sábado, 24 de maio de 2008

O consultório

Era daquelas mulheres que, ao revelar-se em locais concentrados de masculinidade, faz subir a testosterona a níveis claustrofóbicos. Sentou-se na única cadeira vaga, com a face a roçar as folhas azuis da miosótis, cruzou as pernas, a direita deslizou suavemente sobre a outra e a dezena de pacientes que se encostavam à parede como quadros abandonados, analisaram o movimento com visível incómodo. Ouviram-se sons guturais para afastar maus pensamentos e alguns revoltearam-se nas cadeiras ajeitando-se ao novo cenário. O vestido vermelho vivo atraía os olhares e todos se comportavam como touros em faena psicológica. Mas após a enorme inquietação, reapareceram sintomas de acalmia, uns espiando revistas velhas de anos atrasados, outros contemplando o tecto, mas sempre com um olho em disfarce pousado nas pernas altas e descobertas da recém-chegada.

Uma única mulher no meio de um grupo de homens é invulgar num consultório médico, mas naquela tarde abafada de Agosto mais parecia que a masculinidade, de repente, se vira afectada na capacidade visual. Todavia, a mulher não evidenciava qualquer azedume e em vez de constrangimento assumia uma passividade mais próxima da vaidade do que propriamente resignação. Ser o centro das atenções era uma situação banal na vida de Lúcia Alecrim, nome de solteira, menos era a sua história, carregada de peripécias e jogos de poder.

Os nomes já rodam na tômbola da secretária, enunciados de forma firme, enquanto na penumbra do gabinete, um especialista de óculo de mineiro na testa, os espera de mão estendida. José Branquinho Estevão!. Alguém se ergue triunfante, enquanto os outros se recompõem em postura resignada. Como se vivessem na expectativa de que aquele aglomerado de nomes e apelidos, num acaso civilizacional, ostentasse a sua individualidade. Mas o certo é que o nome é a única veste impossível de despir…

Alguns, num ritual que fazia lembrar comportamentos de doidos obsessivos, fixavam o relógio fazendo caretas de exaustão, outros com semblante impassível perante o desenrolar das horas. No entanto, a espera num consultório de um oftalmologista é mais suave do que noutro consultório médico. Os pacientes estão mais descontraídos, as doenças reunidas na sala não produzem qualquer contágio nem se escondem em subterfúgios, pois a miopia ou estigmatismo não é coisa que mate. Mesmo o estrabismo, em grau de grande disformidade, não provoca reacções de profunda distância afectiva. Não há melhor sala de espera que a de um oftalmologista!

Aos poucos, a sala foi-se esvaziando, como uma represa gasta pelo escoamento de águas das regas. Lúcia, a rapariga das pernas altas que se estendiam para sítios sem regressos, era agora a única com olhar expectante. Todos os que a vigiaram, nesse esforço desgastante em olhar sem ser olhado, já tinham exultado pelo seu nome ter ecoado no autofalante e saíam em conta gotas do consultório, atravessando a sala sem alterações sensíveis na postura. Traziam todos na mão papeis semelhantes, com desenhos de lentes e números, e sem surpresas de outros males bem piores que a falta de vista.

Mas Lúcia, com vida bem mais complexa que uma receita do género, ia ter um papel bem diverso. Nenhum dos pacientes que desaguaram na rua desconfiou que a razão da sua espera se prendia com questões distantes de estreiteza oftalmológica. A porta do consultório abriu-se e alguém surgiu na pele de homem e não de especialista de olhos, sem o ridículo óculo à mineiro. Lúcia achou-o mais magro e cansado, como se a distância o tivesse encarreirado na passadeira do tempo que envelhece. Uma noite, batera com a porta acusando-a de ser promíscua, ela negara com a fraca convicção de quem mente, e agora levantou-se naquelas pernas tão grandes que pareciam ultrapassar a altura da sala e ele fixou-a através das lentes azuis que tinha receitado a ele próprio e exclamou: “ como é possível que depois de uma tarde só com homens, míopes e estrábicos, surges sem avisar e sem marcação, mas com a confiança de quem faz parte de mim?...”

