sexta-feira, 25 de abril de 2008

O Segredo

I - Há sempre uma zona de nós envolta em nevoeiro. Geralmente, identificamo-la com histórias atribuladas, desculpabilizadas por imaturidade e ingenuidade. Essa parte de nós cresce, ganha raízes, construindo, pouco a pouco, a nossa consistência. Dessa forma, nem nós temos as peças todas do que somos feitos. Temos uma aproximação, por um jogo de puzzles, onde faltam pedaços, espaços em branco, vazios que temos de inventar.

Temos desculpas, não temos todas as explicações. Aquela "face negra" não se partilha. Falar, significa elucidar, ilustrar, colocar no seu lugar, interpretar; falar nem sempre significa esclarecer. Há sempre uma parte da história que resta na obscuridade, num jogo de sombras, que não se deixa apreender mesmo por um investigador experimentado. A nossa verdadeira matriz é apenas acessível a nós próprios. Mesmo quando declaramos a dor de ser trocado por outro, isso significa muito mais do que o espelho do desconforto. Não afirmamos tudo, além do desconsolo que o facto originou. Por dizer ficaram os traumas causados ao nosso amor-próprio, horas passadas em frente à casa dos amantes, pedidos de desculpa patéticos, escarnecimento absoluto da nossa importância. É nesse lugar cruel onde nos revelamos na nossa imagem mais frágil. Por muito que se diga, o pior de nós fica apenas connosco.

As "figuras tristes" que vamos espalhando pela vizinhança nunca se esgotam. Somos o seu guardador de rebanho. Mesmo quando abrimos o jogo que desempenhamos neste teatro que é a vida, ficam guardados os pormenores mais cruéis. Um baú de viagem que nos persegue em todas as paragens. Ao recomeçarmos, indecisos, questionamo-nos: digo isto e aquilo? Logo se vê! Amputamos pormenores que poderiam causar danos irreparáveis na nossa imagem. O resto mantém-se nas masmorras. Com a desculpa de que o diremos quando a confiança amadurecer. Uma sobra para sempre perdida, subjugada pelo peso da vergonha, da timidez, da ignorância, do descrédito.

Crescemos à custa de silêncios, palavras não ditas, verdades não reveladas. O segredo é a nossa matéria-prima. Concedem-nos segredos quando nos julgam dignos de os calar. Há segredos que deixam de o ser à medida que nos vamos ajustando ao tempo, à idade, às circunstâncias. Há outros que permanecem colados a nós como lapas às pedras do mar.

II - Somos personagens misteriosas, todos temos esconderijos, alguns tão recônditos que nem nós os identificamos. Vêm ao cimo como o azeite em alturas mais melancólicas. Adormecidos, pairam como primos afastados, encontramo-los no final das festas, nos jantares de casamentos. No tempo restante passam tão despercebidos como cães vadios.

E todos nós temos segredos. Alguns fazem-nos mal como cancros adormecidos e prescindíamos deles sem custo. O problema é que não nos abandonam e vão ficando como arrendatários chatos, quezilentos, que só desocupam as casas à força da inconsciência. Outros são serenos, iluminam-nos a face e guardamo-los como preciosidades. Julgamo-nos felizes por os transportarmos vida fora, sem pena de serem só nossos e sem necessidade de os partilhar. Mas na vida há sempre um segredo determinante, um monstro que nos vai roendo as entranhas. Tão grande que parece não caber em nós e contra ele utilizamos armas poderosas como lamúrias, lágrimas e químicos. Garante o peso da vida, dá-lhe intensidade, concede-lhe densidade. É perigoso como uma bomba atómica.

