha de oitenta anos contou-lhe a vida tintim por tintim, desde uma infância de maus tratos, uma adolescência cheia de interdições, até à vida adulta com um casamento triste e uns filhos burros. Uma catástrofe, mas com algumas nuances e alegrias íntimas, naturalmente.

Percurso que agora se concluíra na relação crítica com a filha solteirona que nas últimas noites a arrumara a dormir nas escadas do prédio e na estranha relação com um magala que diariamente descia a rua, rente à sua janela. Andava intrigada com os sinais diários que este lhe fazia, sinais amistosos e de sentido indefinido que poderiam ser apenas uns simpáticos gestos para uma idosa fechada em casa com todo o tédio do mundo, mas que poderiam transportar outras intenções menos cavalheirescas. Será que aquela cabeça fresca de vinte anos pretende mais alguma coisa de mim? O que acha? Perguntou-me a empregada pela boca da velha de oitenta anos. Eu fitava-a com o assombro por me dirigir a pergunta e ela estranhava o meu silêncio como se a resposta fosse óbvia. Mas qual resposta? Será que ela julga que devo ter qualquer opinião sobre o facto de uma velha de oitenta anos estar cheia de dúvidas se um magala redondo a possa ver como objecto de desejo? Medo ou esperança da velha? Será que há histórias destas provindas das profundezas ardentes de uma velha de oitenta anos? Será que há magalas que sonham eroticamente com velhas gastas que dormem em escadas por maldade dos filhos? Será verdade o questionamento da minha empregada doméstica sobre um dilema dramático como este?!

Pedi-lhe desculpa por não a poder ajudar. Ela virou-me as costas, ligou de novo o aspirador e pareceu abanar a cabeça como se a minha ignorância sobre o assunto me transformasse num ser pior do que já era. Nestas tardes quentes de uma Primavera defunta, preferia que as tardes infindas se estendessem pelas paredes vazias e por uma música que depressa esquecemos, como esquecemos tudo o resto...

sábado, 14 de junho de 2008

amor de cão

Andamos todos à procura de histórias que iluminem as nossas vidas e algumas encantadoras passam mesmo por baixo das nossas barbas e não damos por elas. Esta história de amor que me apeteceu contar ocorre neste preciso momento por baixo dos meus pés. Ou melhor, na entrada do prédio, onde vivo. É uma história de amor comovente, como são todas as histórias de amor. E vai acabar mal, ai isso vai, como findam todas as histórias de amor.

Na fronteira do prédio, um prédio alto que comanda os horizontes até um mar que se perde por reentrâncias desnecessárias, há vários dias, assentou arraiais um cão grande, preto como o breu, bem tratado, daqueles modelos bravios que assustam só pela presença. A um metro do portão, deitado sobre as patas, fixa os olhos verdes nas pessoas que passam e, após o afastamento, os olhos concentram-se num enfiamento imaginário que atravessa o portão e percorre o interior vedado. Quando surgiu, há três dias, num fim de tarde, a vizinhança assustou-se pelo aspecto e por aquele olhar verde que sustentava qualquer movimento. Depois foi desaparecendo o receio e apenas se manteve a interpelação sobre o motivo da estranha estadia. O seu objecto de interesse não são pessoas. Apenas olha para elas, não se interessa por elas. Isso é evidente.

Clarificou-se ontem por conversa de vizinhos quando as portas semiabertas dos elevadores permitiram confidências. Como sabem, no interior do elevador não se fala com desconhecidos porque os olhares permaneceriam demasiado próximos. Precisa-se de um certo espaço para fazer fluir uma conversa banal. Assim que as portas se abrem e algum dos ocupantes ameaça retirar-se, então fala-se. Pelos vistos, no quinto andar, existe uma cadela, pequena e lustrosa, mimada pelo colo do dono, irresponsável pela tenra idade. Ela e o cão de olhos verdes encontraram-se num daqueles intercâmbios caninos, quando os respectivos donos são arrastados estrada fora, estrada marcada por fronteiras imaginárias. O feitiço foi forte. A explicação banal é que a cadela lustrosa anda com cio, mas julgo a explicação demasiado simplista para justificar tanta melancolia e paciência na espera. Parece implorar novidades, dela que não sai porque o dono se apercebeu da emboscada. E permanece com aquele semblante acabrunhado de um trovador que esperará toda uma vida. Se necessário for.

