Era daquelas mulheres que, ao revelar-se em locais concentrados de masculinidade, faz subir a testosterona a níveis claustrofóbicos. Sentou-se na única cadeira vaga, com a face a roçar as folhas azuis da miosótis, cruzou as pernas, a direita deslizou suavemente sobre a outra e a dezena de pacientes que se encostavam à parede como quadros abandonados, analisaram o movimento com visível incómodo. Ouviram-se sons guturais para afastar maus pensamentos e alguns revoltearam-se nas cadeiras ajeitando-se ao novo cenário. O vestido vermelho vivo atraía os olhares e todos se comportavam como touros em faena psicológica. Mas após a enorme inquietação, reapareceram sintomas de acalmia, uns espiando revistas velhas de anos atrasados, outros contemplando o tecto, mas sempre com um olho em disfarce pousado nas pernas altas e descobertas da recém-chegada.
Uma única mulher no meio de um grupo de homens é invulgar num consultório médico, mas naquela tarde abafada de Agosto mais parecia que a masculinidade, de repente, se vira afectada na capacidade visual. Todavia, a mulher não evidenciava qualquer azedume e em vez de constrangimento assumia uma passividade mais próxima da vaidade do que propriamente resignação. Ser o centro das atenções era uma situação banal na vida de Lúcia Alecrim, nome de solteira, menos era a sua história, carregada de peripécias e jogos de poder.
Os nomes já rodam na tômbola da secretária, enunciados de forma firme, enquanto na penumbra do gabinete, um especialista de óculo de mineiro na testa, os espera de mão estendida. José Branquinho Estevão!. Alguém se ergue triunfante, enquanto os outros se recompõem em postura resignada. Como se vivessem na expectativa de que aquele aglomerado de nomes e apelidos, num acaso civilizacional, ostentasse a sua individualidade. Mas o certo é que o nome é a única veste impossível de despir…
Alguns, num ritual que fazia lembrar comportamentos de doidos obsessivos, fixavam o relógio fazendo caretas de exaustão, outros com semblante impassível perante o desenrolar das horas. No entanto, a espera num consultório de um oftalmologista é mais suave do que noutro consultório médico. Os pacientes estão mais descontraídos, as doenças reunidas na sala não produzem qualquer contágio nem se escondem em subterfúgios, pois a miopia ou estigmatismo não é coisa que mate. Mesmo o estrabismo, em grau de grande disformidade, não provoca reacções de profunda distância afectiva. Não há melhor sala de espera que a de um oftalmologista!
Aos poucos, a sala foi-se esvaziando, como uma represa gasta pelo escoamento de águas das regas. Lúcia, a rapariga das pernas altas que se estendiam para sítios sem regressos, era agora a única com olhar expectante. Todos os que a vigiaram, nesse esforço desgastante em olhar sem ser olhado, já tinham exultado pelo seu nome ter ecoado no autofalante e saíam em conta gotas do consultório, atravessando a sala sem alterações sensíveis na postura. Traziam todos na mão papeis semelhantes, com desenhos de lentes e números, e sem surpresas de outros males bem piores que a falta de vista.
Mas Lúcia, com vida bem mais complexa que uma receita do género, ia ter um papel bem diverso. Nenhum dos pacientes que desaguaram na rua desconfiou que a razão da sua espera se prendia com questões distantes de estreiteza oftalmológica. A porta do consultório abriu-se e alguém surgiu na pele de homem e não de especialista de olhos, sem o ridículo óculo à mineiro. Lúcia achou-o mais magro e cansado, como se a distância o tivesse encarreirado na passadeira do tempo que envelhece. Uma noite, batera com a porta acusando-a de ser promíscua, ela negara com a fraca convicção de quem mente, e agora levantou-se naquelas pernas tão grandes que pareciam ultrapassar a altura da sala e ele fixou-a através das lentes azuis que tinha receitado a ele próprio e exclamou: “ como é possível que depois de uma tarde só com homens, míopes e estrábicos, surges sem avisar e sem marcação, mas com a confiança de quem faz parte de mim?...”