Este causa sofrimento. Empurramo-lo para o mais profundo de nós, tentamos aprisioná-lo nas masmorras para que não nos apoquente com as suas manifestações. E a única forma de o amenizarmos é através da partilha. Falar dele significa reduzi-lo na sua dimensão. Perderá tanto mais a sua força quanto maior a sua partição. Deveria haver a possibilidade de uma purga colectiva onde os despejássemos e daí, por cloacas cósmicas, desaguassem no universo…

O que mais se aproxima desta catarse é a confissão católica. Um hábito perdido, injustamente extraviado, apesar das infinitas potencialidades que apresenta. Lá poderíamos exorcizar fantasmas, com alguém desconhecido que nos ouve com um silêncio acolhedor e no final manda-nos em paz. Também existem os psiquiatras que ficam gratos quando os procuramos! Mas aí a revelação é sempre mitigada pela presença de um estranho que não gosta de nós e nos ouve à custa de um preço. Haverá sempre aquela tendência de julgarmos que, ao entrar no seu gabinete, enquanto nos aperta a mão, pensa “ Que chatice! Nem me recordava que este doido vinha hoje!”. E no final, tem a tendência quase obsessiva de receitar uns anti-depressivos, como quem diz “ toma que isso passa”… Seria o mesmo que acreditar que o sexo pago permite ultrapassar a solidão!

III - Voltei como um ex-presidiário à aldeia. Estimado pela generalidade dos vizinhos, há muitos anos, saí sem dar desculpas e agora no regresso retenho sobre os ombros vergonhas antigas. A maioria permanece com semblantes carregados da idade e das guerras e olha-me como se eu tivesse mil segredos por desvendar. Tento sorrir para desbloquear memórias. Alguns respondem-me na mesma moeda, outros escondem-se na indiferença. Percebo-os perfeitamente…

9 comentários:

FLY disse...

"É perigoso como uma bomba atómica."

Ai. Temos que continuar esta conversa. Não na(s) sala(s).
Continuo a apostar naquele restaurante...

Ha, perigoso é mesmo a bomba atómica perder a sua energia...
(...)

Abraço

::::: disse...

Mesmo a mulher mais sincera esconde algum segredo no fundo do seu coração.

(Immanuel Kant)

Anónimo disse...

A mulher tem tantas faces como a lua. A sua sinceridade é coisa bem real naquele instante. O homem é que só consegue viver em sistema binário, a preto e branco. A cultura oriental é feminina, por isso os homens aí também se adaptam a qualquer verdade desde que não percam a face.

Li

Unknown disse...

Belíssima observação da alma humana!

"O" segredo tem, obviamente , a sua face negra, mas é tão nosso que se o lançássemos num dos tais buracos negros do universo, ficaríamos amputados de uma parte de nós... E se agora já temos dificuldade em reconhecermo-nos, que faríamos com esse vazio no colo? É que parecendo que não, até gostamos de o sentir ali e de lhe puxar o lustro quando achamos que está a ficar baço...

Como diz o FlY, continuaremos a conversa...

zemac disse...

Segredos...tanto que havia a dizer...
Não sei qual o restaurante, mas alinho...
Abraço.
Zemac

Anónimo disse...

Desde que aqui cheguei, que ando enervada só de ver como há segredos nos recônditos da alma de toda a gente! EU NÃO TENHO NENHUM!Não consigo encontrar "aquele" que me poria em pé de igualdade com todos vocês! Até me roo de inveja!
Mas nem que tenha que fazer asneira para ter um, ai faço, faço!

Giro, giro o teu blog. Felicidades!
Nica

ilhéu disse...

Ainda bem que vieste visitar-me, Nica. Quanto ao grande segredo, mesmo assim, julgo que o deves ter...a sério, lá bem no fundo, camuflado! Bjos

V. disse...

eu juro que não consigo comentar este texto... já o devo ter lido umas cinco vezes e nada...

Um baú de viagem que nos persegue em todas as paragens.

e pronto, deve ser isto... :)

(texto muito bom, como sempre!)

beijinho*

V. disse...

eu juro que não consigo comentar este texto... já o devo ter lido umas cinco vezes e nada...

Um baú de viagem que nos persegue em todas as paragens.

e pronto, deve ser isto... :)

(texto muito bom, como sempre!)

beijinho*