domingo, 20 de abril de 2008

A Saudade

Diz-se que a saudade é muito nossa. A sua origem situar-se-ia nas gerações de caminhantes e peregrinos que, extasiados por mundos novos, colocavam sobre os ombros não só a tarefa de sobreviver como outra, não menos importante, a de regressar às origens. Voltar ao local onde se sentiram felizes. Um eterno retorno que faz lembrar os salmões que, após deambulações por vários anos e milhares de quilómetros pelo mar, sabe-se lá bem porquê, regressam para desovar e morrer.

Desses caminhantes que detestavam a viagem mas a julgavam como necessidade vital, ficou-nos o gosto melancólico dos afastamentos temporários, bem como o desejo de reencontros com o útero terreno. Da terra, das pessoas, dos cheiros e sabores. A viagem tem sempre retorno. Mais cedo ou mais tarde.

Mas, então, o que é a saudade? É um estado de espírito que não quer o presente para nada. O presente é um limbo de passagem que, ao rejeitar o passado, rejeita a felicidade e, ao negar o futuro, estorva o aconchego com a bem-aventurança. Mas a saudade não se satisfaz com um futuro cópia-fiel-do-passado. Reinventa-o com a audácia do novo, pela força acumulada da espera. Faz a triagem do passado, numa espécie de fábrica do tempo, onde operários retiram os produtos com defeito e deixam apenas seguir aqueles cuja qualidade e bom gosto motivam o interesse dos clientes de lojas comerciais. Para a saudade, o futuro é um passado reciclado.

Mas há outra razão forte para a saudade não gostar do presente. Recorro à história mais comovente que conheço sobre o tema. É de um escritor brasileiro cujo nome omito porque, para lá do meu esquecimento, tentativas do reencontrar revelaram-se infrutíferas. A história de uma mulher que diariamente vai ao cais chorar o desgosto da lonjura do marido embarcado. Muitas vezes, em sonhos, olhei esta mulher sozinha, em passos curtos, tantas vezes no meio de ondas que chocavam o cais com violência e com os cabelos escuros povoando o céu cinzento. As lágrimas correm-lhe numa face lívida, ao mesmo tempo, que o seu olhar se estende em direcção ao longínquo navio preso nas vagas. Tempos depois, regressa o barco que ela espreita desde a sua entrada no porto e o abraço mútuo é de uma energia tal que faz esquecer a barreira dos dias.

Mas a estadia dele revela-se como sempre se revelou no passado, cheia daqueles dramas que a intimidade negoceia. Mais a violência. É um passado presente que regressa já sem a triagem optimista da saudade. E ao fim da tarde a mulher caminha lentamente pelo mesmo cais, com aquele passo curto como se contasse os ladrilhos que cobrem o cimento escuro da salga, enquanto ondas fortes rebentam e a espuma flutua. E as lágrimas escorrem. Não tenho a certeza se a quantidade é superior. Mas são muitas. Na presença dele, sente a saudade de ter saudade. Afinal, também não quer o presente para nada.

Foi há muitos anos que conheci este conto, numa juventude onde a acomodação ao passado se fazia com tristeza. Pressenti que a vida é uma espécie de realização cinematográfica com feedbacks, viagens ao futuro e presentes perfeitos que se tornam envenenados. Com a saudade buscamos no passado a força para prosseguir, ao identificar o melhor de nós e da vida. No futuro sonhamos com pequenos cambiantes que reforçam a esperança.

3 comentários:

V. disse...

eu, por exemplo, tenho saudades dos meus passeios de bicicleta com aqueles amigos de infância... saudades dos arranhões e das corridas... :)

beijinho*

::::: disse...

Num deserto sem água,
numa noite sem lua,
numa terra nua,
por maior que seja o desespero,
nenhuma ausência é mais profunda que a tua!


(Sophia de Mello Breyner Andresen)
....................
Estou como a Vanessa:
Ai que saudades de andar de bicicleta e na brincadeira com os amigos... Dos joelhos esfolados e das gargalhadas...

V. disse...

um djambé é isto:

http://www.wereldpercussie.nl/workshop%20prijzen/djembe%20foto%206.jpg

:)

beijinho*