Joaquim era um ponto. Poderia ser um ponto de rebuçado, um ponto adiante ou um ponto atrás, um ponto de fusão ou um ponto cardeal, um ponto de partida ou um ponto de vista, um ponto de apoio ou um ponto morto. Mas era simplesmente um ponto. Vivia na esperança de um parágrafo ou final de período, tal como um professor recebe com alívio as férias escolares. Só que os períodos e os parágrafos são como os rios: há pequenos, tão pequenos que escorrem em gotas por falésias, magros como cães de rua, e outros tão largos como continentes e demoram anos a passar. Mas ambos, em meses de barriga grande, engrossam os seus caudais, e os pequenos tornam-se tão grandes como horizontes elásticos e os maiores, em mares de perder de vista.
Mas quando chegavam, uns e outros, era uma festa! Joaquim adorava ser feitor de pausas significativas, libertador de ritmos, obreiro de personagens. Estava sempre a postos como uma sentinela. Vamos Joaquim! A intimidade com as palavras era tal que não podia viver sem elas. “No meio das palavras é que se está bem, sinto-me real!” testemunhava para o ponto de exclamação, um parente esguio como um pau de vassoura. Aliás, a sua existência dependia absolutamente delas. “O que seria de um ponto isolado no meio de uma página em branco? Que sentido teria um final se nada tivesse começado?” Perguntava a um ponto de interrogação, um ser sorumbático com um nariz arqueado.
Mas, da mesma forma, as palavras sem pontuação não poderiam constituir textos. É necessária ordem e não há ordem sem quebra de ritmos, sem um cerco provisório à liberdade absoluta de sua disposição. As palavras, em si mesmo, não traduzem sentidos e pouco se importam com a barafunda. Podem até aparecer na sua máxima extensão, tal como num dicionário aberto. Mas o sentido, a poesia, a prosa, exigem a exclusão, o emparcelamento de vidas que percorrem os textos.
Joaquim sentia orgulho nessa actividade de ordenador. “Uma espécie de demiurgo de sentidos cruzados”, afirmava ufano. Todo empertigado, apresentava-se no final dos períodos com aquela segurança de quem tinha autoridade de pôr fim à brincadeira. Ou no fim dos parágrafos, sobre um abismo, segurando-se para não cair, criando uma fronteira ao vazio. E fechava sempre o texto, como uma tranca na porta, uma prerrogativa de dono da casa das palavras. Por isso, sentia-se importante e exigia o devido respeito. A palavra que o seguia tinha o dever de se vestir com roupa de festa – ou dito de outra forma, de maiúscula – e detestava ser mal utilizado por escritores imberbes. Não gostava de uma certa escrita contemporânea, onde se esqueciam com facilidade dele próprio, com desmesurados corredores de termos sem eira nem beira e com dificuldades colocadas aos leitores menos atentos. Aliás, gostava mais dos clássicos, que dominavam os casos como os artesãos dominam as artes.
Por vezes fazia-se acompanhar da prima, no estatuto de
ponto e vírgula, mas não gostava desse papel. Tarefa complicada para destrinçar a sua utilidade, de uso difícil e pouco eficaz. Por isso era raro reduzir-se a esse estatuto, numa companhia pouco recomendável e, ainda por cima, tão juntos que pareciam amantes. Aliás, nunca mostrou grande estima pela sua familiar. Achava-a atrevida e pouco educada. “Uma doidivana, com tendência a utilizações desregradas, isso é o que ela é!”
Mas, um dia, Joaquim cansou-se de ser quem era. Fartou-se de protagonismo, imaginou-se reformado e sem a árdua tarefa de ser o grande obreiro dos sentidos do texto. Não queria retirar-se das lides, mas pretendia ter um papel mais pudico. Por coincidência, conheceu um ponto feminino que o surpreendeu na inteligência e recato, e depois de um namoro rápido, casou numa folha A4 mais branca que a neve e passou a dois pontos. Foi então que, por obra e graça de um escrevedor, nasceu-lhe um filho e se transformou em
reticências. Ao misturar-se perdeu identidade, mas ganhou sabedoria. As reticências permitem interromper o texto antes de ter esgotado o pensamento, mas deixando sugerir o que se omite. Ora, esta é uma potencialidade que fortalece a fantasia, um lugar de poesia, um incentivo ao engenho.
Solto da sua rigidez de ponto, encontrou serenidade na tolerância. E quando o futuro reserva uma brecha, há sempre permissão na escolha. E sabem como é …