Duarte não fala, resmunga. Dá sempre a impressão de que nada o surpreende ou afecta, mas percebe-se que tudo à sua volta é objecto de atenção vigilante. Uma figura excêntrica que, após o desaparecimento da polícia política, deixou de ser temido para ser desprezado ou, acima de tudo, ignorado. Fisicamente sinistro. Cabelos brancos, de tez escura, gordo da cabeça aos pés, umas pestanas compridas que esvoaçam com o vento, olhos salientes, parados, quase inertes. Ao mover-se os braços balouçam e observado de longe parece remar contra a corrente.
Educado e culto, tem orgulho no domínio elegante da língua e enfurece-o a supina ignorância dos funcionários mais novos. Um dos seus exclusivos interesses é a arte náutica. Conhece todos os termos técnicos, modelos de embarcações desde os descobrimentos e colecciona com esmero as fotografias de caravelas que retira de revistas da especialidade. Confessa que em novo sonhara ser marinheiro, mas a mãe não lho permitira por ter de a deixar a aldeia por períodos longos.
Cuidou da mãe, viúva, alguns anos e sente remorsos por a ter tratado com pouco carinho. O desespero de quem esperava com ansiedade a partida dela e depois a extrema culpa pelo vazio deixado. Desde aí joga à solidão com os demónios que ocuparam as paredes da casa e escorregam pelas paredes amareladas. Não casou, outro pecado que carrega. Não tanto por vocação, mas pelos filhos que não teve e que hoje lhe poderiam ser úteis para abafar silêncios e desbravar futuros.
Ser da polícia política numa terra pequena gerou ressentimentos, ainda evidentes. Os dois anos de prisão, sem acusação formada e sem receber qualquer solidariedade, magoaram-no e a dor nunca mais o abandonou. Acentuou-lhe o silêncio e impediu-o de alimentar intimidade com alguém. Escavou no semblante indiferença e superioridade. Um espírito vingativo, mérito moral sobre os outros, exuberante na divergência com a maioria que não sente qualquer motivação cultural.
Desde há anos mantém com Laurinda um relacionamento íntimo. Trabalham na mesma repartição, face a face, mas raramente olha para ela. Repudia-a ostensivamente, responde-lhe cinicamente como se a desrespeitasse pelo facto de dormir com ele. Nunca lhe dirige a palavra. Odeia-a, penso, pelo confronto com a iniquidade moral de ser casada, ou, pior, pelo facto mais simples de o consentir. Encontram-se no meio de odores de gente apodrecida, ele tão só como faroleiro no meio de tempestades, ela cansada de acolher a vida inteira um marido diminuído e uma mãe acamada há mais de duas décadas. O acto decorre sem qualquer sorriso, sem que qualquer meiguice se retire do movimento mecânico. Ela tentando que a olhe nos olhos, ele odiando-a ainda mais por isso.
Um odor estranho estende-se a toda a casa. Ele próprio tem uma exalação amarga. Faz lembrar a ambiência das casas fúnebres, como se a morte tivesse chegado antes do tempo. A prima, o único membro da família com quem manteve sempre relações cordiais, convida-o anualmente para a ceia do Natal, mas por falta de outras oportunidades de clarificar reflexões criou estratégias para esconjurar a solidão. Uma delas é repetir em voz alta as objecções levantadas por leituras ou notícias da televisão. E aí os fantasmas que escorregam pelas paredes amarelas deixam no ar o perfume mórbido do retraimento, aquele sabor acre de uma vida em contra-ciclo.
Educado e culto, tem orgulho no domínio elegante da língua e enfurece-o a supina ignorância dos funcionários mais novos. Um dos seus exclusivos interesses é a arte náutica. Conhece todos os termos técnicos, modelos de embarcações desde os descobrimentos e colecciona com esmero as fotografias de caravelas que retira de revistas da especialidade. Confessa que em novo sonhara ser marinheiro, mas a mãe não lho permitira por ter de a deixar a aldeia por períodos longos.
