Quando era pequeno como um feijão, a minha mãe criava galinhas brancas e macias que viviam felizes num quintal sulcado de árvores de fruto e delimitado por muros altos e um portão de ferro forjado. O espaço amplo era propriedade de duas velhotas, irmãs e solteironas, de faces tão brancas como as nuvens dos fins de tarde do Verão que me bajulavam com rebuçados e mimos sempre que as visitava. Tinham chegado do Brasil, com posses e cumplicidades que lhes permitiriam viver sem problemas até ao fim da vida. Lá em casa, as tardes eram monótonas, sensaboronas, elas prostradas nuns cadeirões distintos de cor de pérola, semeados de rosas azuis escuras e eu enroscado no chão, bisbilhotando livros com páginas cheias de desenhos coloridos e lombadas douradas. As velhotas faziam malha e com tanto treino que não precisavam de olhar para o linho cru e tagarelavam de coisas e de pessoas tão longínquas como a minha compreensão dos temas. Quase não me dirigiam a palavra, mas na partida brindavam-me sempre com sorrisos enormes e alvos e uma mão cheia de rebuçados com creme no âmago.
Por baixo das escadas que davam acesso à casa de pedra, improvisou-se um poleiro com réguas de madeira encrostadas nos buracos da parede, onde residiam as galinhas poedeiras, brancas, que envelheciam na sua função de galinhas. Eu tinha a tarefa de as alimentar. Carregava uma malga cheia de milho amarelo e algumas couves e, ao verem-me entrar pelo portão, vinham a correr feitas doidas à minha beira e depenavam as couves sem mastigar e com pressa. Depois da refeição corria atrás delas e elas, desengonçadas, arriscavam a correria, mas depois aninhavam-se aos meus pés e fazia-lhes carícias com as palmas das mãos. Á tardinha, quando o sol ameaçava ir embora, iam todas dormir fazendo equilibrismo nas ripas de madeira. Nessa altura, julgava-as os bichos mais inteligentes do mundo, mas depois mudei de opinião.
Tínhamos também um peru que nunca se aninhava aos meus pés e era muito desconfiado. A minha mãe não gostava dele porque não punha ovos e quando ficou mais velho já com o gargalo pelado e enrugado, contra a sua vontade, levámo-lo para a cozinha. Eu era tão pequeno que o peru me ultrapassava em altura, pega aqui e eu peguei e para meu espanto e do próprio peru a mãe enfiou-lhe nas goelas aguardente por um funil, daquela que o meu avô nos mandava pelo Natal. O peru não parecia gostar muito da poção, mas a minha mãe insistia e o peru bebia mais um trago, mas eu não compreendia porque é que a mãe queria um peru bêbado lá em casa. Só percebi depois. Infelizmente.
A mãe era muito despachada e continua assim após trinta e tal anos. Com o desgosto de tanto fármaco gasto num animal tão pouco simpático decidiu continuar a tragédia sem insistir mais com ele e tomou medidas drásticas. Com a força das mulheres do campo pegou numa faca com cabo de madeira e folha afiada pelo latoeiro que tocava uma gaita e empurrava um carrinho feito com uma roda de bicicleta, e num golpe certeiro retirou a cabeça estreita do enorme do peru. Foi então que se deu o milagre. Espavorido, corria pela cozinha sem cabeça e sem bater nos móveis nem na parede, como se tivesse um radar semelhante aos morcegos. Com o bater das asas, o sangue era aspergido para as paredes de cor amarela e mais parecia uma cerimónia de bruxaria e eu no centro aterrorizado a olhar para o fantasma de um peru que já há muito tinha morrido e a minha mãe atrás tentando apanhá-lo para lhe desferir mais um golpe na sua tentativa em viver sem cabeça. Cruz credo, que é o diabo! e eu não me recordo se ela ria ou se estava preocupada com as sinaléticas do outro mundo.