Como compreendem, uma frase destas é pouco provável numa situação de embaraço e ainda por cima num orador desprevenido. Mas por estranho que pareça, ou por armadilha da emoção ou aviso da secretária da voz firme, foi ipsis verbis e causou mossa na arrogância das pernas dela. Sorrisos recíprocos e olhares cúmplices anunciavam a bonança, naquele fim de tarde de Agosto, tão abafado como a própria tarde que o antecedera...

sexta-feira, 23 de maio de 2008

A memória é um rio...

A memória é um rio profundo e de águas turvas, sempre num movimento perpétuo em busca de um colo acolhedor. Nasce no momento que tomamos consciência de nós, cresce à custa dos acontecimentos e opções, ganha tamanho e profundidade à medida que os anos passam. O âmago, em permanente convulsão, às vezes, exterioriza-se em inundações que arrastam tudo à sua frente.

A memória é a massa de que somos feitos, a nossa génese – grandeza e miséria. A nossa raiz identitária. Transforma-nos em seres únicos e persistentes no tempo, dá-nos consistência, permite-nos os afectos, a linha de vida. Sem ela desaparecia o que fomos e o próprio futuro: só o projectamos pela inevitabilidade do passado. Como simples átomos presenciais, sem enquadramentos, seríamos pequenas poças de água que desapareceriam pouco tempo depois de formadas. O rio permite a continuidade da corrente, a força que constrói as margens.

A profundidade do rio depende da maior ou menor complexidade da vida. Se esta decorreu sem grandes sobressaltos, a memória é mais límpida, mais envolvente e menos áspera. Não tem necessidade de se afirmar de forma persistente. Pelo contrário, a sua afirmação vigorosa é exigida por vidas trágicas e as suas águas inundam os leitos.

Naturalmente, é possível viver sem memória. Como se o presente fosse uma conquista permanente ao esquecimento; viver a vida com indiferença e sem construções vinculativas. Da mesma forma, há o perigo de se viver apenas da memória. É recusar o futuro como uma traição ao passado. Como se um passo dado em frente representasse uma machadada à nossa própria essência.

Mas o rio é profundo, exige a pesquisa, a remoção de escombros e a perseverança. O fundo, em vez de transparente e acolhedor, é um remoinho sombrio capaz de manter a salvo tesouros ocultos. Mesmo aqueles rios tranquilos, supostamente benévolos a nadadores experimentados, podem esconder correntes fortíssimas que os fazem submergir na sua energia.

sábado, 17 de maio de 2008

Amantes em Contra-Mão...

Pela janela entrava um manto negro com pequenas frestas que faziam adivinhar um imenso céu azul. Piscas intermitentes no cimo da serra, provindas das torres eólicas, acrescentavam ao cenário um tom misterioso, semelhante a um genérico de um filme de marcianos, prestes a invadir território humano. Ao sinal de mensagem do telemóvel olhou maquinalmente o mostrador, à espera de encontrar as banalidades do costume: " estou atrasado para o jantar", "compra pão!" "liga à minha mãe" e outras com intuito comezinho de resolução dos problemas diários. Primeiro começou a ler e só uns momentos depois é que reconheceu a estranheza.

" Querida Lena. Após reflexão, é com mágoa que reconheço que a nossa relação sem futuro também deixou de ter presente. Não consigo conviver mais com a mentira, e cresce em mim o receio de que a minha mulher saiba da nossa história. O nosso caso de anos trouxe luz à minha vida, transformei-me em melhor pessoa. Vou guardar-te no coração. Mas os sinais são demasiado fortes e lá em casa a desconfiança anda a destruir tudo o aquilo que sempre quis preservar. Nunca te dei falsas expectativas. Juntos jurámos que a nossa relação nunca interferiria na nossa outra vida. Beijos, felicidades."

Releu. Ainda outra vez . O autor pensara seriamente no assunto, medira as palavras para sair airosamente da situação. Apesar do pouco senso em utilizar um telemóvel para as despedidas, desconheciam-se as urgências por trás de tal decisão abrupta! Ela com o telemóvel junto à face e com o semblante carregado, como se contemplasse as lágrimas bastas nos olhos de Lena e desespero nos gestos do amante. O certo é que nem ela se chamava Lena nem tinha amante! Naquela extensa tarde, enquanto esperava pelas horas de trazer o filho do colégio, efabulou com prazer sobre a possibilidade de uma aventura que valesse a pena. Um fulano com um físico escorreito, afável e carinhoso, tempo vago, sinais de afecto e sexo tórrido. Talvez não exista um disponível com essas potencialidades mas nada se perde em sonhar...