Como compreendem, uma frase destas é pouco provável numa situação de embaraço e ainda por cima num orador desprevenido. Mas por estranho que pareça, ou por armadilha da emoção ou aviso da secretária da voz firme, foi ipsis verbis e causou mossa na arrogância das pernas dela. Sorrisos recíprocos e olhares cúmplices anunciavam a bonança, naquele fim de tarde de Agosto, tão abafado como a própria tarde que o antecedera...
Uma única mulher no meio de um grupo de homens é invulgar num consultório médico, mas naquela tarde abafada de Agosto mais parecia que a masculinidade, de repente, se vira afectada na capacidade visual. Todavia, a mulher não evidenciava qualquer azedume e em vez de constrangimento assumia uma passividade mais próxima da vaidade do que propriamente resignação. Ser o centro das atenções era uma situação banal na vida de Lúcia Alecrim, nome de solteira, menos era a sua história, carregada de peripécias e jogos de poder.
Os nomes já rodam na tômbola da secretária, enunciados de forma firme, enquanto na penumbra do gabinete, um especialista de óculo de mineiro na testa, os espera de mão estendida. José Branquinho Estevão!. Alguém se ergue triunfante, enquanto os outros se recompõem em postura resignada. Como se vivessem na expectativa de que aquele aglomerado de nomes e apelidos, num acaso civilizacional, ostentasse a sua individualidade. Mas o certo é que o nome é a única veste impossível de despir…
Alguns, num ritual que fazia lembrar comportamentos de doidos obsessivos, fixavam o relógio fazendo caretas de exaustão, outros com semblante impassível perante o desenrolar das horas. No entanto, a espera num consultório de um oftalmologista é mais suave do que noutro consultório médico. Os pacientes estão mais descontraídos, as doenças reunidas na sala não produzem qualquer contágio nem se escondem em subterfúgios, pois a miopia ou estigmatismo não é coisa que mate. Mesmo o estrabismo, em grau de grande disformidade, não provoca reacções de profunda distância afectiva. Não há melhor sala de espera que a de um oftalmologista!
Aos poucos, a sala foi-se esvaziando, como uma represa gasta pelo escoamento de águas das regas. Lúcia, a rapariga das pernas altas que se estendiam para sítios sem regressos, era agora a única com olhar expectante. Todos os que a vigiaram, nesse esforço desgastante em olhar sem ser olhado, já tinham exultado pelo seu nome ter ecoado no autofalante e saíam em conta gotas do consultório, atravessando a sala sem alterações sensíveis na postura. Traziam todos na mão papeis semelhantes, com desenhos de lentes e números, e sem surpresas de outros males bem piores que a falta de vista.
Mas Lúcia, com vida bem mais complexa que uma receita do género, ia ter um papel bem diverso. Nenhum dos pacientes que desaguaram na rua desconfiou que a razão da sua espera se prendia com questões distantes de estreiteza oftalmológica. A porta do consultório abriu-se e alguém surgiu na pele de homem e não de especialista de olhos, sem o ridículo óculo à mineiro. Lúcia achou-o mais magro e cansado, como se a distância o tivesse encarreirado na passadeira do tempo que envelhece. Uma noite, batera com a porta acusando-a de ser promíscua, ela negara com a fraca convicção de quem mente, e agora levantou-se naquelas pernas tão grandes que pareciam ultrapassar a altura da sala e ele fixou-a através das lentes azuis que tinha receitado a ele próprio e exclamou: “ como é possível que depois de uma tarde só com homens, míopes e estrábicos, surges sem avisar e sem marcação, mas com a confiança de quem faz parte de mim?...”
Como compreendem, uma frase destas é pouco provável numa situação de embaraço e ainda por cima num orador desprevenido. Mas por estranho que pareça, ou por armadilha da emoção ou aviso da secretária da voz firme, foi ipsis verbis e causou mossa na arrogância das pernas dela. Sorrisos recíprocos e olhares cúmplices anunciavam a bonança, naquele fim de tarde de Agosto, tão abafado como a própria tarde que o antecedera...