Cuidou da mãe, viúva, alguns anos e sente remorsos por a ter tratado com pouco carinho. O desespero de quem esperava com ansiedade a partida dela e depois a extrema culpa pelo vazio deixado. Desde aí joga à solidão com os demónios que ocuparam as paredes da casa e escorregam pelas paredes amareladas. Não casou, outro pecado que carrega. Não tanto por vocação, mas pelos filhos que não teve e que hoje lhe poderiam ser úteis para abafar silêncios e desbravar futuros.
Ser da polícia política numa terra pequena gerou ressentimentos, ainda evidentes. Os dois anos de prisão, sem acusação formada e sem receber qualquer solidariedade, magoaram-no e a dor nunca mais o abandonou. Acentuou-lhe o silêncio e impediu-o de alimentar intimidade com alguém. Escavou no semblante indiferença e superioridade. Um espírito vingativo, mérito moral sobre os outros, exuberante na divergência com a maioria que não sente qualquer motivação cultural.
Desde há anos mantém com Laurinda um relacionamento íntimo. Trabalham na mesma repartição, face a face, mas raramente olha para ela. Repudia-a ostensivamente, responde-lhe cinicamente como se a desrespeitasse pelo facto de dormir com ele. Nunca lhe dirige a palavra. Odeia-a, penso, pelo confronto com a iniquidade moral de ser casada, ou, pior, pelo facto mais simples de o consentir. Encontram-se no meio de odores de gente apodrecida, ele tão só como faroleiro no meio de tempestades, ela cansada de acolher a vida inteira um marido diminuído e uma mãe acamada há mais de duas décadas. O acto decorre sem qualquer sorriso, sem que qualquer meiguice se retire do movimento mecânico. Ela tentando que a olhe nos olhos, ele odiando-a ainda mais por isso.
Um odor estranho estende-se a toda a casa. Ele próprio tem uma exalação amarga. Faz lembrar a ambiência das casas fúnebres, como se a morte tivesse chegado antes do tempo. A prima, o único membro da família com quem manteve sempre relações cordiais, convida-o anualmente para a ceia do Natal, mas por falta de outras oportunidades de clarificar reflexões criou estratégias para esconjurar a solidão. Uma delas é repetir em voz alta as objecções levantadas por leituras ou notícias da televisão. E aí os fantasmas que escorregam pelas paredes amarelas deixam no ar o perfume mórbido do retraimento, aquele sabor acre de uma vida em contra-ciclo.
11 comentários:
This blog could be more exciting if you can create another topic that everyone can relate on.
wala pulos imo blog.
Your blog is very creative, when people read this it widens our imaginations.
Mas que treta é esta que aparece aqui nos comentários? Não podes fazer nada? É que parece que conspurca os teus belíssimos textos! Apre! para não dizer outra coisa mais enérgica ou violenta e recuperando ao mesmo tempo aquelas interjeições antigas que já ninguém diz!
Gostei muito.
Beijinhos
A Maria tem razão! (Beijo, miúda!)
Ai, ai...já vi que nao te safas tão cedo desta "virose" no teu PC... Nada que não se resolva ;)
Abraço
tens que me ajudar,Fly. Já agora, beijo para a Maria e um abraço para ti
Hoje senti que matei o meu maior inimigo! Sinto-me mais leve, descansada e feliz. Enterrei esse inimigo com 15 kg de terra em cima, daquele cemitério foi o inimigo que mais terra por cima levou e tenho de lhe agradecer porque foi um dos coveiros :P Beijinhos e boas férias.
i somehow find it wonderful that you haven't deleted the spam
serio:)
x
sim:)
to let things be - i wish am like that when i grow up:)
bj
in fact:) last night on the beach an ant crawled up my arm. i was going to blow it off but then remembered you and your spammers - and let it crawl over me for what felt like the tickliest eternity:)))
Também o (s) conheci!
Que vidas afogadas na solidão!
Mas, pelos visto, não deixou de nos marcar...
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