Nessa noite, ao jantar, o marido chegou bem mais tarde do que a hora marcada. A regra, instituída após o nascimento do João, determinava que o jantar era o espaço de comunicação por excelência e nada poderia impedir a presença de nenhum dos três. Regra quebrada uma vez por outra, mas que ele tentava cumprir à risca. O pequenito já tinha jantado e andava aos saltos no sofá da sala, frente à televisão, eles comiam, silenciosamente, vendo o telejornal, como sempre, cheio de terramotos e mortes. - É estranho como a morte se transformou numa vizinha tão cómoda que nem nos tira já o apetite! A observação dela não mereceu resposta, apenas um som de assentimento. Agora o tema era o desporto. Confusões com clubes e jogadores, transferências, árbitros e dirigentes, numa amálgama demente e estranha que ela não entendia patavina.

Quando todas as notícias se esgotaram e a emissão se preparava com grande frenesim para a telenovela da noite, estavam já na sobremesa, ela contou-lhe a peripécia da mensagem do telemóvel.
- Nem sabes o que me aconteceu! Recebi uma mensagem estranha! Com grande surpresa minha, tive um amante vários anos e hoje comunicou-me a rompimento, sem apelo nem agravo, com o argumento, pouco dignificante, mesquinho até, do receio de poder ser apanhado pela mulher! Como calculas estou destroçada com a situação! Espero que tenhas isso em conta, hoje e nos próximos dias...

E ria-se, ao mesmo tempo que lhe dava para as mãos o telemóvel com o texto no mostrador. Leu, com olhar surpreendido. Comentou qualquer coisa do género " que texto ridículo para terminar um relacionamento de anos!". Ela mudou de conversa.
- Sabes, ao longo da tarde, por causa desse engano, pensei que não me repugnava ter um amante! Naturalmente, um tipo asseado, escorreito, bom na cama! A nossa vida, ultimamente tem sido tão sensaborona...

Ele continuava a olhar para o mostrador do telemóvel, encarou-a sem nada dizer.
- A sério, julgo que nos iria fazer muito bem repartirmo-nos com dois estranhos que nos aguentassem metade das neuras, metade das angústias, metade dos medos! - repetia ela, sempre com um gozo no olhar e em tom de galhofa. Agora ria-se com vontade, com o telemóvel na mão e olhar fugidio pelas paredes da cozinha. Parecia que estudava uma solução. Ela não sabia se em relação ao conteúdo da mensagem, se em relação ao conteúdo das suas próprias afirmações.

- Vamos ligar-lhe! - disse ele eufórico. - Vai ficar mesmo à rasca!
- Não faças isso. Vai ser muito constrangedor para o homem!
- Azar o dele. Tivesse mais cuidado em guardar o seu próprio segredo. Aliás, quem termina uma relação de anos com uma mensagem SMS não merece outra coisa...
Passados uns segundos, com o telemóvel junto ao ouvido.
- Está? Estou a falar da parte da Lena...
- Hum... -
- Sim, julgo que foi o senhor que lhe enviou hoje a mensagem com uma infeliz notícia e quero dizer-lhe que tanto ela como eu estamos destroçados. Claro está, por motivos bem diferentes....
Depois de um silêncio, ela a tentar estancar o riso, o ar sério dele.
- Meu caro senhor, na vida temos de arcar com as responsabilidades. Depois de anos a dormir com a minha mulher, fazendo contas, talvez já seja mais sua do que minha. Por isso venho dizer-lhe que também terminei o meu relacionamento com a Lena, mas com maior ombridade, pois comuniquei-lhe o facto de olhos nos olhos...
- Mas quem fala?! perguntava o outro com voz cada vez mais aflita. Do lado de cá um silêncio. - Foi um engano, pelo qual peço desculpa. Mas, que eu saiba, a Lena não tem marido! Depois de enviar a mensagem percebi que tinha havido um equívoco. Engano estúpido, mas nada havia a fazer. Peço desculpa.
E aqui mudou o tom. Já ía longo o castigo!
-Tem razão, é uma brincadeira! Mas no futuro, deve ter cuidado com o que faz com o seu telemóvel senão ainda acontece alguma desgraça...
- Mereci a chacota! Aprendi a lição. Na próxima, vai em carta registada!