Não me recordo do resto. Mantive-me afastado desta morte trágica durante tanto tempo que não me lembro o que se passou a seguir… Mas quando imergem traços e indícios de um passado longínquo, então existem possibilidades infinitas de captar nexos, momentos, cheiros, sensações, clarões de afectos, através dos quais se aprisionam pequenas fracções de vida. Com eles podemos desenriçar o fio à meada. Acomodamo-nos ao tempo, tal como peças de um puzzle que se vão tornando inteligíveis.
Por baixo das escadas que davam acesso à casa de pedra, improvisou-se um poleiro com réguas de madeira encrostadas nos buracos da parede, onde residiam as galinhas poedeiras, brancas, que envelheciam na sua função de galinhas. Eu tinha a tarefa de as alimentar. Carregava uma malga cheia de milho amarelo e algumas couves e, ao verem-me entrar pelo portão, vinham a correr feitas doidas à minha beira e depenavam as couves sem mastigar e com pressa. Depois da refeição corria atrás delas e elas, desengonçadas, arriscavam a correria, mas depois aninhavam-se aos meus pés e fazia-lhes carícias com as palmas das mãos. Á tardinha, quando o sol ameaçava ir embora, iam todas dormir fazendo equilibrismo nas ripas de madeira. Nessa altura, julgava-as os bichos mais inteligentes do mundo, mas depois mudei de opinião.
Tínhamos também um peru que nunca se aninhava aos meus pés e era muito desconfiado. A minha mãe não gostava dele porque não punha ovos e quando ficou mais velho já com o gargalo pelado e enrugado, contra a sua vontade, levámo-lo para a cozinha. Eu era tão pequeno que o peru me ultrapassava em altura, pega aqui e eu peguei e para meu espanto e do próprio peru a mãe enfiou-lhe nas goelas aguardente por um funil, daquela que o meu avô nos mandava pelo Natal. O peru não parecia gostar muito da poção, mas a minha mãe insistia e o peru bebia mais um trago, mas eu não compreendia porque é que a mãe queria um peru bêbado lá em casa. Só percebi depois. Infelizmente.
A mãe era muito despachada e continua assim após trinta e tal anos. Com o desgosto de tanto fármaco gasto num animal tão pouco simpático decidiu continuar a tragédia sem insistir mais com ele e tomou medidas drásticas. Com a força das mulheres do campo pegou numa faca com cabo de madeira e folha afiada pelo latoeiro que tocava uma gaita e empurrava um carrinho feito com uma roda de bicicleta, e num golpe certeiro retirou a cabeça estreita do enorme do peru. Foi então que se deu o milagre. Espavorido, corria pela cozinha sem cabeça e sem bater nos móveis nem na parede, como se tivesse um radar semelhante aos morcegos. Com o bater das asas, o sangue era aspergido para as paredes de cor amarela e mais parecia uma cerimónia de bruxaria e eu no centro aterrorizado a olhar para o fantasma de um peru que já há muito tinha morrido e a minha mãe atrás tentando apanhá-lo para lhe desferir mais um golpe na sua tentativa em viver sem cabeça. Cruz credo, que é o diabo! e eu não me recordo se ela ria ou se estava preocupada com as sinaléticas do outro mundo.
Não me recordo do resto. Mantive-me afastado desta morte trágica durante tanto tempo que não me lembro o que se passou a seguir… Mas quando imergem traços e indícios de um passado longínquo, então existem possibilidades infinitas de captar nexos, momentos, cheiros, sensações, clarões de afectos, através dos quais se aprisionam pequenas fracções de vida. Com eles podemos desenriçar o fio à meada. Acomodamo-nos ao tempo, tal como peças de um puzzle que se vão tornando inteligíveis.
1 comentário:
Coitado do bicho! No domingo atropelámos um canito sem querer. E depois eu saltei do carro a correr para acudir ao bicho. Eu e o Tiago. Mas o bicho evaporou-se. A gente bem que o ouviu ganir, mas o bicho evaporou-se. Não estava debaixo do carro nem nos arredores. Cá por mim fugiu e foi morrer lá mais à frente. Mantive-me pacífica, mas tive muita vontade de chamar nomes feios ao Tiago e senti-me na companhia do pior condutor do mundo.
Enviar um comentário