sexta-feira, 4 de abril de 2008

O Que Fazer com a Solidão?

Voltei-me como quem vigia uma criança solta no banco de trás de um automóvel. O passado não sabe comportar-se e, em caso de acidente, pode ser catapultado para a dianteira causando amolgadelas ao condutor. O itinerário escolhido, a velocidade, os meios de segurança accionados, muito devem a esse passageiro incómodo. Mesmo que, na maioria das vezes, o omitamos, por esquecimento nosso ou por falta de vivacidade dele.

Mas qualquer análise, por mais frágil que seja, assegura-me que mesmo dispondo de uma máquina do tempo não queria regressar. A trabalheira foi tremenda e hoje prefiro uma vida estável a um amontoado de sobressaltos e incertezas. A miragem de uma existência cheia de aventuras e desenlaces é coisa de filmes e livros de aventuras. Tal como a maioria, desejo a continuidade dos refúgios seguros após as deambulações diárias. Afectos, estabilidade no emprego, serras iluminadas por candeias imóveis ao fim da noite. A andança faz parte de um registo parcial e temporário e não um desejo intrínseco do ser humano.

A razão é simples. O bem supremo, o nosso Graal, é o afecto. O resto é coisa menor. Aliás, verdadeiramente, é o único bem que interessa remediar. A pobreza é mais fácil de resolver. Naturalmente, há muitos pobres queixando-se que a sociedade os esquece e rejeita, mas a grande maioria tudo fez para garantir esse estatuto e recolhe dele as suas alegrias íntimas. Aliás, creio que as pessoas acreditam naquilo que querem e preferem isso ao desvendar puro e simples das suas próprias imposturas. Se hoje se julgam infelizes pelo marido que é violento e alcoólico, amanhã chorarão a sua solidão pela morte prematura dele.

Por isso, tantos que se demarcavam de qualquer solução de compromisso definitivo, hoje afirmam a sua incapacidade de pensar a sua vida sem um suporte familiar, mesmo que ele seja – como quase sempre é – opressivo e pouco motivante. É a maturidade o elemento dinamizador da permanência e do conflito constante com a possibilidade da implosão. O que fazer sem a chatice da família, das suas regras e suas imposições? Da mesma forma o que fazer com a liberdade de um tempo sem os horários do emprego e sem a obrigatoriedade dos documentos a preencher? O que fazer do vazio inevitável face à previsibilidade de um futuro sem marcas ou sem projectos?

Não me lembro de quase nada. Poderão ser umas férias num sítio qualquer, num país qualquer, num paraíso qualquer. Poderão ser uns encontros mais ou menos alucinantes nuns fins-de-semana, poderão ser uns reencontros animados de velhos conhecidos. Mas, no final, quando a porta se fecha e as vozes soarem cada vez mais longínquas, regressará tudo de novo, que nos engole e nos domina. O que fazer perante a solidão?

Não há fuga. Há desvios, sobressaltos, escapadelas, mas regressa como um presidiário com estatuto de prisão em regime aberto. À noite, de volta à cela e, apesar do sol que reencontrou ao longo do dia, sabe que nada repara e ameniza a exigência de retorno aos velhos fantasmas da sua reclusão. O drama humano resulta da inexistência de atalhos de afecto ou de comunicação.

É como se as linhas de contacto serenas, certas e estáveis fossem a única conjuntura de sobrevivência. Penso em casos conhecidos. Pessoas que conheço desde a juventude e que permanecem encerrados no seu quarto. Vão desde os que olharam sempre com sobranceria para quem deles gostou, aqueles que por feitio cultivaram a frieza ou distanciamento – tanto da família como dos mais próximos – como outros que por falta de jeito ou de oportunidades não cumpriram ambições. Vinte anos depois os primeiros sinais de cansaço e desencanto são evidentes. Aquele furor antigo, exibição de força da sua individualidade, orgulho na situação cómoda de indiferença perante os outros, transformou-se em nostalgia. Não tanto pelo medo do futuro mas pela consciência do que perderam. O que vale a vida sem laços? O que vale o tempo sem os fios condutores de afectos? O que vale a resignação perante o desenrolar inevitável da vida sem um objecto afectuoso que a determine e, ao mesmo tempo, a eleve?

2 comentários:

::::: disse...

Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música. Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita. Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar. Pesa como pesa uma ausência. E a lágrima que não se chorou. Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros.

(Clarice Lispector)

V. disse...

Quando se viaja sozinho
pelas imagens que perduram
as evocações ganham um modo tão real
A mancha ténue dos arbustos
indica o caminho para o regresso
que nunca há
o mar ficou de repente perto
sobre esta praia travámos lutas
para as quais só muito depois
encontramos um motivo
era à pedrada que nos defendíamos
do riso mais inocente
ou de um amor
Mas aquilo que nunca esquecemos
deixa de pertencer-nos e nem notamos
Estamos sós com a noite
para salvar um coração


José Tolentino Mendonça

(...)

este texto doeu-me.

(...) Pessoas que conheço desde a juventude e que permanecem encerrados no seu quarto. Vão desde os que olharam sempre com sobranceria para quem deles gostou, aqueles que por feitio cultivaram a frieza ou distanciamento – tanto da família como dos mais próximos – como outros que por falta de jeito ou de oportunidades não cumpriram ambições. Vinte anos depois os primeiros sinais de cansaço e desencanto são evidentes. Aquele furor antigo, exibição de força da sua individualidade, orgulho na situação cómoda de indiferença perante os outros, transformou-se em nostalgia. Não tanto pelo medo do futuro mas pela consciência do que perderam. (...)

outch! daqui a vinte anos falamos outra vez, pode ser? :)

beijinho*