E já ia a desligar, quando o marido lhe perguntou:
- Já agora, perdoe-me a indiscrição, mas a Lena, como mulher, valia a pena? Era gira? Era boa?!!
- Já foi, já foi... - no meio de uma sonora gargalhada do outro lado do telefone.

Com gestos lentos, desligou e colocou o telemóvel na mesa, enquanto ela do outro lado o olhava de forma enigmática. De rompante fitou-a, por breves segundos, e com voz carregada perguntou: - Não és a Lena, pois não?!...

quinta-feira, 15 de maio de 2008

O Problema dos Contos com Final Feliz...

Eram simples colegas de curso na faculdade. Naquele dia, apressado e sem qualquer explicação prévia, entregou-lhe um subscrito à saída de uma aula. Após a surpresa, escondeu o papel no bolso das calças e à noite, fechada no quarto, leu-o, ao mesmo tempo que o espanto a invadia.

Apesar do receio de ser inconveniente e patético, a audácia foi mais forte. Venci este demónio do acanhamento que, de forma vil, me atrapalha e dificulta a saída para fora de mim. Reconheço que tu, mesmo que o tentasses, dificilmente reconstruías o meu rosto, enquanto eu sei de cor o teu corpo, o teu sorriso, os teus jeitos que, aos poucos, fui acrescentando através de observações minuciosas. Desculpa-me a indiscrição, mas a desconsideração do facto poderá ser amenizada pela bondade dos meus bons propósitos.

Do amor nada sei. Limito-me a inventá-lo, de forma a não ser apanhado desprevenido! E por mais que tente não o consigo definir, determinar nas suas nuances, apenas concluí que para amar só é necessário alguém que se ajuste, que se presenteie como objecto de amor. Encontrei em ti esse alguém. Mas não te assustes, pois o amor não exige a anuência do outro, basta que ele exista. E tu existes, tenho a certeza. Sinto-te, mesmo quando tu não estás presente.

Andei tanto tempo por aí, ouvindo a solidão no ar, doente de abandono… Mas a vida ofereceu-me um bom remédio. Renasci ao ganhar coragem de ter um tecto, de ter alma. Conquistei a segurança pela consideração ganha ao dizer que gosto de alguém. O que ficou para trás, por lá ficou, adormecido. Apenas me acompanham réstias frouxas de um tempo extinto que ainda me magoa, mas que já não tem o peso hediondo que me obrigava a esconder-me no silêncio. Sou feliz, graças a ti.

Releu a carta vezes sem conta. Até essa data nunca lhe despertara qualquer interesse especial. Reconhecia-lhe a inteligência nas intervenções e discussões em volta de trabalhos de grupo, mas sem qualquer magia a envolvê-lo. No dia seguinte, encontrou-o no átrio da faculdade, mas fortalecida pela promessa feita a si mesmo, entregou-lhe apenas um olá distante. No quarto não conseguira restaurar o seu rosto, tal como ele pressentira, e agora queria acumular matéria suficiente para o ajustar, caso necessário. Enquanto a aula decorria, ia recolhendo dados que lhe garantiriam uma representação aproximada do original. Os cabelos eram claros, o olhar inteligente, a ansiedade à flor da pele. A certa altura, no meio da pesquisa, encontrou um olhar, o dele, ao mesmo tempo assustado e brilhante, e ruborizou-se por ter sido surpreendida. Após esse dia, seguiram-se as peripécias naturais e os desenlaces.

Como proprietário único deste conto, colocou-se, nesta altura, a urgência em lhe garantir um final feliz. Um rapaz tímido e meio desengonçado, que consegue namorar com a rapariga mais bonita da turma e, no final do curso, casam-se e são razoavelmente felizes! Mas, infelizmente, não foi isso o que aconteceu. Com o argumento que não estava preparada para assumir compromissos sérios, seguiram caminhos divergentes e após a universidade nunca mais se reencontraram.

Mas qual a razão desta tendência natural para desejar desenlaces felizes? Por breve análise, reconhecemos que a vida é mais um campo minado e trágico do que um lugar de agasalho; nós somos mais parecidos com um grupo de veteranos de guerra, cheios de mazelas e amputações do que um rancho de gente jovial, com sorriso no rosto e sonhos cumpridos. O problema, julgo, radica na convivência demorada e reiterada com relações tristes e se pudermos acompanhar uma envolta em esperança ela garante-nos o conforto espiritual que nos aconchega à vida.

