Estalou o escândalo com o estrondo de uma castanha quando se constou que Ana Lopes, uma senhora de bela figura e de maneiras delicadas, casada com o homem mais poderoso da terra e mãe de dois filhos, andaria a encontrar-se secretamente com o Zé Casteleiro havia vários meses. Ninguém sabia o que teria despoletado a descoberta, mas pelas inimizades criadas ao longo dos anos, devido à análise corrosiva da sociedade feita de fel e vinagre, muitos julgaram que, finalmente, iria fazer-se justiça. Enquanto Ana e os filhos, estrategicamente, saíam da aldeia a caminho de casa de uma tia residente na Guarda, onde permaneceriam até se atenuar a vergonha, o marido, entre ameaças e sinais de força, jurava que a situação insustentável teria consequências. Naturalmente, eu temia pela vida do meu amigo.
Durante alguns dias, manteve-se escondido num pequeno e obscuro palheiro, propriedade do meu avô. Quando a noite caía levava-lhe comida, água e cigarros, mas sem qualquer tipo de contacto, com receio que a demora levantasse suspeitas. Uma noite, já de madrugada, quando a história começava a acalmar e se constava que teria sido visto em vários locais, alguns bem distantes, deixou o refúgio e surgiu em minha casa, vencido e com um olhar seco e cansado.
- O perigo espreita e tenho de partir. Um poeta e cientista da vida não pode viver acorrentado num meio tão mesquinho. O meu destino é o mundo, sem fronteiras nem ameias. Talvez nos encontremos lá um dia.
- Mas para onde vais? – Perguntei com inquietação. - E a Ana? – Mencionei o nome, mesmo sabendo que entrava em terrenos que nunca desbraváramos em conjunto.
- Nestes últimos dias convenci-me de que nada me prende aqui nem em sítio algum. A partir de agora a estrada será a minha casa e as nuvens o meu tecto. Mas não fiques preocupado, pois a vida não se perde no sopro do vento, arruína-se na espera estóica da morte, nesta vida comezinha e rotineira de gente de alma negra. Rezam demasiado, em vez de esgotarem os minutos que lhes restam em algo que valha a pena! Quanto à Ana, - e deves guardar este segredo contigo -, se não me acompanha é porque teve medo do vazio que estaria à nossa espera. Não quis arriscar e, como a maioria, preferiu o certo, o óbvio, o definido. Lembras-te?
Assenti com um gesto. Um silêncio prolongado. Parecia emocionado. Fui eu que cortei o recolhimento com uma faca afiada.
- Vou ter imensas saudades das nossas conversas. Ao longo destes anos, senti-me um privilegiado porque me questionavas mesmo sabendo que nada te podia dar em troca, apesar da minha ingenuidade, de ser, no fundo, igual a todos os que criticavas. Muitas vezes, senti-me um discípulo que te atraiçoava, mal viravas as costas. Sempre amedrontado, inseguro, incapaz de cortar amarras...
Durante alguns dias, manteve-se escondido num pequeno e obscuro palheiro, propriedade do meu avô. Quando a noite caía levava-lhe comida, água e cigarros, mas sem qualquer tipo de contacto, com receio que a demora levantasse suspeitas. Uma noite, já de madrugada, quando a história começava a acalmar e se constava que teria sido visto em vários locais, alguns bem distantes, deixou o refúgio e surgiu em minha casa, vencido e com um olhar seco e cansado.
- O perigo espreita e tenho de partir. Um poeta e cientista da vida não pode viver acorrentado num meio tão mesquinho. O meu destino é o mundo, sem fronteiras nem ameias. Talvez nos encontremos lá um dia.
- Mas para onde vais? – Perguntei com inquietação. - E a Ana? – Mencionei o nome, mesmo sabendo que entrava em terrenos que nunca desbraváramos em conjunto.
- Nestes últimos dias convenci-me de que nada me prende aqui nem em sítio algum. A partir de agora a estrada será a minha casa e as nuvens o meu tecto. Mas não fiques preocupado, pois a vida não se perde no sopro do vento, arruína-se na espera estóica da morte, nesta vida comezinha e rotineira de gente de alma negra. Rezam demasiado, em vez de esgotarem os minutos que lhes restam em algo que valha a pena! Quanto à Ana, - e deves guardar este segredo contigo -, se não me acompanha é porque teve medo do vazio que estaria à nossa espera. Não quis arriscar e, como a maioria, preferiu o certo, o óbvio, o definido. Lembras-te?
Assenti com um gesto. Um silêncio prolongado. Parecia emocionado. Fui eu que cortei o recolhimento com uma faca afiada.
- Vou ter imensas saudades das nossas conversas. Ao longo destes anos, senti-me um privilegiado porque me questionavas mesmo sabendo que nada te podia dar em troca, apesar da minha ingenuidade, de ser, no fundo, igual a todos os que criticavas. Muitas vezes, senti-me um discípulo que te atraiçoava, mal viravas as costas. Sempre amedrontado, inseguro, incapaz de cortar amarras...
Olhou fixamente para mim, como se estivesse indeciso.
- Hesitei muito se te devia dizer isto. Durante uns tempos tive algumas dúvidas até que aos poucos ganhei certezas. Desculpa, mas não tens estofo de poeta. Olhas a vida como um todo organizado, com etapas a cumprir e onde é essencial manter-se o norte. Preferes guardar a lucidez para alcançares todos aqueles objectivos burgueses que dão segurança e sequência aos elos. Nem sabes a sorte que tens e nem imaginas tudo o que perdes! Mas quando puderes sai daqui e só deves parar quando o cansaço te consumir os olhos…
Apertámos as mãos, atravessou o patamar e já com o portão de ferro entreaberto regressou e deu-me um abraço acanhado. Saiu com a mochila a tiracolo e com um casaco largo que abria as abas por força do vento norte. Até desaparecer na curva mantive-me na sua peugada como se uma parte de mim fosse com ele, depois sentei-me debaixo do alpendre com as mãos no queixo e os cotovelos nos joelhos, sonhando com todas as viagens que haveria de fazer no futuro.
- Hesitei muito se te devia dizer isto. Durante uns tempos tive algumas dúvidas até que aos poucos ganhei certezas. Desculpa, mas não tens estofo de poeta. Olhas a vida como um todo organizado, com etapas a cumprir e onde é essencial manter-se o norte. Preferes guardar a lucidez para alcançares todos aqueles objectivos burgueses que dão segurança e sequência aos elos. Nem sabes a sorte que tens e nem imaginas tudo o que perdes! Mas quando puderes sai daqui e só deves parar quando o cansaço te consumir os olhos…
Apertámos as mãos, atravessou o patamar e já com o portão de ferro entreaberto regressou e deu-me um abraço acanhado. Saiu com a mochila a tiracolo e com um casaco largo que abria as abas por força do vento norte. Até desaparecer na curva mantive-me na sua peugada como se uma parte de mim fosse com ele, depois sentei-me debaixo do alpendre com as mãos no queixo e os cotovelos nos joelhos, sonhando com todas as viagens que haveria de fazer no futuro.