Há dias assim. Uns tão vagos que não servem para nada, outros tão intensos que em plena noite, colocados em balanças policiais, seriam multados por excesso de acontecimentos. Foi o caso de um dia de Junho, mês mole, sem Verão pelo sol turvo como vinho a martelo, mas sem Primavera devido a um sopro quente que arrasava as noites.
Nas comemorações solenes de uma data significativa, ao nascer da noite, após missa e cumprimentos entre todos os presentes – a maioria de saudades devido a afastamentos de um ano ou até mais, - seguiu-se um jantar em mesas brancas e cadeiras forradas de laços azuis celestes. Era um cenário dramático com personagens cheias de pedigree e tudo regado com conversas de circunstância que faziam ponte para repetições de pratos gastronómicos, todos muito bem trabalhados e em quantidade suficiente para um regimento de infantaria repleto de sargentos brutos e difíceis de contentar. Os temas de conversas eram variados, desde terramotos – durante a manhã tremera a terra de forma sub-reptícia e os mais argutos aperceberam-se do clamor do fundo – amizades perdidas em grutas sem regressos, a mafia do futebol e de muitos outros assuntos com menor potencialidade, como touradas de praças e de géneros mais provincianos, vindos à baila pela feira taurina que decorria. Com assuntos tão esotéricos e a maioria fora da minha experiência pessoal, ainda não tinha feito qualquer comentário e, para não julgarem que me armava em distante, comentei a experiência de ter visto um touro de morte numa Aldeia do Bispo que ninguém conhecia, em lide analisada de cima, no meio de árvores, numa autêntica selva de chopos e plátanos centenários que rodeavam o redondel e onde muitos outros assistentes se empinavam em carros de bois. Os aristocratas da mesa olharam-me com frestas na testa fantasiando lugares com terriolas assim, talvez no fim do mundo, sabe-se lá. E comentei que não era o único empoleirado nas árvores, parecíamos espantalhos coloridos e ríamo-nos muito uns para os outros, de árvore para árvore ou de galho para galho conforme as distâncias e no meio da sorte o azar do touro que levou uma estocada tão imperfeita que não o deitou abaixo e via-se a ponta da espada a surgir num dos lados da barriga e quanto mais o toureiro repetia golpes mais o touro se animava na sua panaceia e parecia um sonho e todos nós alcandorados berrávamos “assassino” e o espanhol importava-se tanto com os insultos como as nuvens do céu que passavam devagar como se fossem surdas. E se o touro morreu após desistir da luta eu desisti nesse dia de gostar de olhar bichos furiosos contra capas, cavalos, furcões, homens e pneus, tudo usado nas lides, tanto em arenas pintadas de branco em círculos pequenos ou grandes ou em arenas mais rudimentares cercadas por carros de bois e por árvores centenárias com galhos grossos.
No fim do meu testemunho, todos os companheiros da mesa fitavam-me como se fosse um fantasma, uns de lágrimas nos olhos com pena do animal, outros indiferentes à sorte do touro mas agoniados pelo atraso civilizacional de terras do fim do mundo, outros com manguitos nos olhos, pois são toxicodependentes das touradas e vão a Madrid de propósito para contemplar os touros a morrer muito mais depressa do que o da minha experiência. Talvez por isso houve um momento de silêncio tão forte como uma sirene dos bombeiros e apenas se ouviam as colheres a bater nos pratos e às vezes nos dentes e senti vergonha por ter destruído a harmonia de um jantar que se queria liberto de qualquer pensamento.