O mais paradoxal é que a grande maioria daqueles que vivem diariamente as histórias felizes da TV são os que exibem maior estoicismo perante a adversidade, sem luta e sem capacidade de reacção para inverter a sua história. Derrotados, magoados, sem nada esperar, confortam-se com pequenas migalhas que saltam da mesa dos ricos! Faz lembrar uma travessia de pântanos, onde apenas uns raios de sol, uns fios dourados, conseguem penetrar por entre árvores espessas, cujos ramos assentam em águas estagnadas…

segunda-feira, 12 de maio de 2008

O ESTRANHO CASO DOS NÓS CEGOS COM VISTA PARA O MUNDO

Era uma vez uma corda de sisal esquecida numa obscura loja de quinquilharias. Encontrava-se adormecida havia anos, no meio de uma confusão de prateleiras repletas de chocalhos, balanças, parafusos, martelos de todos os feitios, bacalhau miúdo, rações para gado e alguidares de plástico azuis e amarelos. Mas a calma de uma corda de sisal é maior do que a de um indivíduo prostrado por drogas sonolentas. Não protesta, mesmo sendo injustamente trocada por plásticos manhosos, onde os laços aderem mal em piso tão escorregadio…

Ora, um dia, entrou um boi, percorreu com o olhar as prateleiras vezes sem conta, até que em jeito de desistência perguntou ao paquistanês, dono do bazar: “não tem por acaso uma corda de sisal para fazer embrulhos?” O proprietário, há tanto tempo sem ver clientes, julgou ser uma alucinação. Esfregou os olhos, fitou o animal com o mesmo vigor de um toureiro profissional e com lances de capote que fez gritar “olé!” o periquito amarelo que voava do seu ombro para a cabeça e vice-versa, respondeu-lhe em tom cerimonial:

- Ouça, senhor boi, temos a mais perfeita corda do mercado, material originário das grandes planícies africanas. Poderá utilizá-la, segundo os melhores parâmetros, na construção civil, em touradas de rua, baloiços para todas as idades, acomodação de feno em palheiros e levantamento de bandejas de prata, se assim lhe aprouver… O boi sem perceber esta última finalidade ficou com uma tromba revirada durante segundos que pareceram horas, até que o vendedor o alertou,

- Acorda para a realidade e toca nela, toca, toca!… E o boi ao de leve passou a corda nos cornos e gostou da delicadeza do toque.
- Está bem, eu levo – disse.
- Toda? - questionou o lojista com satisfação no olhar.
- Não, apenas o suficiente para embrulhar o Mundo.
O paquistanês olhou-o à matador e comentou com ar desalentado:
- Para esse fim talvez não tenha o suficiente! Mas, sem querer ser indiscreto, para que quer embrulhar o Mundo?
- Sabe, senhor paquistanês, neste amontoado de seres isolados e tristes que é o mundo, quero construir laços suficientes para abraçar toda a humanidade e, com a mensagem, contribuir para agregar pessoas que se sentem sós. Tal como eu.

O paquistanês, devido à sua cultura oriental, não compreendeu a metáfora e as razões que levariam um boi a preocupar-se com o individualismo humano. Mas mesmo assim prometeu ajudá-lo. Com alguma sorte o novelo existente na loja daria para o efeito. Levaram dois anos e três dias a medir, metro por metro, até atingir o tamanho exacto, já contando com os excedentes necessários. A montanha de corda era já tão alto que não cabia na Terra e lembraram-se que o melhor seria arrumá-la no exterior. Colocaram uma extremidade no bico do piriquito amarelo que voou primeiro para o telhado, depois para uma nuvem branca e continuou céu acima até sair da atmosfera, iniciando a volta ao Mundo, numa viagem que demorou um ano e dois dias. Na Terra, o boi e o paquistanês sentados à porta do bazar que ninguém visitava pela desarrumação, alinhavam a corda para que não surgissem atilhos fora do sítio programado.