Mas já chamaram o pessoal responsável pelo canil camarário. Esta história de amor não vai acabar bem. Ai isso não!

a revolta dos pormenores

A semelhança entre um “peru menor” e um “pormenor” é evidente: em ambos a escassez de realidade não lhes permite a autonomia. Enquanto o primeiro refere um indivíduo que ainda não atingiu a idade adulta, o segundo é um “por” insignificante, sem vida própria, e da qual não resulta qualquer relevância ao ser que menciona. Mas, se entre um peru-menor e um por-menor venha o diabo e escolha, pelo menos um peru jovem terá mais realidade do que um “por” em sistemática crise ontológica, pela simples razão de que tem em si mesmo, em potência, o ser maior do que já é.

Mas, como veremos mais adiante, uma diferença apenas aparente. Um peru garoto, ainda sem a qualificação necessária para ter voto em qualquer matéria, orienta-se pela palavra do peru velho que lhe dita as regras e da qual depende, e espera com a paciência de peru uma oportunidade para mostrar o que vale. A menoridade – que em termos kantianos não é mais do que o não utilizar convenientemente as capacidades racionais - dará lugar à maioridade, caso se verifiquem os habituais trâmites do crescimento. Assim, o tempo, se por si não garante o aperfeiçoamento dos seres, é o palco dessa libertação progressiva, do marasmo até à afirmação vigorosa da sua essência. Será nessa altura que o jovem peru encontrará uma perua que psicologicamente se adapte à sua personalidade, bela se possível mas não obrigatório, terá uma actividade profissional de forma a garantir a sobrevivência e a sanidade mental (pois o nada fazer contribui mais para as paranóias e depressões do que qualquer outro motivo) e oferecerá perus ao mundo, tornando-se em mais um elo na cadeia de vida e garantia do prolongamento da história dos perus.

Quanto ao “por-menor”, é uma minudência que nada adianta a uma história ou a um ser e em muitos casos infesta as histórias e os seres com enfeites e exterioridades que ofuscam aquilo que é verdadeiramente importante. São particularidades que – no caso de não estarem presentes – não fariam falta nenhuma ou pelo menos nada justifica o seu endeusamento


Mas a análise não pode ser tão simplista. Será que o peru, por ser menor, não pode revoltar-se contra a sujeição que o limita na sua especificidade e na originalidade enquanto indivíduo? Todos conhecemos perus que, apesar de menores, já colocaram sobre os ombros (curtos) o seu futuro, indivíduos que se libertaram das ameias paternas e sociais e partiram para longe da capoeira. Da mesma maneira, há pormenores que apesar da sua irrelevância ontológica se sobrepuseram e funcionam como pedras basilares da compreensão do ser que os sustenta. E é este sentido paradoxal do pormenor que se transforma em grande de perder de vista, que gostaria de deixar como reflexão. Como é possível que haja “pormenores” que se transformam em “pormaiores” por um acto de insurreição contra o fundamento de si mesmos?

