segunda-feira, 14 de abril de 2008

Santa Eufêmia


Guardo os amigos de infância tão vivos na memória como marcas negras nas pernas e os muros e as veredas que calcorreávamos como símbolos da minha pertença ao chão. Nunca me senti tão envolvido pela ambiência social nem encontrei nos amigos posteriores tamanha sinceridade no estar e o mesmo aconchego. Mas também albergo com estranha exactidão o horizonte fronteiro às varandas da casa, – os meus castelos de vigia –, de onde se estendiam pelos buracos das grades de ferro as vinhas do senhor Carmindo e lá ao longe pinheiros verdes povoavam os montes como monstros inertes. A cor viva do Verão iluminando as cepas escuras não mais a reencontrei nas minhas andanças por desaparecimento do sol límpido e sereno da minha infância; mesmo as nuvens brancas que me perturbavam a atenção me pareciam mais vivas e variadas do que todas as outras que me assombraram as paisagens futuras.

A perspectiva apenas se alterava radicalmente uma vez por ano, em Setembro, durante as festas de Santa Eufémia, quando uma multidão de romeiros procurava o santuário, a maioria enfiada em camionetas que, em carreiro, se encostavam à varanda. A concentração tornava o passo lento e dava-me tempo para olhar nos olhos os peregrinos. Alguns, poucos, faziam-me sinais amistosos, mas a maioria, preocupada com os enigmas e razões das promessas feitas à virgem mártir, olhava em frente com pressa de chegar ao destino.

A verdade é que a santidade de Eufémia devia ultrapassar todos os santos conhecidos porque nenhum deles conseguia agrupar tanta gente em redor de uma ermida. Apesar da minha curiosidade, nem na catequese das irmãs salesianas, nem nos serões à volta da lareira, consegui a explicação cabal. Sabia apenas que o seu martírio se devera ao facto de Eufêmia não querer casar-se com alguém importante da sua terra, durante o reinado do imperador Diocleciano. A história causava-me algum desconforto, porque, se por um lado, na minha inocência, concordava que o casamento não era um local feliz para se viver, e que as relações humanas mais íntimas mergulhavam os intervenientes em situações de embaraço e incomodidade, por outro, também não percebia o dramatismo da opção, causa próxima da sua morte aos quinze anos de idade.

Um paradoxo que se manteve vivo durante alguns anos e que legitimava a recusa de um casamento no futuro, bem como manter na omissão as raparigas, já ausentes das brincadeiras dos garotos pelo sistema social vigente. Até que, numas férias de um Junho quente e cúmplice de trovoadas que forjavam no céu riscas florescentes e sons tão roucos como se partes do mundo ruíssem para os lados, no grupo coral das missas dominicais apercebi-me de um rosto tão sereno e harmonioso que só vira sonhos e de sorriso em sorriso acreditei que ela seria o único e o grande amor da minha vida. Os suspiros provocados pela sua lembrança e a ânsia de repetição dos treinos corais eram os sinais mais evidentes. Mas nada aconteceu até uma viagem a uma praia fluvial do rio Zêzere, organizada pela paróquia.

Alcandorados numa camioneta de caixa aberta, misturados com pratos, talheres e alguidares com febras de porco, tentávamos manter o equilíbrio nas curvas encostados uns aos outros. Proximidade desfeita logo à chegada quando os mais afoitos saltaram e enfiaram-se no rio no meio de risos e esgares de arrepios e outros à volta ganhando coragem para enfrentar as águas frias. Uma nova trovoada dava sinais no horizonte, mas apenas a chuva forte que arremessava tudo à frente determinou a fuga de todo o grupo, acomodando-se numa gruta natural que havia nas proximidades. Não foi por acaso que fiquei junto dela como perto do altar e no meio da tempestade, com relâmpagos certeiros que iluminavam o interior do abrigo e trovões que criavam ecos ensurdecedores, peguei-lhe na mão com o coração a tremer e ela acedeu colocando firmeza no aperto. O peito batia tanto que tive receio que se ouvisse e fizesse eco tal como os trovões e saí da gruta assustado com a genica que saía dos meus poros e com a consciência nítida que a comodidade das certezas desaparecera.

Foi o único amor da adolescência e resistiu tão pouco como aquele Verão que se esfumou ao som de trovões, raios coloridos no céu e foguetes da romaria de Santa Eufêmia. O futuro mostrava-se sombrio. Mais simples foi sentir o aperto de um afecto que não sabia o que fazer com ele para lá do calor das mãos.

3 comentários:

V. disse...

tão doce... :) *

Anónimo disse...

Tão transbordante de ternura que nos apazigua quase de modo catárctico !...
Sábio no tratamento dos afectos, dás aos teus leitores pequenos nacos de felicidade que nos reconciliam com o mundo...

Anónimo disse...
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