A vida tem aquela vantagem metafísica de exigir sempre aos seus membros caminhos de redenção. Como nunca dá de mão beijada a felicidade, exceptuando aos loucos, obriga a todos os intervenientes o caminho da angústia para a encontrar. Tal como acontece com os protagonistas desta história. O boi por ser sonhador, o paquistanês pela sua bondade, o piriquito pela generosidade. O sonho, a bondade e a generosidade não acompanham o ritmo do tempo e, com base neles, não se consegue obter o que a maioria identifica como sucesso e bem-aventurança. Ora, enquanto o periquito transportava a corda à volta ao Mundo e o boi e o paquistanês permaneciam à porta do bazar a olhar para o céu, num silêncio tão forte que apenas ouviam o barulho dos seus próprios pensamentos, os três concluíram ao mesmo tempo que o projecto, pelo menos, permitira cimentar amizade entre eles.

Mas a tarefa foi mais complicada do que o previsto. Com enorme dificuldade o periquito amarelo remava contra os ventos, desviava-se de satélites e detritos perdidos no espaço, dos tiros de caçadeira e projécteis de armas de todos os feitios, disparadas de pontos tão distantes que parecia haver guerras em todo o lado. Quanto ao boi e ao paquistanês, o trabalho meticuloso de não deixar enriçar a corda, olhando-a a subir lentamente, originou em ambos dores agudas no pescoço e, a certa altura, um tédio tão forte que desejaram morrer. De bom grado trocariam de funções com o pássaro, pela oportunidade de vislumbrar as cores as paisagens do Mundo, mas sem asas teriam de ficar com os pés assentes na Terra e suportar o tédio da espera.

Quando a corda chegou a todos os pontos, comentou o paquistanês,
- A corda já está colocada, falta dar os nós nos sítios certos, mas onde está o papel de embrulho?
- Não é necessário, não vês este azul lindíssimo, misturado com manchas cinzentas. – o boi apontava para o céu.
- Mas são as nuvens… - retorquiu o paquistanês.
- Assim irá ficar. Procurei outras cores e texturas mas não encontrei nenhumas mais belas.

Os três concordaram. Por determinação precisa do boi, o periquito amarelo deu nós górdios no polo Ártico e no Antártico, laços sobre os Continentes e no final o Mundo parecia uma prenda. Os três, abraçados, riam-se divertidos pelo êxito da empreitada, com a óbvia mensagem da necessidade em encontrar caminhos mais fraternos e solidários.

O problema é que o projecto passou completamente despercebido. Como se perdeu o hábito de olhar o céu e os radares não identificaram a corda que ligava todos os pontos da Terra, ninguém acreditou na história contada pelo paquistanês. Desiludido, fechou a loja e saiu sem destino na companhia dos novos amigos. Quanto à corda, após o embrulho se rasgar – devido a tempestade medonha – desprendeu-se, iniciando a viagem pelo universo com a calma de uma corda de sisal.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

A eficácia do ridículo

A reunião comemorava qualquer coisa importante. Sem gravatas e pose domingueira, enquanto o chefe ia fazendo os salamaleques habituais nestas situações, colocou-se, estrategicamente, num pequeno grupo de conhecidos que vagabundeava pelo redondel, todos com pedaços de carne de vaca presos a fatias de broa de milho. O líder desse grupo era uma personagem política muito popular, não só pela simpatia pessoal como pela sua corpolência, dono de uma barriga tão redonda e saliente que não parecia verdadeira. A conversa banal decorrente justificava a comida e a roda feita. Era o importante que tomava as rédias da conversa até que a cerveja, de rompante, lhe entrou no goto, uns momentos de impasse numa tentiva de não fazer estragos, até que um jacto proporcional à sua corpulência é expelido para diante sem tempo para pedir desculpa nem precauções aos membros do grupo. O repuxo atingiu-o a ele com a violência de mangueiras da polícia de choque. Sentiu cerveja quente na cabeça, depois na testa e nos óculos. Pelo andar da carruagem depressa atingiria o corpo todo.