Quando é evidente que socialmente o valor das pessoas depende da sua aparição nos meios de comunicação social; quando a cor da pele se transforma em razão de prestígio ou de ostracismo social; quando a harmonia das formas e a beleza são razões suficientes para transformar alguém num ícone; quando a militância num partido político significa portas abertas para carreiras técnicas; quando a relevância das pessoas advém daquilo que têm e dos títulos que ostentam; quando se sobrevaloriza a arrogância de carácter face à simplicidade de postura, então, sim, estamos perante revoltas de pormenores e ao transformarem-se em “pormaiores”, navega a realidade ao sabor de simples acessórios.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

As férias e os livros

Gosto de ler. Um gosto independente do tempo atmosférico ou de qualquer outro tempo suporte do meu. Mas, nas férias ainda gosto mais. Desconheço a razão. Talvez seja da espessura do tempo de lazer, indefinida e tão forte que vive por si, sem necessidade de arreios. É mais silencioso e dormente, avança sem encontrões. Decorre numa direcção vazia de sentido e facilita a distracção do pensamento no meio das letras e a concentração nos dramas.

Mesmo assim, há um tipo de livros mais próximos da natureza das férias, cujo conteúdo é igualmente quente, submisso e com personagens mais definidas. Livros onde a fluência das personagens se desenrola numa intimidade com o tempo do tempo. Como se o carácter das férias exigisse figuras simplificadas, uma escrita simples sem ser simplista, bela sem ser banal. Lembro-me com clareza de muitos Verões pelas leituras feitas, mais pelas leituras do que pelos próprios Verões. Entre outros, Nome da Rosa do Umberto Eco numas escadas alcandoradas em tardes quentes de aldeia, Palmeiras Bravas do Faulkner em tendas efervescentes de vida em Vila Nova de Milfontes, Galindez no México no meio de luas enormes e de uma mar azul e quente, e de três grossos volumes do Ballester lidos numa praia repleta de veleiros azuis, não por pressa de acabar mas porque a própria leitura me obrigou ao aperto. Vai-se andando como num barco a remos e às tantas fica-se tão perto do destino que se avança rápido com a expectativa de finais anunciados.

Há férias que nunca mais acabam, há outras tão pequenas que não chegam a começar. Os livros abertos, esmiuçados, são marcos fortes. Mesmo que não tenham outros, o prazer de terminar um livro que se gostou é razão mais do que suficiente para que as férias tenham a sua própria razão de ser. Ficarão guardadas na memória apenas porque um livro se terminou com o seu balanço.

sábado, 7 de junho de 2008

O problema da glândula pineal

Aos poucos vai-se recuperando. Com umas muletas que sustentam a caminhada, umas vitaminas de cores coloridas e uns caldos de galinha. Chega-se a uma idade em que a vida nos oferece pouco mais do que a largura de uma pequena estrada, sem cruzamentos nem alternativas. Caminhamos em frente, sabendo que em frente pouco há mais do que a repetição dos próprios passos.

Nesta caminhada não vou sozinho. Sou eu e o meu corpo, esse ser esquivo que muda de configuração todos os dias. A sua complexidade é tremenda, com mecanismos tão cúmplices que quando avaria um todos se ressentem. Lá anda na sua vidinha, procurando o sol como um lagarto, com as suas regras e exigências pérfidas e eu acomodo-me, como um membro do casal que, sendo mais lúcido, apenas pretende uma coexistência pacífica. Só lhe satisfaço os caprichos por forma a não haver protestos. Não tenho grande intimidade mas, como coabitamos há muito, temos aquele trato cúmplice de reconhecermos por pequenos sinais as ameaças e as depressões. E se muitas vezes sonhei com outra parceria, com maiores potencialidades e conveniências, nunca me decidi e agora já é tarde.

Um companheiro que me estraga as tardes, exigente no que consome, fundamentalista nos hábitos, renitente aos riscos e aventuras. Sinceramente, moro em conjunto mas não gosto dele. Sempre o culpei de não ter tido as namoradas que gostaria, culpei-o de dores de dentes, de dor nas costas. Se esta união de facto não fosse quase tão velha como eu mesmo, sem as histórias de aventuras partilhadas, tomava uns sedativos e fugia dele por uns tempos. Deixava-o em casa e comprava umas férias em separado. Mas sinto-me responsável, ainda mais que se encontra em fase difícil. Os sinais que emite nesta Primavera incerta são pouco animadores.