E quando já o ocaso do jantar comemorativo se aproximava, anunciado pela postura esguia das altas e médias entidades, um colega de mesa, reconhecido leiloeiro pela Internet de santos ignorados como S. Martinho de Porres e S. Olegário, começou a ficar tão branco que, em comparação, as folhas A4 pareciam papel de embrulho e enquanto alguns julgaram ser apenas resultado da magnanimidade de um dia de festa, pela variedade astronómica de carnes, receitas antigas e modernas, peixe de tantas espécies que nos perdíamos na sua conta, além de castanhas fritas em bacon, feijoada à moda de cá, crepes de marisco à moda francesa, peru assado no forno, morangos e frutas de época e sobremesas de pasmar, desde pudins, gelados encandescentes e bolos de todas as cores, e outros julgaram ser da emoção da história de um touro que tardava em morrer e outros ainda pensaram que talvez fosse uma razão mais grave e levaram-no em ombros – tal como aos toureiros que fazem faenas de grande qualidade e não como o espanhol de Aldeia do Bispo – até a um quarto recatado e fora das vistas das entidades médias, altas e dos outros. Um médico chegou rápido que parecia residente e depois de o ter acordado primeiro com chapadas leves na cara e em seguida com encontrões furiosos agarrado à aba do casaco, perguntou-lhe se sabia o nome e onde estava e julguei que o médico tinha bebido demais mas, segundo outra testemunha da reanimação mais competente do que eu, o médico tinha toda a razão em lhe perguntar coisas tão evidentes pois se ele as ignorasse o caso seria mais sério do que uma digestão difícil. Ainda foi levado ao hospital onde fez mais exames do que um aluno do secundário, mas já ninguém o questionou se tinha enlouquecido no jantar comemorativo.
E quando cheguei a casa senti-me tão fatigado como o touro da arena antes de expirar e com tanta pena dele como de mim que também passeava por arenas de gente branca, em círculos grandes e outros nem por isso, até ser oferecido em faenas de capote e bandarilhas. Depois, pacientemente, aguardei a estocada final.
No fim do meu testemunho, todos os companheiros da mesa fitavam-me como se fosse um fantasma, uns de lágrimas nos olhos com pena do animal, outros indiferentes à sorte do touro mas agoniados pelo atraso civilizacional de terras do fim do mundo, outros com manguitos nos olhos, pois são toxicodependentes das touradas e vão a Madrid de propósito para contemplar os touros a morrer muito mais depressa do que o da minha experiência. Talvez por isso houve um momento de silêncio tão forte como uma sirene dos bombeiros e apenas se ouviam as colheres a bater nos pratos e às vezes nos dentes e senti vergonha por ter destruído a harmonia de um jantar que se queria liberto de qualquer pensamento.
E quando já o ocaso do jantar comemorativo se aproximava, anunciado pela postura esguia das altas e médias entidades, um colega de mesa, reconhecido leiloeiro pela Internet de santos ignorados como S. Martinho de Porres e S. Olegário, começou a ficar tão branco que, em comparação, as folhas A4 pareciam papel de embrulho e enquanto alguns julgaram ser apenas resultado da magnanimidade de um dia de festa, pela variedade astronómica de carnes, receitas antigas e modernas, peixe de tantas espécies que nos perdíamos na sua conta, além de castanhas fritas em bacon, feijoada à moda de cá, crepes de marisco à moda francesa, peru assado no forno, morangos e frutas de época e sobremesas de pasmar, desde pudins, gelados encandescentes e bolos de todas as cores, e outros julgaram ser da emoção da história de um touro que tardava em morrer e outros ainda pensaram que talvez fosse uma razão mais grave e levaram-no em ombros – tal como aos toureiros que fazem faenas de grande qualidade e não como o espanhol de Aldeia do Bispo – até a um quarto recatado e fora das vistas das entidades médias, altas e dos outros. Um médico chegou rápido que parecia residente e depois de o ter acordado primeiro com chapadas leves na cara e em seguida com encontrões furiosos agarrado à aba do casaco, perguntou-lhe se sabia o nome e onde estava e julguei que o médico tinha bebido demais mas, segundo outra testemunha da reanimação mais competente do que eu, o médico tinha toda a razão em lhe perguntar coisas tão evidentes pois se ele as ignorasse o caso seria mais sério do que uma digestão difícil. Ainda foi levado ao hospital onde fez mais exames do que um aluno do secundário, mas já ninguém o questionou se tinha enlouquecido no jantar comemorativo.
E quando cheguei a casa senti-me tão fatigado como o touro da arena antes de expirar e com tanta pena dele como de mim que também passeava por arenas de gente branca, em círculos grandes e outros nem por isso, até ser oferecido em faenas de capote e bandarilhas. Depois, pacientemente, aguardei a estocada final.