Enquanto o autor do descuido pedia desculpas sinceras, na vítima era nítido o estado de choque. Inerte, resignara a inventar-se dentro de um pesadelo e o que se passava à sua volta não seria mais do que uma situação quimérica. Mas as manchas sobre a indumentária cresciam à medida que o líquido ensopava os tecidos, movendo-se como um animal com vontade própria. Penalizou-se por não encontrar lenços nos bolsos e os excessos na face retirava-os com a palma da mão, como se tratasse de um simples gesto de descontracção. A situação tornava-se insuportável. Agora que uma gota enorme, sorrateira, viajava na lente esquerda e transformava o cenário em campo de nevoeiro cerrado. A conversa decorria e mesmo sem ver o protagonista e ter perdido o fio à meada, mantinha a concordância através de sinaléticas da cabeça. Reconhecia-se numa ratoeira, incapaz de se soltar. No futuro de todos os presentes, em conversas que celebram o ridículo como ponto alto da convivência humana, ficaria para sempre lembrado como aquele que fora afogado num arroto de cerveja. Desprezariam o seu valor. Seria engolido por uma circunstância, ridícula na sua essência.

Aos poucos, a artificialidade da conversa fracassou. Já não era um simples olhar, mas vários, arrogantes, desafiadores, gozando com a prostração dele, com o seu aspecto lastimoso, trágico. O esforço até à exaustão para manter a normalidade e a atenção se concentrasse em algo exterior voltava-se contra o próprio. Todos, inclusive ele, o reconheciam. Os sorrisos deixaram de ser lamentos e passaram a ironia. Já não o consideravam vítima mas um palhaço tristonho, envolvido em manto de pilhérias. Apesar de alguns ainda o analisarem com subtileza cruel, os outros, abertamente, com evidente repugnância. Um do círculo imperfeito tomou a iniciativa e ofereceu-lhe o lenço azul bébé. Ele recebeu-o com nítido acanhamento. Foi o começo do fim. O riso absurdo, o próprio agente do descuido era também agora autor e actor de comédia, qual conversa qual quê! A vítima, vermelho até às orelhas, ria que nem um perdido para não acicatar mais o ridículo sobre ele. (imagine-se a mesma situação tentando chamar a atenção do grupo para gravidade da situação!) Até que esgotada a graça em gargalhadas, ganhou coragem e saiu sem explicar para onde.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Esta estranha mania de ter pressa...

A natureza do tempo actual é a do adiamento e ser ansioso é uma chatice. Os empregos tardam, o dinheiro é pouco para tantas ambições, amores tardios anseiam por príncipes, aguarda-se com paciência de chinês uma consulta médica e o trânsito caótico nas estradas agrava mais o problema. A sociedade rejeita os ansiosos. Cada vez mais se estimulam esperas estóicas e crescem multidões de resignados. Por outro lado, sendo uma época submetida ao bem espiritual e físico, a ansiedade é proscrita como prejudicial à saúde, tal como tabaco ou a vida sedentária.

Mas não há erro nenhum na ansiedade. Seria tão absurdo como a acusação de ter pedra no rim ou reumático no cotovelo. Ninguém opta por um tipo de personalidade como quem escolhe um par de sapatos. Apenas o portador terá que se acomodar ao feitio e às mazelas decorrentes e encontrar mecanismos de desanuviamento, tal como a chaminé que liberta o fumo da lareira.

E, convenhamos, ter pressa é uma maçada. Querer tudo na hora, sem atrasos nem equívocos. A felicidade define-se pela surpresa infindável e a recusa da espera. A espera é um campo de angústia. Mesmo atingido o objectivo, não dá gozo nenhum. O ansioso detesta o prazo, adora a surpresa. Quando espera, consome-se. O alívio causado pela aparição do objecto de desejo nunca consegue colmatar o sofrimento causado. Sofre-se imenso ao olhar para um relógio que é mais lento do que um burro velho.

Por tudo isso, o sossego é a sua mira: não esperar nada, nem ninguém, nem o outro dia, nem o futuro. Como se qualquer ambição, por ser fruto de variáveis que não domina, devesse ser banida das preocupações. Procura-se o resultado e não o caminho. Qualquer caminhada é um desafio demasiado cruel. Prefere a meta.

Mas nem tudo é negativo numa personalidade ansiosa. Está vivo. O ritmo frenético não deixa que o mundo passe ao lado. Não anda a ver navios. Joga a vida sem esperar que os outros mexam os cordelinhos. E nunca desperdiça o princípio dos filmes, alguns fundamentais para a compreensão do todo; e nunca perde o comboio. Ás vezes, perde a paciência, mas esse é a cruz do ansioso: o dever de arquitectar uma paciência infinita para os não ansiosos.

domingo, 4 de maio de 2008

Gostar e Desgostar...