Ele poderia ter as mazelas, desde que não me lacerasse! Assim, não. O seu tormento provoca-me desassossego. Queixumes em alta voz, desesperos soltos, o agitar constante de quem não está bem com ele próprio. Claro que reconheço também a minha dificuldade em partilhar espaços. E tenho os meus dias. Naqueles em que me basta o céu azul para a esperança me encher de sorrisos e naqueles em que tudo me parece negro como bréu. E aí o desgraçado sofre um bocado. Como umas porcarias, não o deixo descansar, renuncio às corridas e esqueço-me dele. Por vezes, ao espelho, já não o reconheço. Afasto-me e ele ressente-se. É muito ciumento este meu parceiro! Eu sou menos. Quero lá saber que se esfalfe sem que eu faça parte do seu próprio ritmo, da sua vidinha ridícula, comezinha. Quando ele está saciado, esfalfado, dormente no meio de um sofá, então pé ante pé, afasto-me e liberto-me dos atavios que não me deixam voar.

Por tudo isso, neste princípio de fim de vida, fazendo contas, tenho a convicção de que não fomos felizes. Afortunados em determinadas fases, mas a ausência de um conúbio forte impossibilitou projectos conjuntos. Naturalmente, houve estádios de maior companheirismo, quando julgava que a minha felicidade dependia dele, da sua energia, dos seus propósitos. Percebi mais tarde o equívoco e resignei-me. Restámos nós os dois, neste ser dual que se transporta aos berros, como dois velhos quezilentos. Eu quero a quietude, ele gosta de ser andarilho; eu quero serenidade ele prefere a folia; ele escolhe excessos, eu elejo o regramento. O problema é que ele deseja mais do que pode. Eu quero mais do que ele cede. Mas estamos demasiado desgastados para um divórcio litigioso. Frequentemente, sonhei com esse desenlace, ele permaneceria em casa e eu sairia sozinho voando com as nuvens, empurrado por aquele vento que soa nos ouvidos e deixa para trás uma parte de nós...

terça-feira, 3 de junho de 2008

O fracasso das paixões

Sabes, num sentido metafísico, a vida é um fracasso. Crescemos com ambições desmedidas, objectivos tão sublimes quanto irrealistas e aos poucos confirmamos que tudo não passa de imposturas. Uma comédia que nos vai desgastando em sonhos irrealizáveis, em acrobacias e reviravoltas que mais não geram senão inúteis retornos. E a nossa própria vida é tão insignificante em termos cósmicos que o seu eclipse não causa qualquer mossa ao equilíbrio universal…

O mesmo se passa com as paixões. Vivê-las é condená-las à morte. Filtradas pelo dia-a-dia, banalizadas pela vida corrente, corrompem-se e a derrocada é semelhante a baralhos de cartas. A paixão não aguenta a vida. Sustenta-se no sonho, na distância, no mistério criado pela ausência do outro.

A paixão não aguenta a nudez. Desnudos perante o outro, revelamos as mazelas, as imperfeições, as fragilidades, as desculpas, as falhas. Nós apenas saboreamos os outros ajustados pelos nossos olhos, pelos nossos desejos, pelos nossos delírios.

Naturalmente, poderemos adiar a morte, tal como adiar o colapso da paixão. Diminuindo os riscos viveremos mais, tal como conservar as paixões no campo do sonho-sonhado, inclusas em sótãos misteriosos, permitirá a sua sobrevivência. Mas o medo da morte e ausência do risco não impedirá a própria vida? E conservar uma paixão num limbo inacessível e viver na sua sombra, na sua vacuidade, não será também uma traição a ela mesma? Para quê se, no final, restará a melancolia do que ficou por viver? Não será, então, preferível esgotá-la na correnteza do tempo?

Não sei. Também compreendo o teu ponto de vista…

O jardim zoológico...