Gosto de ti sem razões. Gosto porque gosto. Como se o gostar não fosse o resultado de um encadeamento de premissas, mas um dado adquirido por intuição. (sei lá eu o que quero dizer!...)

Desgosto de ti nalgumas coisas. Tu sabes quais. Mas desgostar de ti nalgumas coisas não me obriga a não gostar de ti. A soma das coisas que desgosto em ti não são suficientes para questionar o gosto por ti. Aliás, nunca são suficientes. Não é o caso, claro, mas só assim se percebe como alguém pode gostar de outrém que, tendo tão pouco em si de gostável, ao ser um sacana pérfido, imaturo, leviano, delinquente e tantas outras desqualidades, por ele deixe arrastar o coração pelas ruas da amargura!

Por isso, é mais fácil desgostar do que gostar. Não se gosta só por que se quer gostar. Gostar não é a soma de tudo o que se gosta mais a subtracção do que se desgosta. A matemática apenas tem interesse nas mercearias. Não no gostar. O gosto por alguém surge como uma irresponsabilidade nossa, sem se ter em conta se ele tem o mesmo gosto por nós; se nele há tantas coisas que se desgosta que o gostar vai ser um percurso cheio de mágoas e desgostos. Gosta-se, pronto.

Assim, gosto de ti, mesmo tendo em conta que há em ti coisas que me desgostam, como aquela mania tua de me questionares os futebóis e os cozinhados, como aquela irresponsabilidade melancólica que te esconde os problemas e te faz refugiar no amanhã para os resolver.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

E a morte aqui. Tão perto...

- Estou, António?
- Sim?!
- Desculpa, já é muito tarde. Estavas deitado?
- Sim. Mas quem fala?
- M., estás a ver quem é?
- (silêncio) Não. Do outro lado do fio uns soluços presos, como se saíssem de uma torneira quase bloqueada.
- Lembras-te, há três anos, do festival do Ramo Grande? Fazíamos parte daquela mesa divertida, mesmo perto do palco, com o médico? Foi tão engraçado…
- Ah, sim, é claro! Foram três noites óptimas. Peço-te desculpa, mas já havia tanto tempo que…
- Não te justifiques! Deves achar absurda a surpresa, a estas horas da madrugada! Sabes, estou aqui tão sozinha e não sabia a quem ligar…
- Onde estás?
- No Hospital de Coimbra. Já andava a sentir-me em baixo há bastante tempo. Diagnosticaram-me um cancro na cabeça. Hoje. Em estado já muito avançado e é maligno. Resta-me muito pouco tempo de vida.

Uma pausa. Do lado de lá um choro miudinho como quem se embala nele. Deste lado uma ausência de palavras como se qualquer uma que se encontre não se adaptasse de forma afável à situação. Logo nestas alturas em que precisamos delas para mostrar desconforto.

-Tem calma. És ainda tão nova e há tratamentos cada vez mais eficazes. É necessário que encontres em ti o máximo de energia para lutar contra isto.
- Julgo que não sou capaz. Nestes últimos meses a minha vida tem sido um inferno. Parece que caí num abismo e, por muito que me tente segurar, há forças que me atiram ainda mais para baixo. Não sei se sabes, divorciei-me, as coisas com o meu ex-marido não têm sido nada fáceis. Com ele, com a família dele, com os filhos… E agora isto.
- Lamento muito. Não fazia a mínima ideia…
- Olha, vai dormir. Obrigado por me teres ouvido. Reza por mim, se souberes.

Desligou sem me dar oportunidade para lhe desejar boa sorte ou mostrar disponibilidade em ouvi-la sempre que quisesse desabafar. Fiquei com o auscultador na mão sem saber bem o que fazer com ele. A noite ia já longa e não conseguiria dormir. O mar bem perto da janela começava a clarificar-se nas suas nervuras que desaguavam na Prainha e o céu nublado encostava-se à terra ainda meio adormecido. Após confidências, onde a tristeza escorre por canais que desaguam na alma, ficamos com o corpo mais pesado, como se o sofrimento tivesse densidade que acusasse em balanças. Mas nessa madrugada ainda não poderia saber que M. faleceria poucas semanas depois, após uma luta renhida contra a doença e já acomodada aos afectos que julgava ter perdido nos meandros de noites mal-dormidas. Comigo, foi a sua última conversa.