Conheci-a nos tempos de Liceu e mais tarde reencontrei-a na Universidade. Ponderada, jogava sempre pelo seguro. Escolhera o curso com apoio de uma conselheira de orientação escolar e parecia tão certa de tudo o que girava à sua volta que, ao contrário de mim que era uma dúvida com pernas, tomava sempre as decisões mais sensatas e não dava passos em falso. Ninguém desconfiava da sua natureza e eu só o reconheci mais tarde. Após intimidade conquistada, uns pensamentos desfraldados perante notícias de um mundo em ebulição, análises de filmes, opiniões sobre broncas da vida política, aquilo que julgara princípios de sensatez era afinal uma incomensurável atracção para a asneira.

Mas, contrariamente a qualquer previsão lúcida, atingiu com sucesso todos os seus objectivos. Obteve classificação de muito bom no curso porque nunca foi obrigada a defender qualquer tese, conquistou um lugar de destaque na Câmara Municipal e pouco tempo depois casou com um pato-bravo que viu nela as pernas bem torneadas e uma crista espampanante de cabelos louros. Lembro-me de que no dia do casamento olhou para o grupo com ar triunfante, quase soberba, e nós, que gozávamos com a sua secreta incapacidade para revelar rasgos interiores, ali especados no adro da igreja, sozinhos, sem futuro e sem saídas. Convidara-nos para nos humilhar e bem o merecíamos.

Nos anos seguintes encontrei-a tantas vezes que parecia que me perseguia, gozando com o meu desleixo e ar falhado. Ostentava quase sempre uma barriga de meia-lua à espera do próximo pinto e eram já tantos que se escondiam debaixo das suas asas que parecia que tinham sido chocados todos de uma só vez. Fruíam de um ar feliz, branquinhos de pele e rosados, tão louros como trigo maduro e brincavam uns com os outros, como se o quintal fronteiro à casa se tratasse do recreio de um colégio privado. Habitavam uma capoeira de paredes brancas e janelas de guilhotina e durante o dia imaginava-os a debicar em púcaras de barro e à noite empoleirados em ripas de madeira encaixadas nas paredes. Quanto ao marido que andava de mercedes e fazia casas à medida das necessidades, exibia-se como um poderoso chefe de poleiro e não perdia uma oportunidade para reafirmar o seu império de pato metamorfoseado em galo. Tinha o raro dom de ganhar dinheiro e ela sabia gastá-lo como ninguém.

Quando adulto, na idade já permitida a confidências, os mais velhos da família confiaram-me todos os segredos. Verdades transmitidas de geração em geração, manchadas por esquecimentos e algum facciosismo, mas tão verdades como quaisquer outras. Foi nessa altura que desvendei que a família da referida já há muito pertencia à classe das aves e que além dela havia na aldeia uma catrefada de bichos com aparência humana, desde os mais comuns, os burros, por falta de inteligência, alguns cavalos pela escassez de jeito em lidar com o social, ratos e ratazanas por deitarem a mão ao alheio, cobras pela sua língua bifurcada e viperina, doninhas fedorentas por razões óbvias, porcos, macacos, lobos e cordeiros, por requisitos vários.

Na boca sábia dos antigos nada escapa e tudo tem nome. Qualquer acto encaixa num figurino e, no fundo, poucos são humanos como eles próprios. O seu conhecimento profundo da animalidade dava-lhes tipologias de comportamentos que assentavam como uma luva na conduta dos vizinhos, desvendando por baixo dos tapumes um autêntico jardim zoológico em plena aldeia. E, se quase todos eram falsas aparências, perguntei se aos nossos olhos – da família – mais alguém seria humano como nós. Claro que sim! Relações sem mácula, solidariedade centenária entre famílias mais chegadas, motivos para se confiar que a espécie não estava em perigo de extinção.

Mas desde aí pairaram sempre dúvidas da minha humanidade aos olhos dos outros. Na certeza porém de que aquela galinha que depenicava couves, engolia milho, soltava ovos brancos com gemas mais amarelas que girassóis e fugia espavorida sempre que me via tinha uma pancada só admissível nos humanos…